Alguns adversários da reestruturação da dívida deviam ouvir com mais atenção os seus principais gurus: os empresários. Francisco Pinto Balsemão disse o que é óbvio para qualquer empresário: "Reestruturar dívida muitas vezes é um ato de boa gestão". Numa economia de mercado todos os dias, credores e devedores, renegociam dívidas com vista à sua reestruturação, todos os dias. Não fosse assim, as economias não tinham metade da dimensão que têm. Até ao fechar da renegociação o credor diz sempre que não aceita reestruturar e o devedor que não vai conseguir pagar, no final encontram-se sempre algures no meio. Qualquer empresário dirá: primeiro, que prefere receber a maior parte do que tem a haver do que correr o risco de não receber nada; segundo, que prefere que o seu cliente continue a existir e a comprar-lhe do que desapareça.
É precisamente porque o credor dirá sempre que não que a iniciativa só poderá partir de nós, nunca ao contrário.
Quanto ao timming, quem acha que são os mercados que ditam as nossas vidas dirá que todos os timmings são maus, quem acha que a dívida é insustentável dirá que quanto mais tarde pior. A história e o FMI dão razão aos últimos.
quinta-feira, 13 de março de 2014
Um novo Diário Económico

Depois de um manifesto que defende a reestruturação da dívida pública, que junta quem nunca tinha sido possível juntar desde o 25 de Abril, o Jornal de Negócios publica esta capa e dá o seguinte título à notícia sobre a conferência que organizou ontem: "A unanimidade contra a reestruturação e pelo consenso político".
O Jornal de Negócios caraterizava-se por ser um jornal equilibrado e altamente qualificado mas aqui comportou-se como mais um jornal de facção. A unanimidade verificada na plateia da conferência organizada pelo Negócios diz mais sobre os seus participantes e sobre quem os mobilizou do que sobre os consensos políticos possíveis em Portugal.
Culturgest: «Um feixe de ideias em progresso: de Chicago a Friburgo»
Tem hoje lugar a segunda sessão do ciclo de conferências «O neoliberalismo não é um slogan - histórias de uma ideia perigosa», promovido pela Culturgest e orientado pelo João Rodrigues. «Um feixe de ideias em progresso: de Chicago a Friburgo» é o tema desta segunda conferência, que se realiza no Pequeno Auditório da Culturgest (Rua Arco do Cego, Piso 1, em Lisboa), com início a partir das 18h30.
A entrada é gratuita (devendo as senhas de acesso ser levantadas 30 minutos antes) e a conferência será transmitida em directo aqui (já se encontrando disponível, também nesta página, o vídeo da primeira sessão).
quarta-feira, 12 de março de 2014
As contas do Primeiro Ministro mostram quem tem razão
De acordo com o Jornal de Negócios, Passos Coelho apresentou hoje assim os seus argumentos contra quem defende a necessidade de uma reestruturação da dívida:
“Se nós conseguirmos exibir nos próximos anos um excedente primário em torno de 1,8%; se juntarmos um nível de inflação não superior a 1%, e um crescimento anual em torno de 1,5% ou 2%, temos possibilidade de exibir o resultado que pretendemos: sustentabilidade da dívida pública com redução da dívida”
Refazendo as contas que já apresentei aqui e aqui, quis perceber melhor o que o Primeiro Ministro tem em mente. Para tal, parti dos dados previstos na 10ª avaliação do Memorando para 2014. Para fazer estas contas é também necessário um dado que Passos Coelho omitiu: o valor das taxas de juro. Para ser bondoso, assumi que a taxa de juro média iria manter-se idêntica à actual (o que só será possível com uma descida ainda mais acentuada dos juros de mercado - que estavam há pouco nos 4,5% para a dívida a 10 anos - ou com um programa cautelar, ou com um segundo resgate, ou com uma renegociação da dívida...). Os resultados são os que se vêm na tabela abaixo e nas notas que se seguem.
Ou seja:
1. Com as hipóteses apresentadas, a dívida pública estaria, de facto, em trajectória descendente. Mas o seu ritmo de descida seria menos de três vezes inferior ao previsto no Tratado Orçamental. Por outras palavras, o governo está a reconhecer que o Tratado que ratificou não é para cumprir. É bom saber.
2. O cenário orçamental que Passos Coelho tem em mente é ainda mais inaudito do que aquele que aqui referi. Em 17 anos só por seis vezes algum dos 28 Estados Membros da União Europeia (Alemanha em 2000 e 2008, Bélgica em 1996, Luxemburgo em 2008, Finlândia em 2003 e Suécia em 1996) tiveram saldos orçamentais tão elevados num contexto de crescimento tão modesto e de inflação tão baixa, como aquele que o Primeiro Ministro apresenta. Se a isto juntarmos a taxa de crescimento de consumo interno prevista para Portugal para os próximos anos (1,4% ao ano), o leque de ocorrências reduz-se a três (Alemanha e Luxemburgo em 2008, Suécia em 1996). A julgar por estes números, a probabilidade de isto acontecer num ano em Portugal é de 0,6%. A probabilidade de se verificar o que Passos Coelho assume como hipótese para Portugal durante mais de uma década é praticamente nula.
3. O cenário atrás apresentado pode, ainda assim, revelar-se demasiado optimista. Portugal creceu a uma taxa média anual de 1% entre 2000 e 2008. Hoje temos uma economia muito mais endividada (e, tal como o FMI reconhece, a dívida privada é um problema ainda mais grave do que a dívida pública) e sem perspectivas de crescimento do mercado interno (o que será agravado com a continuação da austeridade). Soa, pois, pouco credível a hipótese de que cresceremos a uma média de 1,5% ao ano durante duas décadas, nas condições actuais. Também é pouco credível que o país possa financiar-se com taxas de juro médias ao nível das actuais (a não ser, claro está, com uma forte renegociação da dívida...). Finalmente, é de esperar que a dívida pública venha aumentar por via de reclassificação estatítica, o que torna ainda mais improvável o cenário de sustentabilidade. Em resumo, o cenário apresentado pelo Primeiro Ministro é não apenas inaudito no que respeita à política orçamental, mas também marcadamente optimista do ponto de vista macroeconómico.
4. Face ao acima descrito, a obstinação em pagar a dívida nos termos actualmente previstos (de juros, prazos e montantes) conduziria o país para uma experiência radical de destruição do Estado e dos serviços públicos, e de desestabilização das relações sociais. É contra este aventureirismo que 70 pessoas, com ideias muito diferentes sobre muitas coisas, aceitaram pôr o seu nome num manifesto. Os directores dos jornais económicos estão com dificuldade em compreendê-lo (ver aqui e aqui). Mas isto diz mais sobre os próprios do que sobre as razões do manifesto.
Refazendo as contas que já apresentei aqui e aqui, quis perceber melhor o que o Primeiro Ministro tem em mente. Para tal, parti dos dados previstos na 10ª avaliação do Memorando para 2014. Para fazer estas contas é também necessário um dado que Passos Coelho omitiu: o valor das taxas de juro. Para ser bondoso, assumi que a taxa de juro média iria manter-se idêntica à actual (o que só será possível com uma descida ainda mais acentuada dos juros de mercado - que estavam há pouco nos 4,5% para a dívida a 10 anos - ou com um programa cautelar, ou com um segundo resgate, ou com uma renegociação da dívida...). Os resultados são os que se vêm na tabela abaixo e nas notas que se seguem.
Ou seja:
1. Com as hipóteses apresentadas, a dívida pública estaria, de facto, em trajectória descendente. Mas o seu ritmo de descida seria menos de três vezes inferior ao previsto no Tratado Orçamental. Por outras palavras, o governo está a reconhecer que o Tratado que ratificou não é para cumprir. É bom saber.
2. O cenário orçamental que Passos Coelho tem em mente é ainda mais inaudito do que aquele que aqui referi. Em 17 anos só por seis vezes algum dos 28 Estados Membros da União Europeia (Alemanha em 2000 e 2008, Bélgica em 1996, Luxemburgo em 2008, Finlândia em 2003 e Suécia em 1996) tiveram saldos orçamentais tão elevados num contexto de crescimento tão modesto e de inflação tão baixa, como aquele que o Primeiro Ministro apresenta. Se a isto juntarmos a taxa de crescimento de consumo interno prevista para Portugal para os próximos anos (1,4% ao ano), o leque de ocorrências reduz-se a três (Alemanha e Luxemburgo em 2008, Suécia em 1996). A julgar por estes números, a probabilidade de isto acontecer num ano em Portugal é de 0,6%. A probabilidade de se verificar o que Passos Coelho assume como hipótese para Portugal durante mais de uma década é praticamente nula.
3. O cenário atrás apresentado pode, ainda assim, revelar-se demasiado optimista. Portugal creceu a uma taxa média anual de 1% entre 2000 e 2008. Hoje temos uma economia muito mais endividada (e, tal como o FMI reconhece, a dívida privada é um problema ainda mais grave do que a dívida pública) e sem perspectivas de crescimento do mercado interno (o que será agravado com a continuação da austeridade). Soa, pois, pouco credível a hipótese de que cresceremos a uma média de 1,5% ao ano durante duas décadas, nas condições actuais. Também é pouco credível que o país possa financiar-se com taxas de juro médias ao nível das actuais (a não ser, claro está, com uma forte renegociação da dívida...). Finalmente, é de esperar que a dívida pública venha aumentar por via de reclassificação estatítica, o que torna ainda mais improvável o cenário de sustentabilidade. Em resumo, o cenário apresentado pelo Primeiro Ministro é não apenas inaudito no que respeita à política orçamental, mas também marcadamente optimista do ponto de vista macroeconómico.
4. Face ao acima descrito, a obstinação em pagar a dívida nos termos actualmente previstos (de juros, prazos e montantes) conduziria o país para uma experiência radical de destruição do Estado e dos serviços públicos, e de desestabilização das relações sociais. É contra este aventureirismo que 70 pessoas, com ideias muito diferentes sobre muitas coisas, aceitaram pôr o seu nome num manifesto. Os directores dos jornais económicos estão com dificuldade em compreendê-lo (ver aqui e aqui). Mas isto diz mais sobre os próprios do que sobre as razões do manifesto.
A isto chama-se realismo, consciência e sentido de responsabilidade, para com os portugueses e para com o futuro de Portugal
«Nenhuma estratégia de combate à crise poderá ter êxito se não conciliar a resposta à questão da dívida com a efectivação de um robusto processo de crescimento económico e de emprego num quadro de coesão e efectiva solidariedade nacional. Todos estes aspectos têm de estar presentes e actuantes em estreita sinergia. A reestruturação da dívida é condição sine qua non para o alcance desses objectivos.
(...) Deixemo-nos de inconsequentes optimismos: sem a reestruturação da dívida pública não será possível libertar e canalizar recursos minimamente suficientes a favor do crescimento, nem sequer fazê-lo beneficiar da concertação de propósitos imprescindível para o seu êxito. Esta questão é vital tanto para o sector público como para o privado, se se quiser que um e outro cumpram a sua missão na esfera em que cada um deles é insubstituível.
Sem reestruturação da dívida, o Estado continuará enredado e tolhido na vã tentativa de resolver os problemas do défice orçamental e da dívida pública pela única via da austeridade. Deste modo, em vez de os ver resolvidos, assistiremos muito provavelmente ao seu agravamento em paralelo com a acentuada degradação dos serviços e prestações provisionados pelo sector público. Subsistirá o desemprego a níveis inaceitáveis, agravar-se-á a precariedade do trabalho, desvitalizar-se-á o país em consequência da emigração de jovens qualificados, crescerão os elevados custos humanos da crise, multiplicar-se-ão as desigualdades, de tudo resultando considerável reforço dos riscos de instabilidade política e de conflitualidade social, com os inerentes custos para todos os portugueses.»
Estes são alguns dos parágrafos iniciais de um documento que ficará, seguramente, para a história da crise. O «Manifesto: Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente», a ler na íntegra, é subscrito por setenta personalidades dos mais distintos quadrantes políticos e sociais, situadas à esquerda e à direita e oriundas de diferentes universos da nossa vida colectiva, da academia ao mundo empresarial, dos sindicatos às confederações patronais. Traduz por isso um sobressalto cívico e político da maior relevância, contra a ignomínia da mentira grotesca e das ilusões infundadas; contra os consensos suicidas e a perpetuação, deliberada ou covarde, do bloqueio político em que governo, maioria parlamentar e Presidência da República crescentemente se empenham. Oferecendo um roteiro consistente e credível para inverter o abismo do empobrecimento, os subscritores do Manifesto denunciam a farsa dos «caminhos únicos» e «inevitáveis», que já revelaram a sua inviabilidade até à exaustão da evidência. Trata-se, por isso, de um gesto de profunda consciência e de profundo sentido de responsabilidade, para com os portugueses e para com o futuro de Portugal.
terça-feira, 11 de março de 2014
15 Março: CDA celebra o 35º Aniversário do Serviço Nacional de Saúde
«No ano da passagem dos 35 anos da criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), o Congresso Democrático das Alternativas assinala o acontecimento com uma iniciativa pública que pretende valorizar a contribuição deste serviço público para a melhoria da saúde dos portugueses, bem como discutir as perspectivas de evolução que será necessário imprimir à sua organização, funcionamento e prestação.
As reduções orçamentais do SNS em 1.600 milhões de euros nos três anos de aplicação do programa de ajustamento financeiro estão a ter impactos tanto no seu funcionamento como na qualidade dos serviços prestados. Divulgar e discutir os aspectos que estão a prejudicar o acesso em tempo útil dos portugueses aos cuidados de que carecem é, simultaneamente, um dever de cidadania e uma obrigação política de protecção deste bem público.
Para além de identificar os desenvolvimentos que estão a colocar o SNS em risco, importa discutir e propor orientações para a evolução do serviço público de saúde que possam influenciar as decisões políticas no sentido da defesa dos interesses das populações. Para o efeito foram convidados a dar a sua contribuição profissionais da saúde, sindicalistas, autarcas e políticos com ligações ao SNS.»
Grupo dinamizador: Ana Sofia Ferreira, Cipriano Justo, Guadalupe Simões, Helena Antunes, Isabel do Carmo, José Aranda da Silva, Manuela Silva, Maria Augusta de Sousa, Paulo Fidalgo e Pedro Lopes Ferreira.
Jornalismo de desinformação
Sexta-feira, 7 de Março, Telejornal da RTP1. Dispensem três minutos do vosso tempo para ver, na íntegra, a notícia sobre a descida das obrigações da dívida soberana portuguesa a dez anos (a partir do minuto 30 da primeira parte), em que se fica a saber que as taxas de juro «atingiram valores mínimos, que não são registados desde Maio de 2010». Isto é, em torno do «valor anunciado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros [4,5%], a partir do qual o país deixava de precisar de um novo resgate» (caso se cumprisse o programa de ajustamento, como cuidou de assinalar o próprio Rui Machete). Tal como se fica igualmente a saber que, «de acordo com os especialistas, os títulos portugueses são aliciantes para os investidores e representam agora menores riscos de incumprimento por parte de Portugal», fruto dos «indicadores que saíram relativamente à economia portuguesa» (presumivelmente estes, estes, estes ou ainda estes) e das «perspectivas que temos tido para os próximos trimestres» - pese embora o facto de não estarmos ainda, também segundo "os especialistas", «imunes a choques externos ou exógenos à nossa economia» (seja lá o que isso for, pois nós por cá todos bem).
O problema é que, a menos que Passos e Portas andem diligentemente, e sem que nós o saibamos, a cuidar do destino de outras economias da periferia europeia, esta descida das taxas de juro não é nem uma originalidade portuguesa nem mérito do governo. De facto, a tendência recente de descida é comum a países como a Grécia (sim, a Grécia), a Espanha ou a Itália, tendo-se acentuado em particular desde o início de 2014 (como mostram as séries de dados da Bloomberg).
Muito provavelmente, a maioria dos espectadores do Telejornal da passada sexta-feira na RTP1 não tem por hábito acompanhar os artigos e comentários de Jorge Nascimento Rodrigues no caderno de Economia do Expresso. Em contrário, teria acesso a explicações menos caseiras e não fabricadas (além de muito mais consistentes e credíveis) sobre a questão de saber «porque desceram os juros da dívida nos periféricos da zona euro». E poderia ainda apreciar melhor a mistificação intencional (e o seu verdadeiro alcance político) subjacente à sentença hoje proferida por Cavaco Silva, o presidente convicto de que «se existisse um acordo de médio prazo [entre PS, PSD e CDS/PP], que incluísse a próxima legislatura, as taxas de juro poderiam descer ainda mais do que aquilo que têm descido nos últimos dias». Isto é, uma afirmação em linha com a referência à «inspiração de Nossa Senhora de Fátima» nos resultados da sétima avaliação do Memorando de Entendimento, a 14 de Maio de 2013.
segunda-feira, 10 de março de 2014
Ainda as palavras que não valem nada
1. Despedir sem justa causa é ilegal mas não faz mal. A excelente crónica de Manuel Esteves permite sublinhar o seguinte: se há palavras que não valem nada são as destes governantes quando garantem que não estão apostados num modelo de baixos salários, já que todas, mas mesmo todas, as alterações nas regras do jogo no campo laboral não têm outro objectivo que não seja o de criar uma economia sem pressão salarial, uma economia com mais desigualdades salariais e precariedade e com uma parte do rendimento cada vez maior a ir para um capital cada vez menos produtivo.
2. O que une e separa a inglesa Virgin e a minhota Betweien. O oportuno artigo de Ana Cristina Pereira, que dá voz a José Soeiro e a Adriano Campos, à sociologia crítica enquanto economia política, permite sublinhar o seguinte: a direita repete a palavra “empreendedorismo” e evita a palavra “precariedade”, tendendo a esquerda a fazer o contrário. A esquerda tem mais respeito pela realidade e recusa utopias liberais que se traduzem em distopias para a maioria. Como aqui temos repetido, basta de empreendedores.
2. O que une e separa a inglesa Virgin e a minhota Betweien. O oportuno artigo de Ana Cristina Pereira, que dá voz a José Soeiro e a Adriano Campos, à sociologia crítica enquanto economia política, permite sublinhar o seguinte: a direita repete a palavra “empreendedorismo” e evita a palavra “precariedade”, tendendo a esquerda a fazer o contrário. A esquerda tem mais respeito pela realidade e recusa utopias liberais que se traduzem em distopias para a maioria. Como aqui temos repetido, basta de empreendedores.
domingo, 9 de março de 2014
Quando um presidente distorce a realidade para justificar a barbárie
Os capítulos do livro do Presidente da República que o Expresso aqui reproduz tentam passar uma leitura da realidade que pode ser sistematizada nestes termos: i) Portugal escapou a um segundo resgate, o que constitui um sucesso do programa de ajustamento; ii) é fundamental continuarmos a fazer o que as instituições europeias nos dizem, senão é o inferno; e iii) sendo assim, o melhor mesmo é continuarmos sob tutela externa directa nos próximos anos, pois não podemos fazer nada de diferente e assim sempre estamos mais protegidos.
Esta análise é coerente com o conservadorismo de Cavaco e contém alguns elementos de verdade. Mas, acima de tudo, é uma leitura enviesada e selectiva a vários níveis, construída com o propósito de promover a agenda do PR, mais do que o de clarificar a situação em que o país se encontra.
Em primeiro lugar, Cavaco faz uma leitura parcial e até equívoca do normativo comunitário (‘six pack’ + Tratado Orçamental + ‘two pack’). Como é costume nos documentos legais europeus, o normativo prevê excepções ao cumprimento estrito das regras que Cavaco refere – no que respeita, por exemplo, ao ritmo de redução da dívida pública em condições excepcionais, o que permite que a aproximação ao limite de 60% do PIB seja feita de forma mais moderada do que os 1/20 por anos previstos como regra geral, sem incumprir com o normativo. Além disso, Cavaco parece confundir a redução de 1/20 por ano (aplicado à diferença entre a dívida pública em percentagem do PIB e o limite de 60%) com a redução da dívida pública em 20 anos (uma coisa não implica a outra – vejam, por exemplo, a simulação que apresento no slide 41 desta apresentação).
Em segundo lugar, Cavaco insiste na ideia de que um programa cautelar é muito diferente de um segundo resgate. Sobre isto, convido à leitura deste texto, que me parece suficientemente esclarecedor.
Finalmente, Cavaco confunde deliberadamente rigor orçamental com o guião a que a troika, o governo e o próprio PR nos querem destinar. Todos deveríamos estar de acordo quanto à necessidade de reduzir desperdícios e assegurar a racionalidade e equidade da despesa pública, bem como do sistema fiscal. Isto é rigor orçamental – mas não é isto que Cavaco quer convencer-nos a aceitar como inevitável. O PR escreve – e com razão – que a regras europeias e o pagamento da dívida implicarão que Portugal registe, em média, um excedente orçamental primário anual de cerca de 3 por cento do PIB durante duas décadas (e isto assumindo taxas de crescimento económico real, de inflação e de juro que são francamente optimistas). Como procurei aqui mostrar, o que a troika, o governo e Cavaco querem que o país faça é algo nunca visto. E que só seria alcançável com uma destruição bárbara de tudo o que nos permite aspirar a viver numa sociedade decente. Cavaco está determinado a convencer os portugueses que esta escolha é melhor do que qualquer outra. Nós, portugueses, teremos de decidir se é isto que queremos para o nosso futuro colectivo.
Esta análise é coerente com o conservadorismo de Cavaco e contém alguns elementos de verdade. Mas, acima de tudo, é uma leitura enviesada e selectiva a vários níveis, construída com o propósito de promover a agenda do PR, mais do que o de clarificar a situação em que o país se encontra.
Em primeiro lugar, Cavaco faz uma leitura parcial e até equívoca do normativo comunitário (‘six pack’ + Tratado Orçamental + ‘two pack’). Como é costume nos documentos legais europeus, o normativo prevê excepções ao cumprimento estrito das regras que Cavaco refere – no que respeita, por exemplo, ao ritmo de redução da dívida pública em condições excepcionais, o que permite que a aproximação ao limite de 60% do PIB seja feita de forma mais moderada do que os 1/20 por anos previstos como regra geral, sem incumprir com o normativo. Além disso, Cavaco parece confundir a redução de 1/20 por ano (aplicado à diferença entre a dívida pública em percentagem do PIB e o limite de 60%) com a redução da dívida pública em 20 anos (uma coisa não implica a outra – vejam, por exemplo, a simulação que apresento no slide 41 desta apresentação).
Em segundo lugar, Cavaco insiste na ideia de que um programa cautelar é muito diferente de um segundo resgate. Sobre isto, convido à leitura deste texto, que me parece suficientemente esclarecedor.
Finalmente, Cavaco confunde deliberadamente rigor orçamental com o guião a que a troika, o governo e o próprio PR nos querem destinar. Todos deveríamos estar de acordo quanto à necessidade de reduzir desperdícios e assegurar a racionalidade e equidade da despesa pública, bem como do sistema fiscal. Isto é rigor orçamental – mas não é isto que Cavaco quer convencer-nos a aceitar como inevitável. O PR escreve – e com razão – que a regras europeias e o pagamento da dívida implicarão que Portugal registe, em média, um excedente orçamental primário anual de cerca de 3 por cento do PIB durante duas décadas (e isto assumindo taxas de crescimento económico real, de inflação e de juro que são francamente optimistas). Como procurei aqui mostrar, o que a troika, o governo e Cavaco querem que o país faça é algo nunca visto. E que só seria alcançável com uma destruição bárbara de tudo o que nos permite aspirar a viver numa sociedade decente. Cavaco está determinado a convencer os portugueses que esta escolha é melhor do que qualquer outra. Nós, portugueses, teremos de decidir se é isto que queremos para o nosso futuro colectivo.
sábado, 8 de março de 2014
Leituras

Miguel Abrantes, Dr.ª Maria de Belém, era mesmo a este Soares dos Santos que se queria referir?
«Belmiro sabe, melhor que ninguém, que a produtividade depende de muitos factores: da organização das empresas, da liderança, da aposta na formação, das condições de trabalho e, já agora, do tipo de bens que produzem. O preço por hora de quem trabalha numa fábrica de conservas ou de quem trabalha na BMW é seguramente muito desfavorável para o primeiro trabalhador - embora ele possa trabalhar mais tempo e melhor que o segundo. E porquê? Porque, como é óbvio, o bem final produzido é muito mais valorizado no caso do segundo trabalhador que no primeiro. Só que não são os trabalhadores que decidem que bens devem produzir. São os empresários, são os investidores. E se constatarmos que na última década em Portugal, o investimento caiu em sete, percebemos que quem mais tem contribuído para a baixa produtividade da economia portuguesa são... os empresários.»
Nicolau Santos, Belmiro e os trabalhadores alemães
«Na sua senda de reduzir os custos das empresas com os seus trabalhadores, foi proposto à troika uma redução das indemnizações por despedimentos ilegais, ou seja, despedimentos feitos sem que haja um motivo previsto na lei. (...) Para o Governo e troika trata-se de uma consequência lógica da redução das indemnizações por despedimentos legais que foi feita anteriormente. Acontece que uma coisa é uma compensação económica que é devida ao trabalhador por um acto legal. Outra é a indemnização a que este tem direito por ter sido vítima de uma ilegalidade que lhe custou o seu ganha-pão. Num país onde já é tão incomum um cidadão recorrer a um tribunal para fazer valer os seus direitos, o Governo toma a iniciativa de reduzir a compensação a que tem direito caso lhe seja dada razão.»
Manuel Esteves, Despedir sem justa causa é ilegal mas não faz mal
sexta-feira, 7 de março de 2014
Seminários ISCTE: «Inequalities in Portugal: an overview»
Tem início, na próxima segunda-feira, o Ciclo de Seminários promovido pela unidade curricular «Debates Contemporâneos sobre Teoria e Política Económica», do Programa de Doutoramento em Economia do ISCTE. Assumindo a natureza plural da Economia, valoriza-se a controvérsia em torno das ideias que informam o debate económico e os principais desafios das políticas contemporâneas. Pela sua transversalidade, os temas das sessões, que decorrerão até Maio, convocam o encontro entre diversos saberes e perspectivas, dirigindo-se não só a alunos de diferentes áreas disciplinares e ciclos de estudo, mas também à comunidade em geral.
O primeiro seminário, «Um olhar sobre as desigualdades em Portugal» será orientado por Renato Carmo e decorrerá na sala B104, entre as 16h00 e as 18h00 do próximo dia 10, no ISCTE-IUL.
Uma saída para o pleno emprego
(Fonte: New Deal economics)
As recomendações da troika insistem na redução dos salários dos portugueses, o que permitiria aproximar Portugal do promissor estatuto de "Vietname da Europa". A verdade é que também ainda não vi uma alternativa que torne viável a nossa permanência na zona euro com outro estatuto. A menos que se considere que mais integração política, mutualização das dívidas soberanas e empréstimos do BCE aos estados são parte dessa alternativa. Quem admite esta via de saída da crise não tem pressa de responder aos que hoje estão no desemprego. Da Alemanha vêm todos os dias mensagens de que esse caminho não é viável, mesmo que fosse desejável. De facto, não é uma alternativa política.
Acima de tudo, é dramático que a oposição até agora não tenha sido capaz de gerar uma alternativa credível, em que o pleno emprego figure como o objectivo central da política económica proposta. Na moeda única, amarrados ao Tratado Orçamental, o nosso horizonte é o da estagnação depressiva ou, na melhor das hipóteses, um crescimento com reduzida criação líquida de emprego. Uma oposição que ambicione ser alternativa não pode limitar-se à retórica das "políticas activas" de emprego, como se estivéssemos num tempo de desemprego estrutural, em que os sectores em crescimento carecem de mão-de-obra ao mesmo tempo que os desempregados têm de adquirir nova competências. Hoje, no tempo da segunda Grande Depressão, precisamos de recuperar a coragem política e o espírito inovador de Franklin D. Roosevelt.
Keynes disse nos anos 30: "O principal objectivo da política orçamental é o de resolver um problema real, fundamental, e no entanto simples [...] o de oferecer um emprego a qualquer pessoa." É disso que precisamos, de um programa público de criação de emprego para todos os que puderem e quiserem trabalhar (ver Pavlina Tcherneva, "Fiscal policy effectiveness: Lessons from the Great Recession", Real-World Economics Review no. 56). Uma interpretação rigorosa de Keynes mostra que ele não defendia um qualquer aumento da despesa pública. A sua estratégia de relançamento da economia baseava-se em projectos de criação de emprego à escala regional e local. O perfil dos desempregados, as necessidades sociais a satisfazer, as obras públicas indispensáveis à região, tudo seria avaliado e articulado na perspectiva da utilidade social dos projectos.
Importa lembrar que, para lá dos investimentos em reabilitação urbana de que muito precisamos, há outros tipos de carências nos meios urbanos. Há uma população idosa que precisa de serviços domésticos, de tratamentos em casa, de apoio nas deslocações. Muitas escolas têm falta de auxiliares e mesmo de professores. O mesmo se pode dizer do sector da saúde, em que a vertente preventiva deveria ser alargada. Fora das grandes aglomerações há imensas carências que são bem conhecidas dos eleitos locais. A preservação e valorização dos rios e florestas daria lugar a projectos criadores de emprego. O mesmo se pode dizer das actividades culturais. Em todas as áreas da provisão social há inúmeras carências e, por outro lado, há milhares de pessoas dispostas a aceitar um emprego a tempo inteiro ou parcial, com salário modesto mas digno, estável e integrado no sistema público de segurança social. Enquanto os restantes instrumentos da política económica levam algum tempo a induzir crescimento com criação de emprego no sector privado, este programa público criará, a curto prazo, milhares de empregos e impulsionará a economia através da procura interna de bens e serviços nacionais.
Pensando um pouco, faz sentido que a sociedade portuguesa ainda não tenha criado uma alternativa política que assuma o objectivo do pleno emprego. É que, para lançar um programa desta natureza teríamos de sair da zona euro. Por duas razões bem simples: precisamos de emitir moeda para o financiar; não é esse o modelo de sociedade que a UE nos fixou. Aproximando-se o fim do Memorando, a saída que verdadeiramente nos interessa é a saída do euro, uma saída para o pleno emprego, o grande tabu no pobre debate político português.
(O meu artigo no jornal i)
Palavra e memória
«O Orçamento (...) vai buscar a quem não pode fugir, que é aos funcionários públicos. (...) Estão-se a preparar para aumentar a carga fiscal. Como? Reduzindo as deduções que nós podemos fazer em sede de IRS (...) A política de privatizações em Portugal será criminosa nos próximos anos se visar apenas vender activos ao desbarato para arranjar dinheiro. (...) Nós não olhamos para as classes de rendimento a partir dos mil euros (...), dizendo aqui estão os ricos de Portugal, que paguem a crise. (...) Acusava-nos o Partido Socialista de querermos liberalizar os despedimentos: que lata! (...) As medidas agora anunciadas traduzem uma incompreensível insistência no erro. (...) Porque se atacam uma vez mais alicerces básicos do Estado Social. (...) Já ouvi o primeiro ministro [José Sócrates] dizer, infelizmente, que o PSD quer acabar com muitas coisas, e também com o 13º mês, e (...) isso é um disparate. (...) Eu não quero ser primeiro ministro para proteger aqueles que são mais ricos em Portugal. (...) Não dizemos hoje uma coisa e amanhã outra. (...) Nós precisamos valorizar cada vez mais a palavra, para que quando ela é proferida possamos acreditar nela.»
«É a pensar na conjugação das necessidades financeiras com a prioridade do emprego que o Orçamento para 2012 prevê a eliminação dos subsídios de férias e de Natal para todos os vencimentos dos funcionários da Administração Pública e das empresas públicas acima de mil euros por mês. Os salários situados entre o salário mínimo e os mil euros serão sujeitos a uma taxa de redução progressiva, que corresponderá em média a um só destes subsídios. (...) Esta medida é temporária e vigorará apenas durante a vigência do programa de assistência económica e financeira [Pedro Passos Coelho]. Muitos países da União Europeia – cito-lhe a Holanda, a Noruega, a Inglaterra, vários países da União Europeia – só têm doze vencimentos. Esta tem sido uma tradição mais acentuada nos países do Sul da Europa, Portugal, Espanha, Itália (...), aqueles que até se encontram nas piores circunstâncias. (...) A suspensão que está neste momento é por dois anos, enquanto decorrer o memorando de entendimento com a Troika [Miguel Relvas].»
«É a pensar na conjugação das necessidades financeiras com a prioridade do emprego que o Orçamento para 2012 prevê a eliminação dos subsídios de férias e de Natal para todos os vencimentos dos funcionários da Administração Pública e das empresas públicas acima de mil euros por mês. Os salários situados entre o salário mínimo e os mil euros serão sujeitos a uma taxa de redução progressiva, que corresponderá em média a um só destes subsídios. (...) Esta medida é temporária e vigorará apenas durante a vigência do programa de assistência económica e financeira [Pedro Passos Coelho]. Muitos países da União Europeia – cito-lhe a Holanda, a Noruega, a Inglaterra, vários países da União Europeia – só têm doze vencimentos. Esta tem sido uma tradição mais acentuada nos países do Sul da Europa, Portugal, Espanha, Itália (...), aqueles que até se encontram nas piores circunstâncias. (...) A suspensão que está neste momento é por dois anos, enquanto decorrer o memorando de entendimento com a Troika [Miguel Relvas].»
«O problema do debate político é que a sua palavra não vale nada. (...) Disse aqui que não podemos voltar ao nível salarial e ao nível de pensões de 2011. Ou seja, o senhor primeiro ministro tem um problema de palavra e tem um problema constitucional. Porque os cortes nos salários e nas pensões, que foram feitos durante estes três anos, foram feitos sempre com a desculpa que eram medidas pontuais, por causa do programa de ajustamento. (...) Foi isso que o senhor primeiro ministro veio cá dizer e agora afinal desdiz: o que era pontual é afinal permanente. Mas mais, o Tribunal Constitucional autorizou cortes nos salários, autorizou cortes nas pensões, porque eram transitórios. E portanto o que o senhor primeiro ministro vem cá dizer é que a sua palavra não só não vale - e o que era pontual é permanente - como quer ir contra a Constituição e tornar permanente o que já lhe disseram só podia ser transitório.»quinta-feira, 6 de março de 2014
Culturgest: «O neoliberalismo como reação: de Viena a Mont Pèlerin»
«Segundo alguns, o neoliberalismo é um slogan usado por anticapitalistas para caricaturar os seus oponentes. Segundo outros, é uma tentativa para regressar ao capitalismo laissez-faire.
Desaparecem, assim, os traços distintivos de um feixe transdisciplinar e transnacional de ideias que se desenvolveu a partir dos anos trinta do século XX, quando o termo entra em circulação, e que encontrou nos anos setenta a oportunidade para uma continuada hegemonia. A crise de 2007-2008, segundo muitos, teria marcado o seu fim, mas as políticas neoliberais aí estão, em força no nosso país e não só. Através de uma história crítica do neoliberalismo, como reação inicial aos "socialistas de todos os partidos", pretende-se expor as inovações intelectuais e os mecanismos económico-políticos por detrás de um projeto que busca encontrar soluções para democracias de alcance tanto quanto possível limitado, ou mesmo para regimes autoritários ditos de exceção, permitindo subordinar a atuação dos governos à promoção de políticas de concorrência mercantil em áreas crescentes da vida social. Seguindo a injunção de Margaret Thatcher – "a economia é o método, o objetivo é mudar a alma" – procurar-se-á caracterizar um imaginário social assente no chamado empreendedorismo, em que os indivíduos são declarados livres na medida em que estão imersos em mercados. Ancoradas na ideia de que a justiça social não passaria de inveja idealizada, as regras económicas neoliberais favorecem a concentração de recursos no topo da pirâmide social, mas têm um poder que vai para lá de interesses de classe.»
Depois das quatro conferências em torno do tema «Economia: uma ciência que transforma o mundo?», proferidas em Fevereiro por José Castro Caldas, a Culturgest recebe em Março o João Rodrigues, que conduzirá o ciclo «O neoliberalismo não é um slogan – histórias de uma ideia poderosa».
A sessão inaugural, «O neoliberalismo como reação: de Viena a Mont Pèlerin» tem hoje lugar a partir das 18h30 no Pequeno Auditório da Culturgest (Rua Arco do Cego, Piso 1, em Lisboa), devendo as senhas de acesso ser levantadas 30 minutos antes. A conferência será transmitida em directo aqui.
quarta-feira, 5 de março de 2014
Pedro Lomba e as recessões

Num dispensável exercício de hipocrisia política e esperteza saloia, o secretário de Estado adjunto Pedro Lomba ofereceu aos leitores do Público, na passada sexta-feira, uma crónica que envergonha a sua própria inteligência. O truque é simples: faz-se uma amálgama entre «a série de défices estruturais» que «Portugal acumulou (...) na última década» (défice externo, défice orçamental, défice de crescimento e economia) para, de uma penada, justificar a «recessão demográfica» e a «recessão migratória» em que o país se encontra.

Só é pena que, querendo encarar a sério o problema da «estagnação económica e social» (responsável pela «herança [do] desequilíbrio das contas públicas e da economia»), Pedro Lomba não tenha começado por se interrogar acerca do papel, nesse processo, da integração de Portugal na zona euro. Mas não, é muito mais fácil fazer a «amálgama das recessões» para suportar uma outra amálgama: a que pretende associar a imigração qualificada à contenção da emigração, a ideia absurda com que o secretário de Estado adjunto se prepara para dar a machadada final a um período de excelência em matéria de políticas de imigração.
terça-feira, 4 de março de 2014
segunda-feira, 3 de março de 2014
Ligações de economia política
Streeck é muito claro sobre as razões para a inexistência de uma União Europeia com orçamento redistributivo digno desse nome, em que as regiões ricas financiariam maciçamente as regiões pobres, aguentando-as à tona. Com efeito, a Europa não é um Estado e não o será, até porque os povos não o desejam, o que significa que o federalismo só pode ser furtivo, clientelar e perverso, incapaz de mobilizar lealdades populares. E, mesmo que os povos o desejassem, seria mais do que duvidoso que as transferências pudessem substituir com o mesmo sucesso a mobilização de instrumentos de política à escala nacional. Mas, infelizmente, como Streeck sublinha, nada nos diz que as alianças sociais que sustentam o Euro, e que na periferia incluem elites extrovertidas, as que gostam de moeda forte para viajar e importar bens de consumo mais ou menos conspícuos, não consigam manter um projeto que se aproxima cada vez mais de uma “operacionalização do modelo social hayekiano [anti-social-democrata] da ditadura de uma economia de mercado capitalista acima de qualquer correção democrática” (p. 252).
Excerto da minha recensão ao livro de Wolfgang Streeck. Foi publicada no último número da Revista Crítica de Ciências Sociais, dedicado a perspectivas interdisciplinares sobre consumo e crédito. O Nuno Teles, em coautoria com Ana Cordeiro Santos e Vânia Moreira, publicou aí um artigo sobre economia política do endividamento e do crédito. Neste contexto, chamo também a atenção para o artigo que Ana Cordeiro Santos e Vânia Moreira publicaram na Análise Social sobre a financeirização em Portugal, analisando aí a forma como o Banco que não é de Portugal tenta transferir para os consumidores, através de uma conversa sobre a promoção da literacia financeira, um fardo que deve recair sobre o sistema financeiro. Graças a uma certa economia política, é possível ver que estas coisas - euro, financeirização, endividamento ou poder da banca - estão todas ligadas num tempo em que tudo parece estar à venda.
domingo, 2 de março de 2014
Ainda sobre ter razão antes de tempo
Em 1997, PS e PSD degladiavam-se para ver quem era o mais acérrimo defensor da entrada de Portugal na moeda única (que seria decidida no ano seguinte). Os argumentos utilizados para defender esta opção chegavam a ser embaraçantes para quem tinha o mínimo de formação económica. Lembro-me, em particular, de um folheto distribuído porta a porta, com a cara de António Guterres, então a secretário-geral do PS e primeiro ministro, em que surgia destacada essa imensa vantagem que seria podermos ir de Lisboa a Helsínquia sem pagar comissões pela troca de escudos pela moeda local, cada vez que passássemos uma fronteira.
Foi neste ambiente de displicência nacional que, uns meses antes de ter sido produzido o folheto referido nest post do Nuno Teles, um conjunto de estudantes e recém-licenciados do ISEG, que incluia alguns dos autores deste blog, colaboraram com a Juventude Comunista Portuguesa na preparação de uma campanha de esclarecimento e debate sobre a União Europeia e sobre as implicações da adesão de Portugal à moeda única. Ao mesmo tempo, organizávamos no ISEG o referendo que considerávamos dever ter sido realizado a nível nacional. Os resultados do referendo, não nos foram favoráveis: apenas um quarto dos estudantes, professores e funcionários daquela instituição se pronunciaram contra a adesão ao euro. Dada a hegemonia da visão romântica sobre a UE que se vivia na altura, o referendo nacional, se tivesse tido lugar, provavelmente não produziria resultados distintos. Mas, pelo menos, admitindo que a discussão pública teria sido tão frutuosa quanto a que teve então lugar no ISEG, todos teriam maior consciência do buraco em que estávamos a meter-nos.
Foi neste ambiente de displicência nacional que, uns meses antes de ter sido produzido o folheto referido nest post do Nuno Teles, um conjunto de estudantes e recém-licenciados do ISEG, que incluia alguns dos autores deste blog, colaboraram com a Juventude Comunista Portuguesa na preparação de uma campanha de esclarecimento e debate sobre a União Europeia e sobre as implicações da adesão de Portugal à moeda única. Ao mesmo tempo, organizávamos no ISEG o referendo que considerávamos dever ter sido realizado a nível nacional. Os resultados do referendo, não nos foram favoráveis: apenas um quarto dos estudantes, professores e funcionários daquela instituição se pronunciaram contra a adesão ao euro. Dada a hegemonia da visão romântica sobre a UE que se vivia na altura, o referendo nacional, se tivesse tido lugar, provavelmente não produziria resultados distintos. Mas, pelo menos, admitindo que a discussão pública teria sido tão frutuosa quanto a que teve então lugar no ISEG, todos teriam maior consciência do buraco em que estávamos a meter-nos.
sábado, 1 de março de 2014
Mais uma década de missões deste capital?
As características da esfera social em Portugal têm implicações relevantes na esfera económica porque a preferência distributiva condiciona a afectação dos recursos e a preferência reivindicativa da população activa cria incerteza competitiva nas empresas, que não têm flexibilidade na organização do trabalho que possa responder com rapidez e eficiência às variações das condições do mercado.
A miséria da novilíngua do empresarialmente correcto está ao nível da miséria do projecto político destes intelectuais orgânicos dos grupos económicos predadores em “missão crescimento” esta semana, “uma plataforma promovida pelo Fórum de Administradores de Empresas, Ordem dos Economistas, Ordem dos Engenheiros, Associação Comercial do Porto e pelo Projecto Farol”, com PowerPoint, claro. Queixam-se então de um “distributivismo” português, o de cima para baixo, que tornaria a vida impossível às empresas, coitadas. Demasiado Estado social e direitos laborais são mesmo os problemas de um dos países mais desiguais da Europa num momento em que até o FMI, em teoria, reconhece que a desigualdade excessiva prejudica o crescimento, embora a prática seja a que se conhece.
Na realidade, o seu projecto é o de reforçar o presente “distributivismo”, o de baixo para cima, do trabalho para o capital, de dentro para fora, acentuando a pobreza de cada vez mais face à riqueza de cada vez menos. Sabem no fundo que este projecto, dado que muitos cidadãos querem um Estado social robusto e segurança e decência no trabalho, tem de passar pelo condicionamento externo da democracia na escala onde esta existe. No fundo, querem um Estado ao seu serviço, reconfigurado para todas as capturas. Querem ir ao pote do Estado social, que promete muita consultoria, mais parcerias e boas rendas, e demolir os direitos laborais, aumentando os direitos patronais, assim garantindo que os salários reais não acompanham o crescimento da produtividade e que os rendimentos do capital crescem no rendimento nacional. Tudo é muito claro: da miséria da linguagem ao capitalismo de miséria, passando pelos usos e abusos de um Estado ao serviço do seu miserável projecto.
Não creio que a fórmula usada recentemente por António José Seguro – “Estado mínimo para mercado máximo” – seja o melhor enquadramento para o projecto neoliberal em curso, de Bruxelas a Lisboa e que os grupos económicos subscrevem e sustentam. Proponho outro enquadramento: a esquerda só faz sentido se defender o Estado para gerar regras do jogo que façam distribuição de cima para baixo, opondo-se a uma direita que defende o Estado para gerar regras do jogo que façam a distribuição de baixo para cima. Estado e regras do jogo, e seus efeitos distributivos, não são uma opção. A questão não é Estado mínimo para mercado máximo ou mercado mínimo para Estado máximo, até porque todos sabemos que os mercados pressupõem um Estado bem forte, porque não se auto-regulam e porque não surgem espontaneamente pela retirada do Estado. No fim, a esquerda defende o Estado social para minimizar o chamado Estado penal. A direita defende o Estado mínimo no campo social, mas não se importa dele máximo no campo repressivo ou noutros serviços para as fracções mais poderosas do capital poderem captar recursos. Fazer de guarda-nocturno, transferir recursos de baixo para cima, de dentro para fora e, já agora, limpar os cacos são tarefas que dão uma trabalheira política.
Temos de saber identificar bem os adversários. Derrotá-los exige controlar os grupos económicos que são a sua base material e a ingerência externa que é a sua grande alavanca política. Há coisas que não mudam. O que tem de mudar é a relação de forças.
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014
Escolhas
Vale mesmo a pena este artigo do Público sobre a operação de amortização de dívida pública em curso. Não discutindo aqui qual a melhor gestão de tesouraria do Estado, importa notar o resultado de umas contas de merceeiro. Se o Estado tiver depositado uma média de 10 000 milhões de euros no banco de Portugal (o valor era de 12 819 milhões antes desta operação), pelo quais ganhou um juro quase nulo, mas que tiveram um custo de 4%, esta "almofada financeira" traduziu-se numa despesa anual de quase 400 milhões de euros. 400 milhões de euros foi o valor avançado para a famigerada "convergência das pensões", entretanto substituída por cortes alternativos.
Delírios, farsas e ilusões
O Ricardo Paes Mamede já se referiu, aqui e aqui, ao irrealismo perverso que povoa os cenários macroeconómicos resultantes das recentes avaliações da Troika. Nesses termos, para que Portugal possa reduzir o peso da dívida pública no PIB entre 2014 e 2019 é necessário, entre outras condições: alcançar um crescimento nominal na ordem dos 3,6% ao ano (2013 fechou com uma contracção de 1,6%); obter um saldo orçamental primário de cerca de 2% em 2015 e em torno dos 3% em 2019 (foi de -1,6% em 2013); fixar a procura interna entre 0% e 1,4% (foi de -1,1% no final de 2013); e garantir a descida das taxas de juro da dívida pública a dez anos para valores entre os 3 e os 4% (quando estas persistem em rondar os 5%, mesmo depois do anúncio, aos sete ventos, do «milagre económico português»).
Como já vem sendo habitual, a plausibilidade destas estimativas estatela-se ao comprido quando se constatam as suas contradições. De facto, não é expectável um aumento da procura interna quando, ao mesmo tempo, se pretende reforçar a dose de austeridade, sendo igualmente ilusório pensar, como sublinha o Ricardo, que os níveis de endividamento das famílias e das empresas (a que se soma o desemprego e a emigração) possam alimentar a expansão do consumo interno e do investimento. Ao que acresce, ainda, a circunstância de ser necessário um aumento inaudito das exportações para que a procura externa líquida compense a anemia prolongada do mercado interno (e a estabilização das importações), expectativa que a própria Comissão Europeia, nas suas «Previsões de Inverno», tratou já de refrear.
É pois todo um exercício de desonestidade e cinismo, de um falso wishful thinking, que envolve, uma vez mais, as previsões estabelecidas pelo FMI no relatório da 10ª avaliação do Memorando de Entendimento. Aliás, basta comparar essas previsões com as da versão inicial do Memorando (em Junho de 2011) e com a crueza dos números (gráficos aqui em cima), para concluir pelo menos três coisas:
1. É o ano de 2008, marcado pelo deflagrar da crise financeira, que constitui o momento central de desestabilização da situação económica do país, agudizando de forma exponencial alguns dos factores críticos que vinham de trás (mas que estavam, até aí, com margens relativas de controlo político, incomparáveis com o caos que desde então se instalou). De facto, é a partir deste ano que se alteram, de modo muito evidente, as trajectórias do PIB nominal (que entra em efectiva estagnação) e do desemprego, da dívida e do défice (que disparam - em sintonia com que se passou na maior parte dos países europeus - para níveis nunca registados desde 2000).
2. O optimismo sobre as virtudes da «austeridade expansionista», tão lunaticamente acarinhada por Vítor Gaspar, é desfeito num ápice. As metas e objectivos inscritos na versão inicial do Memorando de Entendimento (de cujos «méritos» Eduardo Catroga se ufana) fracassam em toda a linha. Entre a realidade e a ficção do «súbito ajustamento estrutural» passa a existir um indisfarçável gap: entre 2011 e 2013 o PIB contrai (quando as previsões iniciais, de 2011, apontavam para um cenário de crescimento); o desemprego galopa (quando deveria, segundo o governo e a Troika, começar a descer a partir de 2012); o défice estagna nos 6% (quando era suposto descer até aos 3% em 2013); e a dívida pública aumenta a um ritmo muito superior ao previsto (não estagnando - como se previa - no final do ano passado).
3. Perante uma economia dilacerada e uma sociedade a deslaçar-se, por que razão se haveria de acreditar que uma receita falhada vai começar, de súbito, a funcionar? Porque se acertam os relógios para a fim do Memorando, se o que importa são as «condicionalidades» associadas à saída (seja ela mais suja ou menos limpa)? Sem reestruturar a dívida (e mantendo-se os constrangimentos da pertença ao euro), como considerar plausível a inversão do ciclo económico, se a vigência do Tratado Orçamental limita implacavelmente quaisquer políticas de natureza contra-cíclica? O truque é simples: basta ignorar tudo isto e empurrar com a barriga, trasladando consecutivamente, numa espécie de mito de Sísifo ao contrário, os «amanhãs que cantam» para o ano seguinte. Isto é, mal se constate que os amanhãs de ontem, afinal, hoje não cantaram.
Como já vem sendo habitual, a plausibilidade destas estimativas estatela-se ao comprido quando se constatam as suas contradições. De facto, não é expectável um aumento da procura interna quando, ao mesmo tempo, se pretende reforçar a dose de austeridade, sendo igualmente ilusório pensar, como sublinha o Ricardo, que os níveis de endividamento das famílias e das empresas (a que se soma o desemprego e a emigração) possam alimentar a expansão do consumo interno e do investimento. Ao que acresce, ainda, a circunstância de ser necessário um aumento inaudito das exportações para que a procura externa líquida compense a anemia prolongada do mercado interno (e a estabilização das importações), expectativa que a própria Comissão Europeia, nas suas «Previsões de Inverno», tratou já de refrear.
É pois todo um exercício de desonestidade e cinismo, de um falso wishful thinking, que envolve, uma vez mais, as previsões estabelecidas pelo FMI no relatório da 10ª avaliação do Memorando de Entendimento. Aliás, basta comparar essas previsões com as da versão inicial do Memorando (em Junho de 2011) e com a crueza dos números (gráficos aqui em cima), para concluir pelo menos três coisas:
1. É o ano de 2008, marcado pelo deflagrar da crise financeira, que constitui o momento central de desestabilização da situação económica do país, agudizando de forma exponencial alguns dos factores críticos que vinham de trás (mas que estavam, até aí, com margens relativas de controlo político, incomparáveis com o caos que desde então se instalou). De facto, é a partir deste ano que se alteram, de modo muito evidente, as trajectórias do PIB nominal (que entra em efectiva estagnação) e do desemprego, da dívida e do défice (que disparam - em sintonia com que se passou na maior parte dos países europeus - para níveis nunca registados desde 2000).
2. O optimismo sobre as virtudes da «austeridade expansionista», tão lunaticamente acarinhada por Vítor Gaspar, é desfeito num ápice. As metas e objectivos inscritos na versão inicial do Memorando de Entendimento (de cujos «méritos» Eduardo Catroga se ufana) fracassam em toda a linha. Entre a realidade e a ficção do «súbito ajustamento estrutural» passa a existir um indisfarçável gap: entre 2011 e 2013 o PIB contrai (quando as previsões iniciais, de 2011, apontavam para um cenário de crescimento); o desemprego galopa (quando deveria, segundo o governo e a Troika, começar a descer a partir de 2012); o défice estagna nos 6% (quando era suposto descer até aos 3% em 2013); e a dívida pública aumenta a um ritmo muito superior ao previsto (não estagnando - como se previa - no final do ano passado).
3. Perante uma economia dilacerada e uma sociedade a deslaçar-se, por que razão se haveria de acreditar que uma receita falhada vai começar, de súbito, a funcionar? Porque se acertam os relógios para a fim do Memorando, se o que importa são as «condicionalidades» associadas à saída (seja ela mais suja ou menos limpa)? Sem reestruturar a dívida (e mantendo-se os constrangimentos da pertença ao euro), como considerar plausível a inversão do ciclo económico, se a vigência do Tratado Orçamental limita implacavelmente quaisquer políticas de natureza contra-cíclica? O truque é simples: basta ignorar tudo isto e empurrar com a barriga, trasladando consecutivamente, numa espécie de mito de Sísifo ao contrário, os «amanhãs que cantam» para o ano seguinte. Isto é, mal se constate que os amanhãs de ontem, afinal, hoje não cantaram.
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014
Em busca do centro perdido
Na semana passada, por ocasião do lançamento do livro «A austeridade mata? A austeridade cura?» (coordenado por Eduardo Paz Ferreira e publicado pelo Instituto de Direito Económico, Financeiro e Fiscal da Faculdade de Direito de Lisboa), foram apresentadas as conclusões do inquérito sobre políticas de austeridade, encomendado pelo IDEFF à Eurosondagem. Os resultados mostram que dois anos de implementação do Memorando de Entendimento fortaleceram a noção de que a austeridade «afunda económica e socialmente o país», sendo contudo ainda significativo o peso dos inquiridos que interpretam a adopção de políticas austeritárias como «a consequência inevitável» do processo de endividamento de Portugal ao longo dos últimos anos.
E se é verdade que cerca de quatro em cada dez portugueses já encaram a austeridade como uma «escolha política» do «governo-além-da-Troika» de Passos Coelho e Paulo Portas, situa-se contudo numa proporção idêntica o peso dos que consideram que a prossecução das políticas de austeridade «depende da vontade do governo alemão e da Troika», bem como da própria evolução político-económica que se venha a registar na UE. De uma forma ou de outra, a percepção dominante é a de que «a austeridade veio para ficar», pelo menos por mais uns anos. Aliás, os dois dados mais expressivos deste inquérito apontam para a seguinte conclusão: a austeridade é destrutiva mas irá prosseguir (numa resignação que é reforçada pelas dúvidas, expressas por cerca de metade dos inquiridos, quanto à «existência de propostas credíveis que lhe ponham fim»).
Os resultados deste inquérito - e as perplexidades que o mesmo revela - ajudam a perceber o estranho jogo de espelhos que se gerou entre o PS e o PSD durante o passado fim de semana, na escolha dos respectivos cabeças de lista para as eleições europeias. Como quem puxa a manta para o lado que pressente estar mais desprotegido, o PS escolhe um candidato da ala direita do partido, procurando o PSD maquilhar a imagem de radicalismo neoliberal que (com o devido proveito) os dois últimos anos de governação lhe colaram à pele, escolhendo para cabeça de lista um militante posicionado mais à esquerda. Ou seja, em busca do centro perdido, o PS desiste de explorar uma resposta alternativa consistente à crise, enquanto o PSD procura disfarçar o vergonhoso perfil de subserviência e de vanguarda convicta na defesa e aplicação das políticas de austeridade.
E, contudo, existem à esquerda bases consistentes e credíveis para traçar caminhos alternativos de saída da crise. A Declaração do Congresso Democrático das Alternativas, por exemplo, estabelece um quadro de pressupostos e objectivos claros para uma política alternativa à austeridade, situando-se na mesma linha o notável trabalho da Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida no âmbito da renegociação da dívida (tendo sido entregue, no início do ano, uma petição sobre esta matéria na Assembleia da República). E, mais recentemente, o Manifesto 3D apresentou os compromissos políticos mínimos para a formação de um amplo movimento político de contraposição à força centrípeta do buraco negro da austeridade. Não é pois por falta de trabalho programático e proposta política que o empobrecimento ameaça converter-se no nosso trágico destino colectivo. Assim haja vontades e disponibilidades alargadas, à esquerda, para o evitar.
E se é verdade que cerca de quatro em cada dez portugueses já encaram a austeridade como uma «escolha política» do «governo-além-da-Troika» de Passos Coelho e Paulo Portas, situa-se contudo numa proporção idêntica o peso dos que consideram que a prossecução das políticas de austeridade «depende da vontade do governo alemão e da Troika», bem como da própria evolução político-económica que se venha a registar na UE. De uma forma ou de outra, a percepção dominante é a de que «a austeridade veio para ficar», pelo menos por mais uns anos. Aliás, os dois dados mais expressivos deste inquérito apontam para a seguinte conclusão: a austeridade é destrutiva mas irá prosseguir (numa resignação que é reforçada pelas dúvidas, expressas por cerca de metade dos inquiridos, quanto à «existência de propostas credíveis que lhe ponham fim»).
Os resultados deste inquérito - e as perplexidades que o mesmo revela - ajudam a perceber o estranho jogo de espelhos que se gerou entre o PS e o PSD durante o passado fim de semana, na escolha dos respectivos cabeças de lista para as eleições europeias. Como quem puxa a manta para o lado que pressente estar mais desprotegido, o PS escolhe um candidato da ala direita do partido, procurando o PSD maquilhar a imagem de radicalismo neoliberal que (com o devido proveito) os dois últimos anos de governação lhe colaram à pele, escolhendo para cabeça de lista um militante posicionado mais à esquerda. Ou seja, em busca do centro perdido, o PS desiste de explorar uma resposta alternativa consistente à crise, enquanto o PSD procura disfarçar o vergonhoso perfil de subserviência e de vanguarda convicta na defesa e aplicação das políticas de austeridade.
E, contudo, existem à esquerda bases consistentes e credíveis para traçar caminhos alternativos de saída da crise. A Declaração do Congresso Democrático das Alternativas, por exemplo, estabelece um quadro de pressupostos e objectivos claros para uma política alternativa à austeridade, situando-se na mesma linha o notável trabalho da Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida no âmbito da renegociação da dívida (tendo sido entregue, no início do ano, uma petição sobre esta matéria na Assembleia da República). E, mais recentemente, o Manifesto 3D apresentou os compromissos políticos mínimos para a formação de um amplo movimento político de contraposição à força centrípeta do buraco negro da austeridade. Não é pois por falta de trabalho programático e proposta política que o empobrecimento ameaça converter-se no nosso trágico destino colectivo. Assim haja vontades e disponibilidades alargadas, à esquerda, para o evitar.
terça-feira, 25 de fevereiro de 2014
Rejeitar o empobrecimento
A pedido de várias famílias, fica aqui o link para os slides da minha apresentação de ontem, nas jornadas parlamentares do PS, sob o título: "Factores determinantes da trajectória de empobrecimento do país".
Austeridade nos outros é refresco para o Estado Alemão
Alemanha consegue em 2013 um excedente orçamental. No entanto, como o gráfico abaixo mostra (via Krugman), este foi dos países que menos austeridade impôs entre 2009 e 2013. Surpresa? Nem por isso, se tivermos em conta que o maior crescimento económico permitiu maiores receitas fiscais e que a Alemanha suporta taxas de juro sobre a sua dívida historicamente baixas, reflexo da fuga de capitais do Sul.
Isto já é um começo
"Dúvida sobre viabilidade do tratado orçamental cresce no PS"
PS: sobre a referência que é feita na notícia ao 3D, ver PS1 deste post.
PS: sobre a referência que é feita na notícia ao 3D, ver PS1 deste post.
«Outras Economias»
Tem hoje lugar a quarta sessão do ciclo de conferências, conduzido por José Castro Caldas, «Economia: uma ciência que transforma o mundo?». Depois da sessão anterior, «A Economia e a Grande Recessão», o ciclo que ocupou os finais de tarde das terças feiras de Fevereiro encerra hoje com o tema «Outras Economias».
É no Pequeno Auditório da Culturgest (Rua Arco do Cego, Piso 1, em Lisboa), com início a partir das 18h30. Entrada gratuita (devendo as senhas de acesso ser levantadas 30 minutos antes) e transmissão em directo aqui.
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014
À conversa com os deputados do PS
A convite da respectiva direcção da bancada, participei hoje nas jornadas parlamentares do PS, na Nazaré.
Na minha intervenção procurei mostrar que a trajectória de austeridade e empobrecimento que a troika e o actual governo reservam para Portugal é determinada por três factores: i) o elevado nível de endividamento público e privado, com uma forte componente externa, da economia portuguesa; ii) as regras e orientações dominantes nas instituições europeias; e iii) a atitude subserviente e convicta com que o governo português implementa aquelas orientações.
Terminei apresentando o que julgo serem os sete requisitos para escapar à trajectória de empobrecimento a que Portugal parece destinado, são eles:
1) Promover uma renegociação da dívida pública que torne o serviço da dívida compatível com a sustentabilidade económica e social.
2) Prosseguir uma política orçamental contra-cíclica (o que poderá implicar o incumprimento do Tratado Orçamental).
3) Adoptar políticas de estímulo à actividade económica que minimizem os impactos negativos na balança corrente.
4) Assegurar que o esforço de racionalização do aparelho de Estado, dos serviços públicos e do sistema fiscal contribui para o desenvolvimento e qualificação de um Estado Social universal e solidário.
5) Promover a qualificação do tecido produtivo através de políticas ambiciosas de educação e formação, C&T e inovação, criatividade, investimento estruturante e internacionalização.
6) Desencadear um processo negocial com vista à revisão do quadro de governação macroeconómica da UE – ou reponderar os termos da participação de Portugal na UEM.
7) Um governo que esteja disposto a – e em condições de – prosseguir uma agenda assente nos pontos anteriores.
Não faço ideia se, quando e por quem estes requisitos poderão ser cumpridos, mas acredito que é por eles que vale a pena lutar.
PS1: alguns órgãos de comunicação social anunciaram a minha participação nestas jornadas parlamentares fazendo referência ao meu envolvimento no Manifesto 3D. Tal como fiz no início da minha intervenção na Nazaré, recordo aqui que o Manifesto 3D é, como o nome indica, um documento. Aqueles que o subscreveram e promoveram apenas estão compometidos com o texto do manifesto, nas circunstâncias em que foi lançado. É, pois, a título estritamente pessoal que participo em eventos públicos – de natureza partidária ou não – para defender aquilo em que acredito. E quem confundir o que acabei de escrever com isto, não percebeu nada.
PS2: Vem-me à mente a frase escrita por Scott Fitzgerald numa época ainda mais obscura do que a nossa (1936): “One should be able to see that things are hopeless and yet be determined to make them otherwise.” [Obrigado S.]
Na minha intervenção procurei mostrar que a trajectória de austeridade e empobrecimento que a troika e o actual governo reservam para Portugal é determinada por três factores: i) o elevado nível de endividamento público e privado, com uma forte componente externa, da economia portuguesa; ii) as regras e orientações dominantes nas instituições europeias; e iii) a atitude subserviente e convicta com que o governo português implementa aquelas orientações.
Terminei apresentando o que julgo serem os sete requisitos para escapar à trajectória de empobrecimento a que Portugal parece destinado, são eles:
1) Promover uma renegociação da dívida pública que torne o serviço da dívida compatível com a sustentabilidade económica e social.
2) Prosseguir uma política orçamental contra-cíclica (o que poderá implicar o incumprimento do Tratado Orçamental).
3) Adoptar políticas de estímulo à actividade económica que minimizem os impactos negativos na balança corrente.
4) Assegurar que o esforço de racionalização do aparelho de Estado, dos serviços públicos e do sistema fiscal contribui para o desenvolvimento e qualificação de um Estado Social universal e solidário.
5) Promover a qualificação do tecido produtivo através de políticas ambiciosas de educação e formação, C&T e inovação, criatividade, investimento estruturante e internacionalização.
6) Desencadear um processo negocial com vista à revisão do quadro de governação macroeconómica da UE – ou reponderar os termos da participação de Portugal na UEM.
7) Um governo que esteja disposto a – e em condições de – prosseguir uma agenda assente nos pontos anteriores.
Não faço ideia se, quando e por quem estes requisitos poderão ser cumpridos, mas acredito que é por eles que vale a pena lutar.
PS1: alguns órgãos de comunicação social anunciaram a minha participação nestas jornadas parlamentares fazendo referência ao meu envolvimento no Manifesto 3D. Tal como fiz no início da minha intervenção na Nazaré, recordo aqui que o Manifesto 3D é, como o nome indica, um documento. Aqueles que o subscreveram e promoveram apenas estão compometidos com o texto do manifesto, nas circunstâncias em que foi lançado. É, pois, a título estritamente pessoal que participo em eventos públicos – de natureza partidária ou não – para defender aquilo em que acredito. E quem confundir o que acabei de escrever com isto, não percebeu nada.
PS2: Vem-me à mente a frase escrita por Scott Fitzgerald numa época ainda mais obscura do que a nossa (1936): “One should be able to see that things are hopeless and yet be determined to make them otherwise.” [Obrigado S.]
Quem beneficia e quem sofre?
Têm estado a beneficiar [“mercados e especuladores”] na medida em que quanto mais austeridade, mais segurança têm de que Portugal está no caminho certo para pagar as dívidas. Os mercados gostam de olhar e de pensar: estes estão dispostos a sofrer. E se estão dispostos a sofrer, nós vamos ganhar. Para o cidadão é o lado pior. Vamos ver se no final do ajustamento os investidores vão lá estar a comprar dívida portuguesa.
Um excerto bem significativo de uma interessante entrevista a João Ermida, “consultor e antigo responsável global da tesouraria e dos mercados financeiros do Santander”, no Público de hoje. Ermida às vezes parece crer, embora não muito, nas supostas virtudes regeneradoras da desgraça deflacionária que nos está a ser imposta ou na psicologia dos povos, um hábito de pensamento irritante. De resto, a dimensão “comportamental” das predações financeiras não pode ser desligada da estrutura que as gera e que, porque está por reformar, abre a “possibilidade de uma crise sistémica muito maior”. Ainda mais sofrimento. O problema é mesmo de controlo político dos capitais.
Um excerto bem significativo de uma interessante entrevista a João Ermida, “consultor e antigo responsável global da tesouraria e dos mercados financeiros do Santander”, no Público de hoje. Ermida às vezes parece crer, embora não muito, nas supostas virtudes regeneradoras da desgraça deflacionária que nos está a ser imposta ou na psicologia dos povos, um hábito de pensamento irritante. De resto, a dimensão “comportamental” das predações financeiras não pode ser desligada da estrutura que as gera e que, porque está por reformar, abre a “possibilidade de uma crise sistémica muito maior”. Ainda mais sofrimento. O problema é mesmo de controlo político dos capitais.
sábado, 22 de fevereiro de 2014
Da social-democracia e dos seus adversários principais

É claro que as correias políticas de transmissão nacional, de que este governo é o exemplo mais acabado, têm de ser mais hipócritas do que a Comissão, até porque ainda dependem do apoio popular: dizem que o “ajustamento” já foi feito no sector privado, graças às contra-reformas laborais, mas continuam a aprofundá-las e a contar também com os efeitos de contágio dos cortes salariais que se preparam para efectuar, depois das eleições, como sublinha Manuel Esteves, no sector dito público e para lá dele, incluindo nos salários indirectos, ou seja, nas pensões. Isto não tem fim nesta estrutura.
E ainda dizem, como Passos, que são social-democratas. A social-democracia tem as costas largas, mas não tão largas que nela se possam incluir os principais adversários da política económica de pleno emprego e do Estado social universal, centrado numa visão abrangente e inclusiva dos direitos de cidadania, onde se incluem os direitos sociais que não param à porta das empresas. A social-democracia pressupõe um princípio de soberania democrática, onde se inclui o controlo democrático da moeda e dos capitais. Passos Coelho, ao defender a austeridade como a “nova normalidade” e ao apostar num processo de integração que esvazia a soberania democrática, condição necessária para o tal projecto social-democrata, confirma-se como o seu principal adversário nacional, como o símbolo da transmissão do neoliberalismo seguramente instituído em Bruxelas.
O que me espanta é que a maioria dos verdadeiros social-democratas ainda conte com Bruxelas e não perceba que a social-democracia exige uma desobediência democrática, onde a escala nacional é preponderante, culminando num esforço para desmantelar este regime monetário e financeiro europeu, o melhor aliado de gente como Passos. Enquanto a social-democracia não seguir, por exemplo, as pisadas de um Oskar Lafontaine, entre muitos outros, está condenada à derrota que conta: a de um projecto de sociedade decente.
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014
Uma saída limpa?
Há algum tempo que o discurso da retoma da economia tomou conta dos media. Com eleições à vista, o governo tudo fez para que assim fosse. As televisões, sem jornalismo independente e capaz, logo assumiram o papel de megafones. Há mesmo quem embandeire em arco apontando o dedo aos que identificaram uma espiral recessiva na economia portuguesa. O que não dizem é que, através da revisão (muito em alta) dos objectivos para o défice orçamental inscritos no Memorando, o insucesso da política de austeridade acabou por ser assumido pela troika. A demissão do ex-ministro das Finanças, sem condições políticas para levar ao paroxismo a austeridade de que é apóstolo, foi uma preciosa válvula de escape que desanuviou alguma tensão em que muitas famílias da classe média se encontravam, o que favoreceu o consumo.
As decisões do Tribunal Constitucional vieram reforçar essa distensão, levando a procura interna a dar o seu contributo, aliás indispensável, para uma viragem no andamento da economia.
Assim sendo, no final de 2013 a economia parece ter encontrado um patamar de estabilização a um nível de desemprego e emigração em massa característicos de uma depressão, pese embora o malabarismo das políticas activas de emprego tendo em vista produzir estatísticas que apoiem a propaganda. Neste marasmo permaneceríamos por longos anos caso o governo tivesse aprovado um Orçamento neutro. Porém, recusando-se a aprender com os erros cometidos, através do Orçamento de 2014 o governo e a troika voltaram a atacar com medidas selvagens. Tendo em conta que o Tribunal Constitucional vai voltar a pronunciar-se sobre algumas dessas medidas, há neste momento grande incerteza sobre a escala do contributo da política económica para o relançamento da espiral depressiva.
Entretanto, o alarido que tomou conta dos media sobre o fim do Memorando desvia a atenção do essencial: a decisão tomada há dias pelo Tribunal Constitucional alemão. Questionado sobre o programa do BCE para adquirir, sem limites, as obrigações dos estados da zona euro em crise (OMT), à luz da Constituição alemã, o tribunal disse: "Não, não, não" (Wolfgang Münchau, "Germany's constitutional court has strengthened the eurosceptics", "Financial Times", 9 Fevereiro). É certo que pediu esclarecimentos ao Tribunal de Justiça (TJ) da União Europeia, mas, como Münchau percebeu, fê-lo no espírito de quem pede mais informação a um tribunal de nível inferior. Ou seja, se houver necessidade de uma intervenção do BCE para realizar pela primeira vez uma OMT, "não é seguro que o Bundesbank possa participar". Em boa verdade, se o TJ der cobertura ao BCE, teríamos uma "crise constitucional" pelo facto de "a Constituição alemã frontalmente contradizer uma lei da UE".
Como é fácil perceber, ninguém quer falar disto na televisão. Estando Portugal à espera de uma decisão sobre a forma como se financiará no futuro, ninguém pode admitir que um financiamento através do Mecanismo Europeu de Estabilidade corre o risco de não ter o apoio do BCE nos mercados financeiros, por razões de inconstitucionalidade quanto ao envolvimento do governo alemão nesse processo. Imagine-se o que significa a tomada de consciência pelos operadores financeiros do que está agora em jogo. Nesse dia, o pânico nos mercados faria explodir as taxas de juro da periferia da zona euro.
Talvez com este enquadramento seja possível perceber porque convém afinal que Portugal seja considerado um "caso de sucesso" que nem precisa de recorrer a um programa cautelar. Tudo aponta que tenhamos de nos financiar nos mercados financeiros. Só não tenho a certeza se podemos chamar a isto uma "saída limpa".
(O meu artigo no jornal i)
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014
Venezuela
No entanto, a recente mobilização da oposição não pode ser desligada da crise que o país hoje atravessa (não que a amálgama feita pelo Público sirva para entender a situação económica). Este texto do economista Jacques Sapir fornece algumas pistas interessantes. A Venezuela impôs uma taxa de câmbio fixo do bolívar em relação ao dólar, com controlos cambiais, há muitos anos atrás por forma a impedir a fuga de capitais. No entanto, foram muito raras as actualizações do valor da taxa (apoiada nas receitas de petróleo e empréstimos internacionais), permitindo a emergência de um mercado "negro" de bolívares contra dólares, onde o primeiro estava mais desvalorizado. Ora, este mercado afirmou-se cada vez mais como o mercado de facto de bolívares por dólares para todos os agentes económicos domésticos e como uma oportunidade de lucro fácil para quem tem acesso a dólares à taxa oficial (por exemplo importadores ou turistas).
Os esquemas de dinheiro fácil multiplicaram-se, com importadores a fazerem transitar o mesmo camião de mercadorias várias vezes na mesma fronteira - por forma a pedir licença de acesso a dólares à taxa oficial – ou aviões com lugares esgotados, mas que só viajam com metade dos lugares ocupados – o bilhete de avião é suficiente para se pedir dólares à taxa oficial. Com estas oportunidades de lucro fácil, o mercado paralelo criou uma bolha especulativa onde o bolívar se transacciona a um valor muito mais baixo do que a taxa oficial. Esta crescente diferença explica parcialmente o aumento da inflação no país e a especulação em torno de determinados bens, num resultado contrário ao que se pretendia com a taxa de câmbio fixa. O Governo venezuelano anda por um caminho estreito. Por um lado terá de dar passos na unificação da taxa oficial com a taxa da “rua”, desvalorizando a primeira e causando assim o colapso da especulação na segunda. Todavia, num contexto de inflação elevada esta terá de ser uma operação acompanhada de uma vigilância apertada dos sistemas de provisão e de preços e uma reforma fiscal, como também aponta Sapir. Não será fácil, mas uma coisa é certa: a maioria dos venezuelanos não se esqueceram do que foram décadas de neoliberalismo e taxas de pobreza de 60% da população para quererem voltar ao ponto de partida.
Irrealismo ou barbárie
Na 10ª avaliação do programa de ajustamento português, publicada esta semana, o FMI apresenta as habituais projecções macroeconómicas para os próximos anos. Segundo o staff do Fundo, entre 2014 e 2019:
Já aqui questionei a razoabilidade de cenários construídos em torno destes valores (semelhantes aos que têm sido utilizados pelo governo).
Lembrei-me de olhar para a experiência histórica dos vários Estados Membros da UE, de modo a perceber quais os países e em que circunstâncias o cenário apresentado se verificou. O resultado é o que se segue.

Entre 1996 e 2012 é possível obter 446 observações válidas para os 28 Estados Membros da UE (446 observações = 28 países x 17 anos - 30 observações em falta por falta de dados). Neste periodo verificamos que:
Por outras palavras, os pressupostos assumidos pelo cenário do FMI e do governo só se verificarm num número insignificante de casos nos últimos 17 anos.
Mas não é tudo. Vejam quais os países e os anos em causa (coluna da direita). Nenhum dos seis países tem problemas sérios de dívida externa. Só um desses países - a Itália - verificou nos últimos anos, à semelhança de Portugal, um agravamento das suas contas externas, o que em larga medida é explicado pela debilidade da sua estrutura produtiva (como procurei mostrar aqui). E o único ano em que a Itália atingiu os valores referidos, no período em análise, foi 2012 - um ano em que aquele país foi sujeito a um terapia de choque que dificilmente poderia prolongar-se por anos e anos.
Ou seja, não só o cenário do FMI e do governo é improvável em geral, como é praticamente desconhecido para países que tenham uma situação económica e financeira semelhante à portuguesa.
Só há duas explicações possíveis para que o FMI e o governo apresentem cenários tão improváveis: ou não acreditam nos seus próprios valores (que apresentam apenas para tentar convencer-nos que o programa de ajustamento português foi mesmo um sucesso); ou então estão a preparar-se para um ataque ao Estado Social de dimensões bárbaras, que não têm paralelo histórico. Ou então ambos.
- a taxa de crescimento do PIB português em termos nominais estabilizará nos 3,6% (1,8% de crescimento real e 1,8% de inflação);
- a procura interna crescerá entre 0% e 1,4%; e
- a taxa de juro média da dívida pública a 10 anos aumentará de 3,4% para 4%.
Já aqui questionei a razoabilidade de cenários construídos em torno destes valores (semelhantes aos que têm sido utilizados pelo governo).
Lembrei-me de olhar para a experiência histórica dos vários Estados Membros da UE, de modo a perceber quais os países e em que circunstâncias o cenário apresentado se verificou. O resultado é o que se segue.
Nº de anos (entre 1996 e 2012) em que o país em causa verificou as hipóteses indicadas

Fonte:AMECO
Entre 1996 e 2012 é possível obter 446 observações válidas para os 28 Estados Membros da UE (446 observações = 28 países x 17 anos - 30 observações em falta por falta de dados). Neste periodo verificamos que:
- só em 6,1% dos casos aconteceu um país ter um saldo orçamental primário superior a 2% num ano em que o PIB tivesse crescido 3,6% ou menos em termos nominais;
- só em 3,8% dos casos se verificaram as condições anteriores, ao mesmo tempo que a procura interna não crescia mais do que 1,4%; e
- só em 1,6% dos casos se verificaram as condições anteriores ao mesmo tempo que a inflação (medida pelo deflator do PIB) não foi além de 1,8%.
Por outras palavras, os pressupostos assumidos pelo cenário do FMI e do governo só se verificarm num número insignificante de casos nos últimos 17 anos.
Mas não é tudo. Vejam quais os países e os anos em causa (coluna da direita). Nenhum dos seis países tem problemas sérios de dívida externa. Só um desses países - a Itália - verificou nos últimos anos, à semelhança de Portugal, um agravamento das suas contas externas, o que em larga medida é explicado pela debilidade da sua estrutura produtiva (como procurei mostrar aqui). E o único ano em que a Itália atingiu os valores referidos, no período em análise, foi 2012 - um ano em que aquele país foi sujeito a um terapia de choque que dificilmente poderia prolongar-se por anos e anos.
Ou seja, não só o cenário do FMI e do governo é improvável em geral, como é praticamente desconhecido para países que tenham uma situação económica e financeira semelhante à portuguesa.
Só há duas explicações possíveis para que o FMI e o governo apresentem cenários tão improváveis: ou não acreditam nos seus próprios valores (que apresentam apenas para tentar convencer-nos que o programa de ajustamento português foi mesmo um sucesso); ou então estão a preparar-se para um ataque ao Estado Social de dimensões bárbaras, que não têm paralelo histórico. Ou então ambos.
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