Em visita recente ao Paquistão, o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, obrigou-nos a encarar a “carnificina climática” (expressão sua) que aí testemunhou. Os eventos extremos que assolaram o país nos últimos meses oferecem-nos um vislumbre de um futuro marcado pelo exacerbamento das alterações climáticas, especialmente em territórios vulneráveis que enfrentam, simultaneamente, crises humanitárias, económicas e políticas.
quinta-feira, 15 de setembro de 2022
Carnificina climática
Em visita recente ao Paquistão, o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, obrigou-nos a encarar a “carnificina climática” (expressão sua) que aí testemunhou. Os eventos extremos que assolaram o país nos últimos meses oferecem-nos um vislumbre de um futuro marcado pelo exacerbamento das alterações climáticas, especialmente em territórios vulneráveis que enfrentam, simultaneamente, crises humanitárias, económicas e políticas.
quarta-feira, 14 de setembro de 2022
Vermelho também é cor
O Caderno Vermelho, dirigido por Manuel Gusmão, é a publicação do Sector Intelectual de Lisboa do PCP, partido que, como se vê, é condição necessária, embora naturalmente não suficiente, para qualquer alternativa no rectângulo. Acham que o enfraquecimento deste campo não ajuda a explicar a radicalização neoliberal do PS? O posicionamento face à viciosa campanha anticomunista é de resto um teste do algodão neste contexto. O último número foi lançado na Festa do Avante. Deixo então aqui o contributo amigo que dei para esse caderno.
De um blogue avermelhado para um caderno vermelho
O blogue de economia política Ladrões de Bicicletas foi fundado em 2007, nas vésperas da maior crise desde a Grande Depressão. A crise, sempre a crise. Hoje, o historiador económico Adam Tooze fala mesmo de “policrises”, tal a sua variedade e entrelaçamento. A verdade estará na totalidade de um sistema capitalista, de matriz neoliberal, em decomposição aparente.
O que se segue é então uma seleção de algumas entradas do blogue, escritas entre março e julho de 2022. Partilho uma vez mais com o leitor do Caderno Vermelho algumas pistas sobre sintomas mórbidos, da guerra à campanha anticomunista, passando pela transferência maciça de rendimento do trabalho para o capital, sem perder, apesar de tudo, a esperança numa outra forma de economia política, continuando a tentar ser fiel a uma ideia simples: “aprender, aprender, aprender sempre”.
24 de março
1. O complexo militar-industrial é a forma norte-americana de política industrial consensual e agora reforçada, o chamado estado desenvolvimentista escondido;
2. Reforçar o complexo militar-securitário é a forma que a Alemanha tem de contornar os limites ordoliberais autoimpostos ao investimento público;
3. Confirmando que a globalização e a desglobalização são armas políticas, as sanções económicas são contraditórias: exibem o poder do centro capitalista e podem acentuar a desconexão económica num mundo assim mais multipolar;
4. A inflação é definitivamente um fenómeno real, tendencialmente puxada pelos aumentos dos custos;
5. Os principais preços numa economia capitalista, a começar na taxa de juro e a acabar na energia, são, ou podem ser, politicamente determinados;
6. O preço do pão continua a ser um termómetro da legítima insatisfação plebeia e dos correspondentes riscos para as hierarquizadas ordens estabelecidas;
7. A guerra é o teste à resiliência das formas de economia política dominantes: pode exportar-se violência e importar-se lutas de classes intensificadas;
8. A aparentemente etérea economia da informação e do conhecimento depende de coisas bem materiais, confirmando que a economia é sempre geopolítica.
9. As desigualdades económicas cavadas e os impérios capitalistas sempre armados continuam a ser a principal fonte de guerras e de inimizades entre os povos.
10. A economia convencional, ahistórica e pretensamente apolítica, sem tempo e sem espaço, é imprestável.
terça-feira, 13 de setembro de 2022
Críticas que são de amor
Na TVI, António Costa defendeu-se, atacando.
Quando questionado sobre se os pensionistas não iam ficar prejudicados face àqueles 6 milhões de portugueses que vão receber um apoio extraordinário de 125 euros, disse:
António Costa (AC): - Não. (...) Para todos os pensionistas cujas pensões estão sujeitas a actualização, até 5300 euros, haverá um suplemento extraordinário correspondente a 50% do valor da sua pensão. Até ao próximo dia 8/10...
José Alberto Carvalho (JAC): - Mas isso não significa que os pensionistas vão receber mais...
AC: - Posso terminar? Até ao próximo dia 8/10, todos os pensionistas da Segurança Social receberão pensão e meia. No dia 19/10, todos os pensionistas da Caixa Nacional de Pensões [Caixa Geral de Aposentações ou Centro Nacional de Pensões?] receberão pensão e meia. Portanto, é um suplemento extraordinário (...) Varia obviamente do montante da pensão - metade é metade (...) - mas creio que não há nenhuma pensão em que o suplemento extraordinário seja inferior aos 125 euros.
Pedro Santos Guerreiro (PSG): - Mas ao dividir em metade este ano e metade no próximo ano, está a prejudicá-los no futuro. A prejudicá-los a partir de 2024. Já todos percebemos o truque de retórica, mas aconteça o que acontecer, por causa de uma medida tomada, em 2024 os pensionistas vão perder poder de compra.
AC: - Primeiro, não há truque nenhum. Nem de retórica, nem de coisa nenhuma. (...) Nós temos um suplemento extraordinário que pagamos em Outubro. Ponto final. Tivemos aliás a transparência, no discurso que apresentei, de dizer não só qual é o suplemento extraordinário que pagamos em Outubro, como anunciar desde já que vamos apresentar na Assembleia da República (AR) uma proposta - que será discutida na próxima 6ªfeira - para fixar o aumento das pensões para 2023. Se quisesse fazer algum truque, teria apenas apresentado o suplemento extraordinário, nada tinha dito sobre as pensões do próximo ano, porque como sabe só em Novembro é que se costuma anunciar qual é o aumento (...). E eu quis fazê-lo já porque quis deixar desde já claro que iremos apresentar na AR uma lei para vigorar em 2023 (...).
PSG: - Qualquer que seja o aumento decidido daqui a um ano, haverá sempre uma perda dos pensionistas em relação do poder de compra face àquilo que seria a aplicação normal da lei.
AC: - Eu fui muito claro na minha intervenção. O que eu disse é que, entre o suplemento extraordinário e o montante que propusemos à AR que seja o aumento do próximo ano, garantimos que até ao final de 2023 (...) os pensionistas recuperarão o poder de compra face à inflação deste ano. (...)
JAC: - Porque utiliza a expressão na negativa "Não vão perder poder de compra?
AC: - Pelo seguinte... Haa.. Nós temos duas preocupações. Garantir o poder de compra dos pensionistas - e portanto entre o suplemento extraordinário e o aumento proposto, cobre aquilo que é a inflação prevista para este ano. E temos outra preocupação fundamental que é garantir a sustentabilidade futura da Segurança Social. E aquilo que não poderíamos fazer, de uma forma responsável, era ter um ano de inflação absolutamente extraordinário e atípico (...) e transformar esta inflação extraordinária e atípica deste ano com um efeito permamente.
Resumindo:
Homenagear uma imprescindível
Soube anteontem, através do Público, que faleceu Barbara Ehrenreich (1941-2022), uma grande ensaísta crítica da economia política e imoral norte-americana. Por coincidência, comprei na última Festa do Avante, pela módica quantia de um euro, o seu único livro editado em Portugal – Salário de Pobreza, editado pela Caminho, uma editora que faz falta. Recensei-o, em 2005, para o Le Monde diplomatique – edição portuguesa. Deixo aqui a recensão, singela homenagem a uma intelectual imprescindível:
“Uma estranha propriedade óptica da nossa sociedade altamente polarizada e desigual torna os pobres quase invisíveis aos seus superiores económicos”. O objectivo deste notável ensaio-reportagem é dar visibilidade à pobreza que se esconde no trabalho assalariado mal remunerado que ocupa nos EUA tantos trabalhadores, sobretudo no sector dos serviços. Isto num período (1998-2000) em que este país, em virtude dos seus ritmos de crescimento económico e da sua capacidade para gerar emprego, era apresentado pelo neoliberais de todas as latitudes como o modelo de resolução de todos os problemas socioeconómicos.
Um “mercado de trabalho” desregulamentado onde os despedimentos são fáceis e a precariedade está instituída, a que se junta um movimento sindical altamente enfraquecido e uma reforma na assistência social que se traduziu num corte profundo das prestações sociais, geraram um caldo de cultura que explica o decréscimo, desde a década de setenta, dos salários reais auferidos pelos trabalhadores mais vulneráveis nos EUA. A pobreza que “cheira demasiado a medo” é o resultado inevitável da instituição desta ficção grosseira que aprofunda a mercadorização do trabalho.
Abandonando uma vida desafogada de jornalista e ensaísta premiada, Barbara Ehrenreich decidiu muito simplesmente “verificar se conseguiria fazer corresponder rendimentos e despesas, como as pessoas verdadeiramente pobres fazem todos os dias”, engrossando o contingente de trabalhadores que se dedicam a executar tarefas mal pagas.
segunda-feira, 12 de setembro de 2022
Mais um duelo
Depois do plano de emergência do PSD, participei no “duelo” do Expresso da semana passada, tendo, uma vez mais, Pedro Brinca como oponente: O plano apresentando pelo Governo é o plano de que o país precisa? Não:
domingo, 11 de setembro de 2022
sábado, 10 de setembro de 2022
Receita para afundar a sociedade
Receita para afundar a sociedade: produzir uma recessão para acompanhar esta inflação.
Como escreveu a CNN,
depois há um cenário adverso para o caso de a guerra na Ucrânia e os seus efeitos económicos se prolongarem por muito mais tempo [devia ser o cenário base, digo eu]. Neste cenário, a zona euro entraria em recessão no próximo ano, com a economia a recuar 0,9% e a taxa de inflação manter-se-ia elevada com os preços a subirem a um ritmo de 6,9%.Portanto, apesar das ajudas, o povo continuará a perder poder de compra com aumentos de salários e pensões inferiores à inflação e, para "ajudar à missa", o BCE continua a aumentar os juros para que as famílias e as empresas paguem mais pelos seus empréstimos.
E isto é feito em nome do combate a uma inflação que é determinada pelos custos na oferta e por abusos especulativos em grandes empresas com poder de mercado [aumento do preço superior ao aumento dos custos]. De notar que até Vítor Constâncio está preocupado com esta orientação da política monetária.
Quer dizer, reduz-se o consumo e o investimento, gera-se desemprego e desce o produto (PIB). Entretanto, o défice e a dívida pública - em % do PIB - sobem porque o denominador da fracção diminuirá.
Assim, afunda-se deliberadamente a economia e a sociedade em nome do (suposto) combate à inflação, do mito das "contas certas" e da omnipotente "confiança dos mercados financeiros".
Só me resta esperar que até ao fim do ano ganhem juízo e mudem de rumo, mas estou pessimista. Estejam atentos às eleições em Itália.
Ponto de viragem da política monetária
A presidente do BCE, Christine Lagarde, reconheceu ontem que subir as taxas de juro não resolve o problema da inflação atual: "Se a causa é predominantemente da oferta e dos preços da energia, isso é um trabalho para outros". Dito isto, o banco central decidiu... subir as taxas de juro.
Ao subir as taxas de juro, o BCE está a aumentar os custos do crédito com o objetivo de reduzir o consumo e o investimento. Esta compressão da procura terá um impacto negativo na atividade económica e no emprego: na prática, a política do banco central induz uma recessão com enormes custos sociais associados ao desemprego e à quebra dos salários, como se tem escrito neste blog (aqui ou aqui). O próprio BCE prevê um "abrandamento substancial" da economia da Zona Euro até ao final do ano.
Só que a inflação atual resulta de problemas do lado da oferta - mais precisamente, da disrupção das cadeias de produção e distribuição internacionais de algumas matérias-primas, como os combustíveis fósseis ou os bens alimentares, após o início da guerra. Comprimir a procura pode estancar a subida dos preços, mas fá-lo à boleia de um aumento do desemprego, da pobreza e das desigualdades. Uma resposta progressista à crise energética faz-se com regulação de preços, compressão de margens e lucros extraordinários e investimentos públicos na produção doméstica de energias renováveis e na eficiência energética, reduzindo as necessidades de consumo.
Cada vez mais bancos centrais estão a aumentar as taxas face à inflação, como se vê no gráfico acima. Numa altura em que os preços da energia já estão a afetar as economias, a inversão da política monetária aumenta os riscos de uma recessão que vai atingir sobretudo os mais vulneráveis - aqueles que supostamente se quer proteger.
sexta-feira, 9 de setembro de 2022
Vai haver ou não corte nas pensões?
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Ou seja, a ministra Ana Mendes Godinho acha que a actual fórmula de actualização das pensões (ou, quem sabe? um dia da própria fórmula de cálculo do valor das pensões...) põe em causa a sustentabilidade da Segurança Social. Mas, apesar de tudo isso e de a ministra não saber "como, para onde" irá redundar a mudança da fórmula, sabe que não haverá "cortes, nem agora nem no futuro".
Mas nesse caso, para que se mudará a fórmula?
Fernando Medina já dissera algo semelhante, ao afirmar que a fórmula não fora desenhada para conjunturas de inflação elevada: "Nós vivemos durante muitos anos num contexto de inflação baixa e também de crescimento baixo e a fórmula estava desenhada para esses momentos". Ou seja, por outras palavras, quando a inflação é mais elevada, os pensionistas deverão esperar um corte no poder de compra da sua pensão, porque é impossível às contas da Segurança Social cobrir a evolução da inflação.
As duas declarações parecem contraditórias. Mas tudo depende do conceito de "corte de pensão".
A questão do arrendamento
«A expressão do arrendamento em Portugal está intrinsecamente associada à evolução do crédito à habitação e do regime de casa própria, não refletindo assim os alegados "efeitos perversos" de uma regulação que é claramente favorável aos proprietários. (...) O que significa, por conseguinte, que a proclamada "crise de confiança" do setor apenas serve um discurso que se habituou, sem fundamento, a encarar com hostilidade um certo estilo de intervenção do Estado num domínio essencial dos direitos sociais constitucionalmente consagrados, como é o da habitação».
O resto da crónica pode ser lido no Setenta e Quatro.
quinta-feira, 8 de setembro de 2022
Os três d do BCE
Uma economia imoral
Isabel Jonet dá-nos aqui algumas pistas úteis para caracterizar o que deve ser um bom pobre de família. Deve ser uma pessoa responsável, evidentemente sem dinheiro, mas que poupa naquilo que não tem e sobretudo não o gasta de uma só vez. E para isso precisa de ser formada ao que Isabel Jonet chama de racionalidade económica ou, em linguagem de pobre de família, de magia económica.
Um dos principais traços da economia moral do neoliberalismo é muito bem sistematizado por Luísa Semedo. O resto do artigo é ainda melhor a expor a imoralidade que resulta da sua institucionalização desgraçadamente em curso.
quarta-feira, 7 de setembro de 2022
Miséria de "socialistas"
Ao negar a reposição do poder de compra salarial, com um medo ilógico de uma "espiral inflacionista", e ao adiar sem prazo a discussão do prometido acordo sobre rendimentos e produtividade - que supostamente deveria fazer subir o peso percentual dos salários no PIB para a média da UE (reduzindo o dos lucros) - António Costa e Fernando Medina parecem inserir-se num tronco de pensamento que é partilhado pelos economistas que pensam como... Isabel Jonet.
No fundo, é como um rico quando diz a um pobre: aqui tem uma esmolinha, mas não gaste tudo de uma vez... que lhe faz mal.
(Breves) notas críticas sobre o plano do Governo
As medidas ontem anunciadas pelo Governo merecem um rigoroso escrutínio, capaz de ultrapassar o manto de marketing político em que foram encobertas e de nutrir com argumentos o campor da resistência progressista à política do governo.
Afinal, que programa apresentou o Governo?
O Governo apresentou um programa que coloca o valor de atualização das pensões abaixo do que está legalmente estabelecido e coloca o Estado a subsidiar os lucros das energéticas (baixando os impostos sobre alguns bens energéticos, sem tocar nos lucros extraordinários que registaram), enquanto aceita a livre desvalorização dos salários, quer não aumentando o salário mínimo nacional, quer não aumentando os salários do Estado, quer não intervindo em sede de negociação coletiva para promover aumentos salariais.
Esta rejeição do aumento dos salários como medida transversal de combate ao aumento do custo de vida tem por base dois argumentos implícitos falsos.
1) Colocaria pressão sobre a procura e isso agravaria a inflação - Não é verdade, porque estimativas como a capacidade produtiva instalada, a taxa de atividade e a taxa de desemprego não apontam para nenhum excesso de procura. Essas variáveis apresentam valores semelhantes a outros momentos do passado que não se traduziram em subidas generalizadas de preços.
2) Existe o risco de uma espiral salários-inflação, em que qualquer aumento salarial nominal seria mais do que compensado pela inflação. Não é verdade, porque, dada a muito reduzida capacidade reivindicativa presente do fator trabalho, não é razoável assumir que existirá uma transmissão integral do valor de crescimento dos salários para os preços. Imprabilidade que, de resto, é confirmada por toda a evidência empírica até agora. Isto é, um aumento generalizado de salários até poderia aumentar a inflação, mas menos do que o aumento nominal dos salários, o que causaria um aumento dos salários reais e uma resposta mais justa a esta crise. O remanescente seria absorvido pelas queda das margens de lucro e/ou por ganhos de produtividade. Seria a medida mais eficaz do ponto da estabilização macroeconómica e da justiça social.
Em simultâneo, o governo limita a atualização de rendas a 2%, mas garante pela via fiscal que o valor real dos rendimentos dos rentistas se manterá, com um subsídio estatal por via de um subsídio implícito em sede de IRS para os senhorios.
Desvalorizar salários, deixar crescer lucros e manter o valor real das rendas, eis o programa de classe do nosso governo "socialista".
Finalmente, o ascetismo do programa é justificado com a necessidade de redução da dívida pública. O que não deixa de ser irónico. A estratégia de combate à inflação do BCE irá colocar uma pressão tremenda sobre os custos de financiamento da dívida, pelo efeito que o aumento da sua taxa de juro diretora terá, como já está ter, no aumento das taxas de juro da dívida pública. Ao longo do tempo, com o refinanciamentos necessários a partir do elevado stock de dívida, isto significará uma pressão ainda maior sobre as contas públicas.
Por outro lado, a estratégia do BCE dificultará também a queda da dívida em percentagem do PIB, dado os seus efeitos recessivos. De caminho, continuaremos sempre com a corda na garganta, na esperança de que o mecanismo "especial" de intervenção do BCE nas dívidas dos países do sul tenha credibilidade junto dos mercados. Tudo na esperança que eles acreditem na quadratura do círculo: que, por um lado, o BCE vai contrair a política monetária e que, por outro lado, intervirá de forma expansionista nos mercados de dívida dos países do sul, se tal for necessário. Tem a estabilidade de um funâmbulo que caminha sobre um arame. Trata-se de numa zona monetária que soma medidas cada vez mais disfuncionais para justificar o injustificável e para fingir ser sustentável e estável o que, na verdade, não o é.
O ritmo de diminuição da dívida é pouco relevante, porque nunca conseguiremos reduzir a dívida para níveis seguros a tempo da próxima crise. Simplesmente, porque o valor é demasiado alto, há limites ao pendor recessivo das finanças públicas e o capitalismo tem crises regulares que revelarão a fragilidade macroeconómica em que estamos inseridos. Teremos ou não uma crise de financiamento soberano em função do interesse do BCE e dos mercados. Chama-se condicionalidade perpétua e é uma forma de neo-colonialismo e anti-soberanismo disfarçado.
Um governo decente - nem precisa de ser de esquerda - tem de exigir o fim deste projeto neoliberal falhado que é a moeda única ou a sua reforma radical para algo de social e economicamente justo. Continuar a justificar duas décadas de sacrifícios aos trabalhadores em nome de um projeto falhado é irracional.
Ouvir Medina e Costa a glorificar esta resposta é de uma tortura social e de um atavismo intelectual insuportáveis.
terça-feira, 6 de setembro de 2022
Diz que é uma espécie de esforço orçamental
Truques
Os truques de António Costa estão gastos. Nem sequer estou a pensar na manipulação das pensões já bem assinalada por Sérgio Anibal no Público – “Governo entrega bónus de meia pensão, mas pensionistas saem a perder a prazo”. O truque consiste em apresentar valores absolutos para impressionar: 2,4 mil milhões parece muito dinheiro para apoiar as famílias.
segunda-feira, 5 de setembro de 2022
Salários em espiral... recessiva
A maioria dos dados que têm sido publicados desde que muitos economistas começaram a alertar para o risco de uma "espiral inflacionista" - isto é, uma dinâmica de aumentos salariais que agravaria a subida dos preços - desmentem esta ideia. O gráfico acima, feito com base nos dados do INE sobre a evolução do salário médio e do índice de preços em Portugal, mostra que os salários reais têm caído acentuadamente nos últimos meses. A análise publicada pela base de dados Macrobond a partir das estatísticas nacionais disponíveis confirma um cenário semelhante nos países da Zona Euro.
Ao contrário do que ocorreu nos anos 70, quando se deu o último grande surto inflacionista associado a um choque petrolífero, os salários reais estão a cair a pique. Desta vez, é mesmo diferente. A Comissão Europeia prevê que a inflação atinja valores próximos dos 7% no país este ano. Para as pessoas cujos salários não forem aumentados, isto equivale a um corte de aproximadamente um mês de salário. Com a atualização aprovada pelo governo para a função pública (0,9%), o cenário não andará muito longe deste.
A estratégia do governo, que imputa a maior parte dos custos da crise a trabalhadores e pensionistas, já está a ter impactos negativos na procura interna: de acordo com os dados do INE, as despesas de consumo das famílias reduziram-se em 0,3% no 2º trimestre do ano (face ao trimestre anterior). As despesas com bens duradouros sofreram a maior quebra (-1,3%), seguidas das despesas com bens não duradouros e serviços (-0,2%). Já os gastos com bens alimentares aumentaram, o que pode dever-se ao aumento acentuado dos preços neste setor e ao facto de ser mais difícil abdicar do seu consumo.
O efeito de compressão da procura interna tem consequências para a atividade económica e para o emprego, visto que, para o conjunto da economia, os gastos de uns são o rendimento de outros. A redução do consumo afeta as atividades que dele dependem e os dados do investimento na economia portuguesa já dão alguns sinais disso mesmo: no 2º trimestre deste ano, o investimento caiu 4,4% face aos três meses anteriores.Embora ainda seja cedo para tirar conclusões, é expectável que a compressão da procura prejudique o investimento e o emprego, afetando o rendimento disponível das famílias. Face às opções orçamentais do governo, que recusou aumentar os salários e tem apostado apenas em pequenos apoios mitigadores, o risco que o país enfrenta é o de uma espiral recessiva, em que a quebra da procura se traduz numa redução da atividade económica, do emprego e do rendimento, o que por sua vez reduz ainda mais a procura. A fixação com o défice zero sai cara ao país.domingo, 4 de setembro de 2022
Revisitar o Orçamento para 2022
O atual contexto político é marcado pelo agravamento da crise social e, particularmente, pela crise dos rendimentos resultante pelo nível de inflação e a ausência de atualização salarial. Enquanto os lucros e dividendos das grandes empresas aumentam, também graças à perda real dos salários, quem vive do seu trabalho pode vir a perder o equivalente a mais de um mês salário até ao fim do ano.
A somar-se a esta colossal transferência de rendimento do trabalho para o capital, o país assiste ainda à degradação de serviços públicos essenciais, com destaque para o colapso do Serviço Nacional de Saúde, que se reflete também nos rendimentos do trabalho, uma vez que já está a conduzir a um aumento das despesas das famílias com cuidados de saúde. Das que podem, bem entendido.
Aqui chegados, é impossível não fazer um exercício de memória sobre as razões que levaram ao chumbo do Orçamento para 2022. Na altura, a esquerda confrontou o Governo PS com o sistemático adiamento das soluções imprescindíveis para salvar o SNS e com a indisponibilidade do PS para romper com o quadro de relações laborais saído do Governo de Passos Coelho, quadro esse que determina em boa medida a degradação dos salários reais, a par do orçamento que estagnou os salários da função pública.
A indisponibilidade do PS para qualquer compromisso sobre estas duas matérias levou a uma ruptura. Independentemente das explicações dos 3 partidos, BE e PCP foram duramente penalizados. O PS conquistou a maioria absoluta e acabou por aprovar um orçamento que determina o maior corte de salários desde 2012 (possivelmente, ainda maior, dependendo de como evoluir a inflação), com as inexplicáveis abstenções do PAN e Livre, justificadas com medidas abaixo de simbólicas.
A penalização eleitoral da esquerda será, para muito boa gente, uma boa razão para esquecer este processo, mudar de assunto e seguir em frente. É uma postura respeitável, mas penso que perdemos em fazer deste tema um tabu. Recentemente, numa notícia do Expresso, é um ex-governante do PS que faz o balanço crítico do conteúdo daquelas negociações. O balanço não podia ser mais lapidar: “O Bloco tinha razão em tudo”. A mesma frase poderia ter sido dita sobre o PCP, digo eu. A revitalização da contratação coletiva, a abertura de vagas em exclusividade para médicos, a valorização das carreiras da saúde teriam permitido combater muitos dos problemas a que hoje assistimos.
Em vez de negociar essas medidas, o PS preferiu apostar na chantagem e na dramatização e hoje confessa a sua impotência para resolver a crise social, recuperando a retórica dos sacrifícios e da “responsabilidade orçamental”. O mesmo discurso que, com Passos Coelho, lançou o país na recessão económica e crise social e – convém não esquecer – num aumento exponencial da dívida pública. A geringonça e a sua política de recuperação de rendimentos foi para o PS um parentesis. Na primeira oportunidade, o PS acabou com qualquer simulacro de convergência e regressou à política do extremo-centro.
O regresso à austeridade e à estratégia de empobrecimento é ainda mais grave no contexto de aumento das taxas de juro do BCE e regresso às regras orçamentais. Mesmo que o BCE mantenha os juros da dívida público controlados (o que não acontecerá sem condições), os orçamentos das famílias serão ainda mais sobrecarregados. E o cumprimento das regras orçamentais apenas irá servir para extremar a política que o Governo escolheu, mesmo quando as mesmas estavam suspensas.
O cumprimento dessas regras, associado à ausência de uma aposta nos serviços públicos, implicará a continuação da estratégia da concessão/privatização do SNS com ainda mais dinheiro a ir para os privados, e ainda menos dinheiro para o público. Um interminável ciclo vicioso de desinvestimento/privatização/desinvestimento. A demissão de Marta Temido nada faz para inverter essa lógica, sobretudo se for verdade que a escolha do seu sucessor será concertada com o Presidente. A gravidade de todo este cenário representa uma reviravolta histórica: a traição do legado de António Arnaut, um socialista de toda a vida. Um cenário catastrófico, mas não inevitável.
Revisitar o Orçamento que está a presidir à atual crise é revisitar as opções desastrosas de um documento que chegou a ser apresentado como “o orçamento mais à esquerda de sempre”, um artigo de marketing que chega a parecer uma piada de mau gosto. Mas é também pensar em alternativas que continuam disponíveis. Investir no SNS, renovando a aposta na provisão pública, que foi um modelo de sucesso durante décadas. Proteger os salários, controlando a inflação onde ela está a ser gerada, nos preços e lucros do setor da energia. Lidar com as causas estruturais do nosso endividamento, aproveitando a exigência climática para romper com uma década de mínimos históricos de investimento.
Meio ano de maioria absoluta chegou e sobrou para mostrar o que o país perdeu quando o PS ficou de mãos livres. É por isso que é pena que, fora ex-governantes anónimos, haja tão poucas vozes críticas dentro do PS. Quanto mais tempo passar sem que se reconheça o beco-sem-saída em que o Governo está a colocar o país, mais difícil será construir alternativas com futuro. E as convergências que as suportem. Ontem já era tarde.
(publicado originalmente no Setenta e Quatro)
sábado, 3 de setembro de 2022
Ir mais longe que «O Diabo»
No âmbito do cerco que tem sido feito, o jornal «I» decidiu ontem publicar uma capa, a todos os títulos inqualificável, sobre a Festa do Avante (e que obviamente não se reproduz aqui, optando-se por esta imagem com uns gatinhos simpáticos).
É que não é preciso estar de acordo com as posições do PCP - ou com a forma como por vezes comunica as suas posições - para achar a dita capa profundamente deplorável e democraticamente insalubre. E estamos tecnicamente a falar, importa não esquecer, de um jornal.
Até acho, na verdade, que a referida capa produz, em muitas pessoas, o efeito contrário ao pretendido. Da minha parte, o resultado foi bastante simples: organizar-me para passar pela Festa.
sexta-feira, 2 de setembro de 2022
O futuro do SNS é o futuro do País
Em suma, a erosão do SNS, e do Estado social em geral, é o previsível resultado da condição de um país pouco desenvolvido que entrou no "colete de forças" do euro abdicando de todos os instrumentos de política que lhe permitiriam executar uma estratégia de desenvolvimento.
Os fundos comunitários que recebemos são úteis mas sob condições de matriz neoliberal, anti-desenvolvimentistas. Mesmo que tivessem maior dimensão, nunca dispensariam uma estratégia de desenvolvimento, e essa é impossível sem política comercial geo-estrategicamente aberta, sem política industrial autónoma, sem política orçamental financiada pelo próprio banco central, sem política cambial flexível adequada à conjuntura e aos nossos interesses de médio e longo prazo, sem controlo dos movimentos de capitais especulativos.
Ou seja, discutir o futuro do SNS implica discutir o que, no fundo, leva o Governo a protelar e camuflar o que todos sabemos que precisa de ser feito. Mas este é um assunto tabu, mesmo para muitos cidadãos de esquerda.
Não há festa como esta
1970s vs. 2022: descubra as semelhanças
Para justificar a opção do governo, António Costa evocou a experiência do último grande surto inflacionista à escala mundial, durante a década de 1970: “Todos os que viveram nos anos 70 e 80 se recordam […]. Se os preços estão a aumentar porque os custos de produção estão a subir, então, por essa via [aumentos salariais], iríamos só aumentar mais os custos […] e cairíamos na ilusão do aumento do rendimento”.
Se olharmos para os dados disponíveis, o que se percebe é que a atual situação tem muito pouco a ver com a que se registou nos anos 70: se, nessa altura, os salários dos países da Zona Euro subiam numa tentativa de acompanhar a subida dos preços, o que temos hoje é uma quebra significativa dos salários reais (a amarelo no gráfico ao lado, retirado de uma análise do BCE). Aquilo a que os economistas costumam chamar "efeitos de segunda ordem" - isto é, aumentos consecutivos de salários e preços - não se têm verificado.Não há dúvida de que não são os salários que estão a alimentar a inflação. Pelo contrário, o próprio BCE reconhece que, além do impacto da guerra nos preços internacionais de algumas matérias-primas, o que está a impulsionar a inflação são os lucros extraordinários das empresas, sobretudo em setores como o da energia ou o da grande distribuição.
Neste contexto, a estratégia do governo português tem sido a de usar os salários reais como variável de ajustamento para absorver o choque da inflação. Por outras palavras, os custos do surto inflacionista estão a ser imputados sobretudo aos trabalhadores e pensionistas. Só que, além de ser socialmente injusta, a quebra dos salários reais tem um efeito de compressão da procura interna que afeta a atividade económica e o emprego. Todos os que atravessaram o período de 2010-2015 se recordam dos efeitos recessivos desta estratégia e das consequências que teve para o país.
Na Europa, há países que vão dando passos diferentes. Itália, Espanha, Grécia, Reino Unido e Bélgica já avançaram com impostos sobre os lucros extraordinários que permitem travar o aproveitamento da crise por parte das grandes empresas. Além disso, a receita obtida pode ajudar a financiar outras medidas necessárias, a começar pelo aumento dos salários e pensões pelo menos em linha com a inflação. Por cá, a recusa do governo em atuar é uma opção política que a maioria dos trabalhadores e pensionistas paga caro.
quinta-feira, 1 de setembro de 2022
Luís Aguiar Conraria, um "homem de esquerda" muito peculiar
Luís Aguiar Conraria, professor e economista que gosta de se identificar com a "esquerda desempoeirada", acaba de defender na SIC Notícias que o Governo não deve intervir no valor da atualização das rendas, porque a "subida esperada de 5% nem chega para compensar a inflação". Entretanto, os salários reais têm uma queda esperada de 4,6%. Conraria acha o valor real destinado ao rentistas é sagrado. Os salários, está implícito, podem perder valor real à vontade.
Num contexto em que a inflação e os salários reais evoluem em sentidos contrários, o mínimo que um Governo de esquerda deveria fazer seria intervir para amenizar ou mesmo travar o aumento das rendas. Porque um rentista, pela posse de propriedade, está sempre numa posição estrutural e relativamente mais favorável do que quem vive do seu salário. Seria uma política redistributiva de justiça elementar.
Mas para Conraria, nem pensar. Políticas redistributivas são instrumentos de quem não valoriza a justa distribuição dos títulos de propriedade. E considera-se o excelso professor um homem de esquerda...
É feio exigir desculpas a outros sem as exigirmos antes aos nossos
Num tweet (aqui), Porfírio Silva, deputado e membro do Secretariado nacional do PS, exigiu um pedido desculpas de Miguel Pinto Luz, Vice-Presidente do PSD, por ester ter responsabilizado Marta Temido pela morte de uma grávida enquanto esta era transferida para outro hospital. Como Porfírio nota, tudo aponta para que os procedimentos seguidos foram os corretos, pelo esta declaração configura um aproveitamento político de particular gravidade, dada a natureza sensível do acontecimento em que se baseia.
Mas dizem as regras elementares de decência que, perante igual ação, é feio exigir desculpas a outros sem antes as exigirmos aos nossos. Seria, pois, conveniente que Porfírio Silva não esquecesse que também António Costa disse, quando justificou a aceitação da demissão, que "[percebia] que [Marta Temido] estabeleça como linha vermelha a existência de falecimentos num processo que decorre em serviços sob a sua tutela" (aqui).
António Costa insinuou de forma bastante clara que aceitava a responsabilização pessoal da ministra por esse incidente, mesmo quando tudo já apontava em sentido contrário.
Pinto Luz e o PSD fizeram uma acusação infundada e soez, que merece um pedido de desculpas. Porém, a gravidade política desta declaração de António Costa, por se tratar de uma sua ministra e camarada (afinal, até lhe ofereceu o cartão com pompa, numa das mais bizarras encenações dos congressos do PS), é muito maior. Revela frieza política no lugar da solidariedade.
A faca corta de forma igual. Mas a dor é mais dilacerante quando é empunhada por alguém do mesmo lado da trincheira.
Mas qual?
Buraco que tem vindo a alargar-se há 5 anos... |
A subdirectora do jornal Diário de Notícias decidiu, hoje, em editorial, apoiar a SEDES, defendendo a sua "verdadeira visão estratégica". Mas estranhamente nem faz uma pergunta simples. "Qual?"
Apesar de lá estar Abel Mateus, ex-administrador do Banco de Portugal ao tempo de Cavaco Silva, defensor de todas as reformas neoliberais dos anos 90 que marcaram o futuro em que estamos; apesar de as receitas para o país cheirarem a mofo e estarem puídas de tanto terem sido usadas em escritos de jornalistas - nos anos 90, na década de 2000 de Durão Barroso, na década passada no mandato de Passos Coelho/Paulo Portas/Montenegro e Moedas - pois a jornalista Joana Petiz incorre no erro de omitir todo esse passado e de as repetir... como se fossem novas.
E pior: adopta como sua a táctica política de todos os quadros de direita: estabelecem um cenário negro (que é real), omitem um diagnóstico (que não lhes convém) e avançam com "receitas" mal concretizadas, mal quantificadas, para que ninguém possa ver como se aplicam, quem são os beneficiarios e os prejudicados, qual a sua eficácia. São um punhado de crenças mal explicadas e mera propaganda eleitoral de direita.
Diz ela:
Recordar faz bem à saúde
O primeiro hospital que Marcelo Rebelo de Sousa visitou como Presidente foi da CUF.
A CUF vendeu a sua participação na Brisa para poder fazer investimentos de centenas de milhões no capitalismo da doença, incluindo na batalha ideológica em curso.
A direita votou contra a institucionalização do SNS. O PS e o PCP votaram a favor.
No entanto, António Costa não tem a ética da convicção, nem a da responsabilidade, de socialistas como António Arnaut.
quarta-feira, 31 de agosto de 2022
O transporte público funciona e faz falta
Face à inflação e à escalada dos preços da energia, o governo alemão decidiu reduzir temporariamente o preço dos transportes públicos. A experiência durou três meses e os resultados, que começam agora a ser conhecidos, são bastante positivos: a redução do uso de carros diminuiu as emissões de C02 em 1,8 milhões de toneladas, o equivalente ao abastecimento de 350.000 casas durante um ano.
O documentário Cidades Impossíveis, realizado por Ricardo Moreira, já tinha demonstrado os benefícios do transporte público gratuito na promoção de padrões de mobilidade mais sustentáveis, usando o exemplo do Luxemburgo, onde a medida se encontra em vigor desde março de 2020.
Em Portugal, um estudo publicado em 2019 pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes concluiu que a redução dos preços dos passes teve consequências semelhantes: mais utilização de transportes públicos, menos recurso aos carros e menos emissões de dióxido de carbono. Dados úteis para afastar dúvidas sobre a importância do investimento público numa rede de transportes gratuitos e abrangentes.
terça-feira, 30 de agosto de 2022
Ecos de uma demissão
A história de Marta Temido é mais uma história da "queda de um anjo". De alguém que propôs uma Lei de Bases da Saúde à esquerda contra setores poderosos do seu partido, mas que logo revelaria incapacidade de formular uma estratégia para o SNS, comunicá-la e exigir recursos para a concretizar.
Pelo contrário, deixou-se enredar no jogo de propaganda erigido pelo PS para capitalizar a sua popularidade pública pós-pandemia com fins eleitorais (quem não sem lembra daquele triste número de receção do cartão do partido no congresso do PS?), sem fingir o seu próprio deslumbramento.
Para se ser uma boa ministra da saúde, não basta apenas a oposição, em tese, aos interesses instalados no setor. É preciso estar disposta a comprar as lutas políticas internas necessárias para ter o investimento que o SNS precisa para cumprir a sua missão.
É também preciso saber para onde se vai. Depois da aprovação da Lei de Bases da Saúde, foi sempre incapaz de promover um discurso analítico, estruturado das premissas para as conclusões. Essa indefinição estratégica paga-se cara.
Deve valorizar-se quem se opõe aos interesses obscuros do setor, mas isso de nada vale sem um ministra capaz de delinear um horizonte e capaz de entender que as bravatas orçamentais não se compaginam com um SNS que dignifique a sua missão.
Dificilmente o futuro trará boas notícias. Há muito que setores da esquerda (próximos dos quais me movo) lhe prestavam um apoio tácito, convencidos do que a sua gestão seria menos má do a de qualquer outro potencial ministeriável do PS. E teriam razão, muito provavelmente.
Mas há limites ao "menos mau". A estratégia do mal menor, se dilatada no tempo, sem respostas efetivas, apenas traz o lodo e o pântano, canalizando a justa indignação que se gerava para os verdadeiros inimigos do SNS. Por isso, a minha posição é pouco auspiciosa.
Convencido de que a manutenção da inoperância da ministra era cada vez mais tóxica aos defensores do SNS, acolho a demissão como positiva.
Também convencido de que na órbita do PS dificilmente existirá alguém que alie valores firmes no domínio da saúde e capacidade de concretização, não antecipo nada de bom. Malhas que a maioria absoluta tece, sem surpresa. Para gaúdio de uma direita em excitação crescente.
Fugas e falta de coragem
Mais uma vez, a direita não tem coragem de dizer ao que vem. Questionado - após a demissão da ministra da Saúde - sobre qual a mudança de política que o PSD defende para o SNS, o seu vice-presidente Miguel Pinto Luz disse em conferência de imprensa que essa resposta... cabia a António Costa dar.
Recorde-se que, aquando da discussão para a sua criação, o PSD votou contra a criação do SNS. E desde aí, a política do PSD - quando esteve em maioria absoluta no Parlamento - foi a de dar corpo a uma Lei de Bases que colocou o Estado a incentivar o... sector privado da Saúde, ao mesmo tempo que foi asfixiando financeiramente o SNS, suborçamentando-o. Isso aconteceu tanto nos anos 80, no mandato de Cavaco Silva, como no mandato do Governo Passos Coelho/Paulo Portas, tendo como elemento coordenador secretário de Estado adjunto Carlos Moedas e apoiado no Parlamento pelo seu líder Luís Montenegro.
Mas recorde-se igualmente que o PS, embora afirmando-se como o grande criador do SNS (omitindo o papel de outras forças políticas e sindicais), tem tido contudo uma política em zigue-zague, muitas vezes comprometida com os grupos privados na Saúde, que consolida a deriva da direita e que o impediu de resolver o problema da suborçamentação do SNS (ditado pelos constrangimentos neoliberais impostos ao nível da UE), que se reflectem na acentuação dos problemas de desarticulação de serviços e equipas, da ausência de carreiras aliciantes para os seus profissionais, obrigando o SNS a ir cedendo posições aos operadores privados que vão imponto as suas regras e a sua influência na esfera política.
Há décadas, mas sobretudo nos últimos anos que à esquerda do PS se critica esta hesitação. Esse foi o tema que esteve na base da posição do Bloco e do PCP na inviabilização do anterior governo PS. Ainda há cinco dias, o PCP alertava para a situação que politicamente se estava a criar, com a tentação governamental para a privatização do SNS.
Resta, pois, conhecer que condições a ex-ministra afirmou que "deixou de ter para se manter no cargo". Nomeadamente, saber as razões aventadas para a demissão da ministra durante a madrugada de hoje, às 1h15, aceite em comunicado do gabinete do PM... às 1h30.
segunda-feira, 29 de agosto de 2022
Divers faits
Augusto Santos Silva encarna a colonização neoliberal do PS. Em menos de 140 caracteres, toda uma ideologia incapaz de aprender o que quer que seja com o mundo desde pelo menos a crise iniciada em 2007-2008.
sábado, 27 de agosto de 2022
Sedes do neoliberalismo
Filha das ilusões tecnopolíticas da “primavera marcelista”, a Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES), fundada em 1970, é “herdeira ética de Sá Carneiro”, para usar a fórmula do seu atual presidente, Álvaro Beleza. Ou seja, é herdeira do liberalismo que sempre preferiu evoluções pouco democráticas a revoluções democráticas. É hoje uma das sedes do neoliberalismo.
O anúncio de um estudo coordenado por Abel Mateus, economista consistentemente neoliberal desde os anos 1970, e por Álvaro Beleza, médico de direita que milita no P sem S e consistentemente peneirento, confirma esta hipótese.
O resto da crónica pode ser lido no setenta e quatro.
sexta-feira, 26 de agosto de 2022
O impacto distributivo da inflação
Em julho, a taxa de inflação homóloga - que compara o nível geral de preços deste mês com o mesmo mês do ano passado - atingiu os 9,4% em Portugal. É o valor mais alto dos últimos 30 anos, sendo preciso recuar a novembro de 1992 para encontra um valor semelhante. A subida dos preços a um ritmo a que já não assistíamos há várias décadas está a afetar a maioria das carteiras. Mas o impacto não é igual para todos.
Um estudo publicado em julho por economistas do FMI estima que o aumento médio do custo de vida nos países europeus seja de cerca de 7% ao longo do ano. No entanto, os impactos variam consoante a classe social. Na esmagadora maioria dos países, o aumento do custo de vida para os 20% mais ricos é menor que o dos 20% mais pobres, como se vê no gráfico acima. O motivo é relativamente intuitivo: os grupos de menores rendimentos gastam maior proporção dos seus salários em eletricidade, gás e bens alimentares, onde a inflação se tem concentrado.quinta-feira, 25 de agosto de 2022
Como se queima um velho Estado
Por uma vez dou razão a Manuel Carvalho, em editorial no Público, até porque em matéria florestal por vezes abandona os seus preconceitos neoliberais: “O algoritmo e o futuro risonho da serra [da Estrela] revelam sinais de nervosismo, insensibilidade e desorientação. Na sua tentativa de relativizar a dimensão do desastre não deram conta que a relativização e a propaganda não funcionam”.
quarta-feira, 24 de agosto de 2022
O Qatar não é aqui
«No próximo dia 21 de Novembro, às quatro da tarde em ponto, hora local, um esférico denominado Al Rihla ("A Jornada"), fabricado pela marca Adidas, com uma cobertura de poliuretano texturizado e 20 gomos, será colocado no centro de um grande rectângulo de relva. (...) A empresa holandesa que forneceu os relvados dos últimos três Mundiais de Futebol recusou-se a colaborar neste torneio após ter sabido que só na construção dos estádios já pereceram mais de 6750 trabalhadores, todos oriundos da Índia, do Bangladesh, do Nepal e do Sri Lanka. Nenhum cidadão do Qatar, país anfitrião, morreu na edificação das infraestruturas que irão receber o Mundial da Vergonha. (...) Um inquérito de 2018 concluiu que os operários das obras do Mundial trabalhavam dez horas por dia, seis dias por semana, em condições deploráveis, sendo frequentes jornadas de trabalho de 12 a 14 horas e até casos de escravos que trabalharam 148 dias consecutivos sem uma única folga».
António Araújo, Qatar, o Mundial da Vergonha
«Este Mundial simplesmente não seria possível sem trabalhadores migrantes, que constituem 95 por cento da mão de obra do Qatar. Desde estádios e estradas à hospitalidade e à segurança, o torneio depende do trabalho árduo de homens e mulheres que viajaram milhares de quilómetros para sustentarem as suas famílias. Mas, com demasiada frequência, estes trabalhadores ainda descobrem que o seu tempo no Qatar é definido por abuso e exploração. (...) Enquanto órgão organizador do Campeonato do Mundo, a FIFA tem uma responsabilidade à luz dos padrões internacionais de mitigar riscos para os direitos humanos decorrentes do torneio. Isto inclui riscos para trabalhadores em indústrias como hospitalidade e transporte, que se expandiram massiçamente para facilitar a execução da competição».
Steve Cockburn (Amnístia Internacional, março 2021)
«Uma investigação do Guardian (...) revela que os trabalhadores têm sido forçados ao longo dos últimos anos a pagar milhares de milhões de dólares em taxas para poderem trabalhar. O jornal britânico estima que trabalhadores provenientes do Bangladesh tenham pago entre 1,5 mil milhões a dois mil milhões desde 2011 até 2020 e que nepaleses tenham pago entre 320 milhões e 400 milhões entre 2015 e a primeira metade de 2019. Os primeiros serão obrigados a pagar taxas entre 3.000 a 4.000 dólares e os segundos entre 1.000 a 1.500. Isto implica que o pagamento destes valores lhes custe pelo menos um ano de trabalho».
Esquerda.net, No Mundial do Qatar feito à custa de baixos salários, migrantes têm de pagar para trabalhar
terça-feira, 23 de agosto de 2022
Da alegada «falta de confiança» dos arrendatários à preferência das famílias pela casa própria
De facto, e de acordo com os dados do INE, cerca de 45% das famílias proprietárias preferiram mesmo ter casa própria (para lá das razões financeiras), representando apenas 2%, neste universo, os agregados que preferiam ter arrendado. Isto quando, entre as famílias arrendatárias, 64% preferia ter comprado casa, situando-se em apenas 10% os casos de preferência pelo arrendamento. E se 38% das famílias proprietárias consideraram que a compra foi o melhor investimento, apenas 3% das famílias arrendatárias depreciam a aquisição, desse ponto de vista.
Estes dados são importantes, ajudando a desconstruir a ideia, que persiste, de que a crise do arrendamento é uma «crise de confiança» dos proprietários (alegadamente suscitada pela intervenção do Estado e, em particular, pelo congelamento das rendas) e não o reflexo da preferência das famílias pela aquisição de casa própria, sobretudo a partir dos anos noventa, impulsionada pela redução das taxas de juro e pelos apoios e benefícios fiscais no acesso ao crédito.
De resto, e como já assinalámos repetidamente neste blogue (ver por exemplo aqui, aqui ou aqui), o peso relativo das «rendas antigas» foi-se tornando manifestamente marginal, perdendo capacidade explicativa da alegada crise de confiança dos arrendatários, nomeadamente na sequência da liberalização para os novos contratos, em 1990, e da aprovação da «Lei Cristas», em 2012, responsável por um aumento exponencial dos despejos.