Uma notícia publicada ontem no DN chama a atenção para o tráfico internacional de órgãos humanos: «esse tráfico corre de sul para norte do globo, de asiáticos e negros para brancos, de mulheres e crianças para homens e de pobres para ricos». Ou seja, como sempre há grupos que são sistematicamente o objecto enquanto que outros são sempre o sujeito que controla a transacção.
Esta questão da compra e venda de órgãos interpela os nossos melhores instintos e razões morais. Bloquear tal transacção comercial representa a afirmação de que existem certas coisas que não devemos poder comprar e vender numa sociedade decente. Questão de princípio, mas também questão de protecção daqueles que em circunstâncias desesperadas, quase sempre causadas pela pobreza mais extrema e por todas as formas de discriminação, podem ser tentados a dar um passo em frente na submissão da sua humanidade básica à mercantilização da vida. Como mostra o DN, muitos fazem-no apesar de todas as proibições.
A natureza voluntária das transacções em qualquer «mercado» não pode ser um pressuposto da análise, como acontece entre os liberais. É preciso ter atenção ao contexto em que os agentes transaccionam e ao seu grau diferenciado de autonomia e de poder. É por isso que não basta proibir certas transacções. É preciso criar condições para que ninguém tenha de realizar «escolhas» trágicas. Como vender um órgão para poder colocar comida em cima da mesa.
Nota: Sobre a ideia de «transacções desesperadas» veja-se uma obra maior da filosofia política, As Esferas da Justiça (1983) de Michael Walzer, publicada entre nós numa excelente edição da Presença (1999). Para quem não acredita que «o mercado» é o alfa e ómega da organização da vida em sociedade.
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