segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O que acontece quando tudo tem um preço?

Para que haja uma esfera em que quase tudo tem um preço é preciso que haja muitas outras em que os preços são recusados. Esta tese de economia moral, bem defendida pelo filósofo Michael Walzer, deve ser retida perante as últimas notícias sobre a face oculta do bloco central dos interesses.

A esfera dos mercados funcionais, instituições que dão um trabalhão político a montar e a manter, depende da existência de um sector público que, entre outras coisas, cria e aplica as regras do jogo de forma imparcial, ou seja, um sector regido por valores não-mercantis, fornecendo bens cuja distribuição não pode estar dependente da disponibilidade para pagar.

É por estas e por muitas outras que o sector público tem de cuidar bem dos seus recursos, mas não pode ser gerido como se de uma empresa se tratasse. Nos últimos anos, chegou a Portugal a moda ideológica de que podia. Privatizar, total ou parcialmente, e "empresarializar" passariam a ser as únicas alternativas. A ética do serviço público seria um penacho dispensável e substituível pela linguagem do controlo accionista e dos incentivos pecuniários. Estranham que haja, neste contexto, mais gente convencida de que tudo pode ter um preço?

A desresponsabilizadora lengalenga do costume culpa sempre o peso "excessivo" do Estado ou os impostos "elevados" pela fraude e pela corrupção. Deve ser por isso que os países escandinavos, com um peso da despesa pública e dos impostos mais elevado, têm muito maior transparência, menor fraude fiscal e menos corrupção...

A legitimidade das instituições, a confiança, as virtudes cívicas e a boa administração são hoje sobretudo erodidas pelo que Walzer apodou de "imperialismo de mercado", em que um número crescente de esferas da vida social passa a ser regido pela lógica da compra e da venda promovida pelas incensadas empresas e seus gestores. Os mercados têm de ser contidos para funcionarem decentemente. As desigualdades que estes geram também.

Investigação sociológica recente indica que os países com maior desigualdade económica são também aqueles onde é maior a corrupção. A injustiça social torna a comunidade política uma miragem, dificultando a existência de movimentos cívicos robustos e de uma cidadania atenta e interventiva, uma das melhores formas de traçar as linhas que dificultam a expansão do dinheiro para além da sua esfera própria, ou seja, a corrupção.

O combate à corrupção não pode ficar circunscrito à esfera da polícia e dos tribunais, embora haja muito a fazer aqui. O bom funcionamento desta esfera também depende da redução da desigualdade económica e dos enviesamentos de classe que esta gera. Mais uma tese de economia moral...

A crónica do i pode também ser lida aqui.

2 comentários:

beijokense disse...

A economia não explica tudo nem é o principal factor por detrás da corrupção. Quando existe uma percepção generalizada de que, para "passar de ano", é indiferente estudar ou não estudar; para ter um diploma, tanto faz saber como não saber; os incompetentes e os ignorantes têm a mesma oportunidade de captar os "bons empregos" do que os competentes e 'sabedores'; nesse caso, a desigualdade joga um papel secundário.
A nossa cultura valoriza o desenrascanço; o golpe na fila; a fuga aos impostos; a cábula no exame; os candidatos a PM com currículo académico e profissional cheio de pontos obscuros.
Poderemos ensinar às crianças que é dos pobres o Reino dos Céus, mas seria mais fácil para elas apreenderem a ideia se vissem algum rico a ser conduzido ao Inferno :)

P.S. de forma leve, escrevi sobre a importância dos valores na relação entre peso do Estado e corrupção em Julho passado.

Ana Paula Fitas disse...

Vou fazer link. Obrigado.
Abraço :)