terça-feira, 6 de outubro de 2009

Escolhas com significado? (I)

As recentes eleições legislativas trouxeram várias novidades à política portuguesa, eventualmente até inaugurando uma mudança do ciclo iniciado em 1987. A eleição de 1987 foi um ponto de viragem na democracia portuguesa. Após anos de instabilidade governativa, falta de entendimento entre os partidos para soluções de governo minimamente estáveis, de 1987 até 2005 os eleitores responderam com uma concentração de votos nos dois maiores: o voto conjunto do PS e do PSD variou entre um mínimo de 72,7 por cento, em 1987, e um máximo de 79,7, em 1991. Pelo contrário, nas últimas legislativas os votos nestes dois partidos somados quedaram-se por 65,7 por cento, a mais baixa percentagem desde 1987. Além disso, as eleições do penúltimo domingo ficaram marcadas pela vitória mais curta do partido vencedor (36,6 por cento) desde 1987 (a segunda mais baixa tinha sido em 2002: 40,2 por cento).

Há dois elementos especialmente relevantes nestes dados. Primeiro, os portugueses estão cansados do bipartidarismo que marcou a política nacional desde 1987. Segundo, estão cansados da governação baseada em maiorias absolutas monopartidárias e, por isso, deram ao PS a mais pequena maioria relativa desde 1987. Este último elemento exige grande sentido de responsabilidade do vencedor, que agora é obrigado a negociar sempre com a oposição para aprovar legislação e, consequentemente, a incorporar mais o contributo das minorias no processo de tomada de decisão. Mas as exigências que esta situação coloca aos partidos da oposição, especialmente àqueles que historicamente têm sido mais resistentes à ideia da “cooperação conflitual” (como lhe chamou Camilo Mortágua), são também bastante mais elevadas. O modelo da “democracia consociativa”, do qual nos afastámos entre 1987 e 2005, é mais inclusivo; porém, para funcionar exige das minorias uma atitude compromissória que tem faltado na política portuguesa, sobretudo à esquerda.

Originalmente publicado no Público de 5/10/2009.

Por um reformismo transformador

Importa recordar que o declínio do País não será ultrapassado sem a criação de um grande partido que se reivindique do reformismo transformador. Que fique claro: as políticas sociais contra as desigualdades, sendo necessárias, não colocam em causa a lógica do sistema que as produz. O combate às desigualdades não toca o âmago da “questão social”, a razão de ser dos partidos socialistas. As relações de poder e democracia no seio da empresa, o equilíbrio de forças na negociação salarial, o pleno emprego como prioridade da política económica, o apoio a formas de produção não-capitalistas, são exemplos de clivagem entre a esquerda socialista e um social-liberalismo que já quase não menciona o capitalismo e prefere falar da “economia de mercado”.

[excerto do meu artigo no Público de hoje]

Simplex laboral

“Recrutados numa garagem em Matosinhos (a Autobrito), sem contrato que não seja uma combinação de boca, passam recibos verdes a uma empresa chamada Edutec, sediada em Lisboa. A Edutec, que faz este negócio chorudo com algumas autarquias, fica com uma parte do dinheiro dos nossos impostos que é transferido pelo Estado para contratar estes professores. Descontando o que têm de pagar à Segurança Social, os professores ganham cerca de 300 euros por mês, ou menos.” José Soeiro denuncia as práticas do simplex laboral na área da educação. Políticas públicas que promovem “desigualdades sólidas, capitalismo liquido, vidas gasosas” na certeira formulação de Sandra Monteiro. Como afirma José Castro Caldas: “É absurdo, não é permitido, mas pode fazer-se. O recibo verde usado a torto e a direito ilegalmente, instituiu-se. É considerado natural.” O Estado predador contribui para a instituição da ficção grosseira do trabalho como mercadoria descartável. É por estas e por outras que este livro, organizado por quem está farto destes recibos verdes, por quem luta e resiste, é tão importante.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Um multiplicador da igualdade em Portugal?

A CGTP sintetizou bem a principal mensagem das eleições: "os portugueses votaram maioritariamente à esquerda e esse voto tem de ser respeitado." O respeito é uma coisa muito bonita e muito exigente. Quem apoia convergências duradouras entre os partidos de esquerda tem o dever, antes de mais, de ancorar essa generosa aposta em propostas substantivas no campo das políticas públicas. O comunicado da CGTP, por exemplo, contém dez boas propostas, gerais, mas clarificadoras, onde se inclui a revisão do código do trabalho com vista a combater a precariedade e a revalorizar a fragilizada contratação colectiva.

A investigação em economia política tem mostrado que os países onde o essencial das normas salariais e das condições de trabalho é definido fora da empresa, em negociações centralizadas entre patrões e sindicatos, registam níveis de desigualdade antes de impostos muito inferiores aos países de regime liberal. Paradoxalmente, ou talvez não, os primeiros também redistribuem muito mais através da fiscalidade e dos serviços públicos. O chamado multiplicador da igualdade, formulado pelos noruegueses Erling Barth e Karl Moene, consiste nesta virtuosa conjugação antes e depois de impostos.

O fórum deve ser sempre mais importante do que o mercado nas esferas onde se define o essencial da vida das pessoas. Além disso, regras exigentes no mundo do trabalho são as armas competitivas dos sectores mais produtivos e consolidam as coligações que expandem o Estado Social. Portugal precisa de um multiplicador da igualdade e só as esquerdas o podem criar.

Política a política, as esquerdas têm de convergir na revisão do código do trabalho e numa reforma fiscal que impeça que a dupla crise - económica e orçamental -, gerada pela financeirização do capitalismo, continue a recair sobre os mesmos de sempre. Da total abolição do sigilo bancário ao fim do escandaloso regime fiscal de favor para a especulação e para os rendimentos do capital, há muito a fazer num país com uma carga fiscal abaixo da média da União, mas onde o peso relativo dos regressivos impostos indirectos, caso do IVA, é dos mais elevados.

É evidente que muito depende das escolhas do PS, o partido mais votado. Resta esperar que o futuro não seja um prolongamento do passado, embora as pressões internas e externas do statu quo para acordos entre o PS e a extrema-direita parlamentar sejam fortíssimas. Formalmente, a maioria de esquerda no Parlamento favorece mudanças igualitárias, mas o que se passar fora dele, nos movimentos sociais e na luta das ideias, terá também influência. Há coisas que não mudam.

A minha crónica semanal no i também pode ser lida aqui.

domingo, 4 de outubro de 2009

A autodestruição da social-democracia não é porreira, pá

Os irlandeses lá aprovaram o Tratado de Lisboa. Repetir referendos até dar o resultado certo ou impedir referendos para evitar repetições. Assim se escreve mais um capítulo da triste história de uma integração europeia feita de truques e de pressões de duvidosa democraticidade. Isto não é defeito é feitio de um regime socioeconómico e este feitio até está bem teorizado pelos seus proponentes. Já aqui se escreveu muito sobre um tratado que se limita a cristalizar as opções neoliberais da UE desde Maastricht. Não é uma carta de direitos absolutamente vazia do ponto de vista socioeconómico e umas referências vagas à duvidosa «economia social de mercado» que vão travar a concorrência fiscal, a ortodoxia económica imposta pelo BCE e pela Comissão ou a extensão do principio do mercado interno a esferas crescentes da vida social.

Quero regressar a um tema que me é caro: como esta arquitectura do governo económico europeu contribui para a autodestruição da social-democracia como força de reforma do capitalismo europeu. Um dos grandes e menos notados paradoxos da história recente de hegemonia neoliberal: a social-democracia trabalhou para a destruição das condições institucionais - pleno emprego com direitos, sindicatos fortes, propriedade pública de sectores estratégicos ou controlo dos fluxos económicos - que tinham garantido a sua hegemonia e que favoreciam todos os imaginários socialistas.

Creio que esta opção se deve, em simultâneo, a um processo de colonização ideológica e a um erro de cálculo. O erro foi pensar que a moeda única e o mercado interno europeu, como que por uma mão invisível, criariam a vontade política para voos progressistas de criação de um Estado federal onde as políticas sociais-democratas poderiam ser reinventadas. Não criam e não criarão. O processo de colonização ideológica, talvez favorecido pelo erro, está bem patente numa formulação ordoliberal alemã a que o PS acabou por aderir: a economia social de mercado, ou seja, a ideia de que as políticas públicas, crescentemente conduzidas por organismos emancipados do controlo democrático e apenas temperadas por políticas sociais de remendo, devem estar orientadas para a promoção da concorrência mercantil ou para a sua imitação. Vital Moreira é um dos melhores representantes desta corrente em Portugal. Daí a sua felicidade.

O porreiro pá de José Sócrates, cuja orientação Daniel Oliveira já escalpelizou bem, ficará para a história como um modesto símbolo da autodestruição da social-democracia. Que fazer? Reforçar o pólo europeísta e socialista e a sua coesão ideológica. A subida da esquerda socialista em Portugal e na Alemanha ou as convergências em França são sinais de esperança. Este documento, oriundo das fileiras da social-democracia europeia, também.

Mercedes Sosa (1935-2009) - Todo Cambia

sábado, 3 de outubro de 2009

À esquerda



As esquerdas não poderão nunca abdicar (sob pena de esvaziarem a própria ideia de “esquerda”) de questionar o sistema capitalista, procurando reformá-lo através de um combate permanente contra a imoralidade do dinheirismo e da teologia do mercado, exigindo justiça e apresentando propostas que contribuam para a anulação das desigualdades, da pobreza e da violência.

Parece claro nesta altura, contudo, que se alguma medida for tomada pelos donos do mundo no sentido de sanar o sistema financeiro, será primeiramente com o intuito de defender os mesmos interesses de sempre, de modo a garantir a continuidade da acumulação e a prevenir sobressaltos. A anunciada “refundação do capitalismo” de que falava Sarkozy e outros líderes europeus… não passou de um episódico remoque de consciência perante a devastação da crise, invisibilizando-se no espectáculo da ambição política pela “riqueza” e pelo “crescimento”, à medida que são removidos todos os entraves jurídicos e simbólicos à proliferação dos mercados, aos fluxos de capitais e mercadorias, bem como às redes de informação que os suportam e dão expressão à nova ficção mercantil do conhecimento.

Assim, confrontamo-nos necessariamente com o clássico argumento de um sistema-mundo tão perfeito que produz a sua própria negação, absorvendo-a num processo em que é sempre parte de si próprio. Philip Dick intuiu-o brilhantemente em Vulcan’s Hammer, e Victor Turner, em The Ritual Process, deu-nos também vários exemplos de como o poder necessita de se contestar para poder perpetuar-se. O calendário festivo da velha Europa e da sua civilização agrária evidenciam o mesmo quando, no Entrudo, se assinala o fim do ciclo do Inverno.

O problema de todos aqueles economistas a que se reporta o graffiti “Estes economistas para quê?”, ou daqueles outros a que se referiu aqui o Nuno Teles (a propósito dos recentes ataques rasteiros do partido do governo à sua esquerda) é, precisamente, o do seu contributo para a opacidade do humano em face da vertigem da medida e da quantofrenia que os torna capazes de justificar e confundir as intenções e as consequências de quaisquer medidas de governação – mesmo quando se trata de redistribuir as migalhas pelos pobres e os milhões por essa legião de banqueiros falidos, Américo Amorim, Manuel Fino, elite milionária angolana… mais a concessão de bens e serviços públicos aos vampiros do costume. Todos eles ilustram bem “a cegueira própria da excessiva visibilidade” (Innerarity 2004); ou, colocando de novo o problema: “a negação está inscrita no próprio sistema, que deste modo se tornou inatacável” (idem). E não valerá a pena regressar ao beco sem saída de Althusser mas, antes, à interrogação crítica da consciência da finitude globalizada da economia, das comunicações e do conhecimento enquanto ficção mercantil; da percepção de uma rotundidade que é o “sistema-interno-do-mundo do capital”, essa estufa asfixiante, palácio de cristal, onde «ser-se humano passa a ser uma questão de poder de compra” (Sloterdijk 2008) e onde toda a dinâmica dos fluxos que o constituem é geradora de múltiplas opacidades, de figuras de excesso e de incerteza, de risco e de oportunidade (Innerarity, 2004).

A capitulação da esquerda (o socialismo na gaveta) perante a imposição da resignação, do realismo acrítico, do pragmatismo da terceira via, seria trágica. A denúncia da toxicidade do capitalismo é um imperativo moral. É urgente, portanto, um “esforço comum para reconduzir a economia à sua matriz ética donde nunca deveria ter saído

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Um sistema irreformável?

«Mas agora que nos afastámos uns quantos passos do precipício - graças, não o esqueçamos, a gigantescas injecções de dinheiro dos contribuintes -, o sector financeiro está rapidamente a voltar ao seu comportamento de sempre. Enquanto o resto do país continua a sofrer com o desemprego crescente, os cheques de ordenado e de compensações de Wall Street estão a crescer para os níveis que tinham antes da crise. E o sector está a aplicar a sua influência política para bloquear mesmo as mais incipientes reformas» (Paul Krugman no i).

«Um ano após a bancarrota do liberalismo, o (pequeno) pânico das oligarquias dissipou‑se; o sistema político parece estar congelado em seu proveito. De vez em quando, um operador mais duvidoso – ou mais azarento – acaba por ficar atrás das grades, entoando‑se nessa altura as palavras mágicas: moralização, ética, regulamentação, G20. Mas depois tudo recomeça como dantes» (Serge Halimi no Le Monde diplomatique - edição portuguesa).

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Crises, perguntas e informações

"A lição final é a de que a liberalização financeira e as crises financeiras andam juntas como o cavalo e a carroça". Martin Wolf recenseia o livro sobre a história das crises financeiras de que se fala (ainda não li). Aponta para algo que me intriga desde que, há alguns anos atrás, li um estudo do FMI que tinha um mapa-mundo com várias tonalidades de vermelho, consoante a intensidade das crises financeiras. Não nos esqueçamos que o número de crises financeiras – cambiais e/ou bancárias – mais do que triplicou desde os anos setenta, quando comparado com o período dos “trinta gloriosos anos” do pós-guerra. Pois bem, Portugal era um dos pouquíssimos países que estava a branco nesse mapa. Como lembra Wolf, entre 1945 e 2007, Portugal, apesar de todas as transformações, não conheceu qualquer crise bancária digna desse nome. Alguém conhece algum bom estudo comparativo que identifique as causas por detrás deste padrão? Será que isto se pode dever à presença pública na banca? Ao facto do sistema bancário ser um "clube de cavalheiros" com pouca concorrência e muita expropriação financeira? E será que este padrão explica a aparente falta de preparação para fazer face a esta crise ou a falta de interesse dos economistas nacionais pelo fenómeno da instabilidade financeira? Talvez venha a encontrar respostas onde encontrei a recensão de Wolf: no economia.info. Trata-se de um verdadeiro e generoso serviço público que diariamente faz chegar ao meu correio electrónico uma selecção do debate económico por esse mundo fora. Três excelentes jornalistas económicos – João Silvestre, Rui Peres Jorge e Sérgio Aníbal – são os responsáveis por uma iniciativa sem preço e com muito valor. Subscrevam.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Compromisso à Esquerda - subscrição aberta online



Car@s amig@s,

Na presença de vários jornalistas (DN, JN, Público, Rádio Renascença e Antena 1, pelo menos), decorreu hoje o lançamento público da iniciativa “Compromisso à Esquerda”, no Martinho da Arcada, em Lisboa.

O apelo, subscrito por um conjunto de cerca de 150 personalidades de vários quadrantes profissionais, sociais e político-ideológicos que constituem a sua comissão promotora, está já disponível para subscrição pública no seguinte sítio da internet: http://www.compromissoaesquerda.com.

Como o tempo urge, era útil divulgarem a iniciativa o mais rápido possível para que todos os que concordarem com a ideia a possam subscrever de imediato.

Lisboa, 30 de Setembro de 2009

Pelos promotores.

Debate e movimento contra maldições

“É que o capitalismo tóxico não foi um mero excesso especulativo (…) É por isso que a formação do maior movimento da esquerda socialista é decisivo para o futuro da confrontação entre alternativas políticas.” Francisco Louçã, no esquerda, retira cinco lições dos resultados eleitorais. A desmontagem dos delírios editoriais de José Manuel Fernandes dá a necessária vivacidade polémica ao texto. Um diagnóstico político, um diagnóstico da conjuntura capaz de guiar uma alternativa, não prescinde de considerações sobre a crise do capitalismo português, sobre a sua crescente toxicidade socioeconómica e intelectual e sobre a melhor forma de fazer face a esta e a outras maldições.

Na minha opinião, quem apoia convergências duradouras entre os partidos de esquerda tem o dever de ancorar essa generosa aposta em análises exigentes e sobretudo em propostas substantivas no campo das políticas públicas. A CGTP também percebeu isso. A sua análise dos resultados é acompanhada de dez propostas gerais, mas clarificadoras, para um governo de mudança que esteja à altura das circunstâncias: onde e como dar os toques de política com impactos estratégicos?

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Impeachment

Ouve falar há vários meses de suspeitas de escutas e só hoje se lembra de pedir a peritagem (não ao sistema de comunicações, mas ao sistema informático). Sabe que um seu assessor acusa o governo de espionagem, mas não o corrobora nem o desmente - e acha isso normal. Perante a notícia de que esse assessor falou em seu nome, afirma que ninguém fala em seu nome, mas também não o demite (apenas o afasta das funções). Quando todos vimos o PSD a usar as suspeitas de vigilância para alimentar a teoria da asfixia democrática, limita-se a acusar o “partido do governo” de tentativas de manipulação e insiste que é um homem isento. Fazendo a declaração mais destabilizadora que podia fazer neste momento delicado, quer que acreditemos que constitui o garante da normalidade democrática.

O homem que nunca se engana e raramente tem dúvidas não está no seu pleno juízo. Quanto tempo mais teremos de viver com alguém assim à frente da República?

Quilos e Quilos de Bolo Rei


As declarações do Presidente da República sobre o caso das escutas são um dos momentos mais confusos e disparatados da vida política dos últimos anos. Senão vejamos:

1. O PR não esclarece se afinal desconfia ou não das escutas. Despediu o seu assessor mas também não esclarece se ele ficou ou não na Casa Civil. E, no entanto, parece relativamente evidente que um assessor de imprensa que implicasse sem fundamento o PR numa denúncia à Comunicação Social não arranjaria um emprego na Câmara do Marco de Canavezes, quanto mais permanecer na Casa Civil...

2. Sobre os problemas de segurança, o PR aposta na confusão: fala sobre violação de e-mails da Presidência, como se o e-mail que veio a público tivesse alguma coisa a ver com a Presidência e não fosse um e-mail entre dois jornalistas. Aliás, qualquer desses jornalistas poderia ter posto cá fora a dita-cuja missiva (não estou a dizer que foi o caso) sem que para isso fosse preciso qualquer filme de espionagem. De qualquer forma, não existe nenhum facto que sugira violação da correspondência da Presidência ou, se existe, ele não foi referido pelo PR.

3. Se a ideia era matar uma falsa notícia, não se percebe porque não o fez durante a campanha, desanuviando o ambiente e recentrando a campanha no debate de ideias. Ao deixar essa dúvida marinar, aparentemente sem fundamento e por responsabilidade (no mínimo) de um elemento da sua própria Casa Civil, o PR efectivamente interferiu na campanha. Aliás, não foram só os dirigente do PS, BE e PCP que exigiram um esclarecimento imediato. Pacheco Pereira falou no mesmíssimo sentido.

4. Porque não pode reconhecer essa ingerência, o Presidente foge para a frente: atira-se a dirigentes não identificados (coisa mui digna e isenta num Presidente), lança mais suspeitas e insinuações e encoraja o clima de dúvida e confusão. Ou seja, mais poeira e intriga irresponsável.

5. Esta embrulhada, que partiu da Presidência da República e promete continuar a entreter o país (por acaso, durante outra campanha eleitoral), mostra bem como o sentido de Estado é entendido pela Presidência. A isenção é uma palavra para usar e abusar nas comunicações ao país mas sem grande valor para a prática política quotidiana. É por isso que a fotografia que ilustra este post se arrisca a tornar-se um dos momentos menos constrangedores da vida política de Cavaco Silva. Ele é bem pior sem a boca cheia.

Compromisso à Esquerda - apelo à estabilidade governativa

"As recentes eleições revelaram que as preferências maioritárias dos portugueses deram a vitória ao PS, embora aquém da maioria absoluta, e uma maioria de esquerda (PS, BE e CDU) em votos e mandatos parlamentares. Por um lado, o PS ganhou com 36,6% dos votos, mas perdeu cerca de 8,4% dos votos face aos 45,0% de 2005. Por outro lado, entre 2005 e 2009, os partidos à sua esquerda aumentaram significativamente (BE: de 6,4% para 9,9%) ou muito ligeiramente (CDU: de 7,5% para 7,9%). Tudo somado, e mesmo tendo em conta que ainda faltam distribuir 4 deputados da emigração, há uma clara maioria à esquerda, seja em termos de votos (53,8% do total), seja em termos de lugares no parlamento (127/230 = 55,2%). Portanto, ao rejeitar a maioria absoluta, o eleitorado apontou para a necessidade de entendimentos entre os partidos. Além disso, tendo em conta a maioria das esquerdas, podemos dizer também que o eleitorado aponta para que, prioritariamente, tais esforços de entendimento sejam feitos neste sentido.

Estes resultados exigem que as esquerdas se encontrem e sejam capazes de explicitar o contributo que cada um destes partidos (PS, BE e CDU) está disposto a dar para se encontrar uma solução estável de governo, tão comum por essa Europa fora. Pelo menos essa tentativa de entendimento é devida ao povo português pela forma como demonstrou a sua vontade eleitoral.

Os subscritores do presente apelo convidam a comunicação social para o lançamento público da iniciativa, no Martinho da Arcada, em Lisboa, nesta quarta feira, 30 de Setembro, pelas 17H00. Neste mesmo dia, o apelo, subscrito por um conjunto de cerca de 150 personalidades de vários quadrantes profissionais, sociais e político-ideológicos que constituem a sua comissão promotora, estará disponível para subscrição pública no seguinte sítio da internet: http://www.compromissoaesquerda.com.

Lisboa, 29 de Setembro de 2009

Pelos promotores

Isabel de Castro
Maria João Seixas
Maria do Céu Guerra (co-porta-voz)
Ana Paula Fitas (co-porta-voz)
Fernando Vicente
Ulisses Garrido (porta-voz)"

A campanha civilizada vai continuar

“Uma campanha inteligente e civilizada, contrastando com o desnorte e o radicalismo do PSD.” Vital Moreira sobre o CDS. Preparem-se para o pior. Uma campanha civilizada? A campanha do racismo social contra os excluídos? A defesa da combinação da «piedade» e da «forca» para lidar com os pobres? A xenofobia latente? A defesa, na teoria e sobretudo na prática governamental, do Estado penal e da redução do governo a simples executivo dos negócios das fracções mais predadoras da burguesia, dos submarinos aos sobreiros? Enfim, leia-se o livro do sociólogo francês Loïc Wacquant – Punir os pobres: o governo neoliberal da insegurança social – se se quiser entender melhor para onde nos conduzem estas campanhas civilizadas: o pesadelo do Estado penal norte-americano está a chegar à Europa. Desorientação ou orientação de Vital Moreira? Num país brutalmente desigual, num país com aparelhos de segurança pública e privada em acentuado crescimento, que estas coisas estão relacionadas, podemos estar a entrar numa nova fase da «governamentalidade» neoliberal. A descaracterizada social-democracia aperta a mão à reforçada extrema-direita parlamentar?

Respeito e medo

"Uma vez mais, e de forma clara, os portugueses votaram maioritariamente à esquerda e esse voto tem de ser respeitado." Vale a pena ler o comunicado da CGTP, em especial as suas dez prioridades para um governo de esquerda. Muito depende da arte e do engenho da acção colectiva dos trabalhadores. Entretanto, Van Zeller tem medo da esquerda. Demasiados patrões portugueses têm medo de quem esteja disposto a fixar-lhes regras exigentes. Regras que assegurem um maior equilíbrio nas relações laborais e que aumentem os incentivos para a modernização da estrutura produtiva, a partir do momento em que os sectores mais retrógrados do patronato sabem que não podem mais prosperar através da transferência sistemática de custos para os trabalhadores e para a sociedade: baixos salários, relações laborais autoritárias, precariedade, doenças laborais, poluição, etc. A exigência em relação a quem detém os activos da economia tem de ser muito maior. As consequências da complacência liberal estão à vista.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Tornar possível a esquerda necessária


Com mais ou menos consultas e negociações, Portugal vai ter mais um governo da chamada “esquerda possível”, desta vez sem maioria absoluta. Os líderes do PS (incluindo a sua corrente Opinião Socialista) e os do Bloco de Esquerda tiveram muito tempo para negociar convergências programáticas e políticas que facilitassem uma fórmula de governação bem estruturada, cujos últimos retoques seriam dados nos próximos dias. Mas preferiram deixar tudo na mesma, o que é congruente com as diferenças de visão do mundo, da economia, de valores … que os separam. Estabilidade governativa à esquerda, negociada com seriedade intelectual e política, implicava muito trabalho e humildade quanto baste. Não aconteceu. Não era possível?

Vamos pois ter um governo com frágil apoio parlamentar, ou com apoio político de "geometria variável", ora negociado com o CDS-PP ora com o Bloco de Esquerda e/ou a CDU. Acontece que, com políticas de "geometria variável", não há estratégia de desenvolvimento. Não há futuro decente para o País. Este governo da “esquerda possível” vai ser confrontado com: a drástica redução das receitas fiscais face a um crescimento que vai tardar e, quando aparecer, será anémico; exigências de vários lados para conceder mais apoios sociais para atenuar a crise; exigências de Bruxelas e da finança internacional para que faça mais "reformas estruturais", quer dizer, menos despesa e mais desemprego. Acabará por se deixar entalar numa estratégia de meio-termo, de compromissos desconexos, naquele tipo de estratégia que Michael Porter qualificava "de desastre".

Para os que acreditam que o País tem futuro, talvez ainda se possa escrever direito por linhas tortas. À gravidade da situação financeira do País, à insustentabilidade do nível de desemprego a que se chegará, às divisões que depressa se vão cavar dentro do PS e do BE quanto às políticas a adoptar no imediato, juntar-se-á a pressão das elites de esquerda para que o País encontre uma solução governativa à altura dos desafios dos próximos anos. Porém, essa solução não é possível com o predomínio da "esquerda possível", ela só resultará de uma esquerda "socialista", uma esquerda mais do que nunca "necessária". Se realmente quisermos, a partir de hoje começa a contagem do tempo urgente da sua criação.

Esboço de alguns passos fundamentais:

a) Dentro do PS, os militantes das suas correntes de opinião deveriam elaborar uma reflexão autónoma relativamente aos órgãos do partido e ao governo sobre o que significa ser socialista hoje, e que implicações políticas retiram dessa reflexão. Deveriam também reflectir sobre a qualidade da democracia que praticam internamente;

b) Dentro do Bloco, os militantes e dirigentes deveriam assumir que a tarefa histórica a que se propuseram na última década foi um êxito. Mas também devem reconhecer que esta etapa se está a esgotar. Vão ter de praticar destruição criadora: a de superarem a antinomia “gerir o capitalismo” versus “derrubar o capitalismo”. Trata-se de ir assumindo responsabilidades no governo do capitalismo e, ao mesmo tempo, irem introduzindo elementos de subversão. Fazer o exercício da governação participada e transformadora. Claro que é reformismo, e os frutos das reformas nem sempre se vêm logo. Contudo, será um reformismo tão bem sucedido quanto mais for capaz de ir tornando o nosso capitalismo irreconhecível (e inaceitável) aos olhos dos financeiros. Uma escolha exigente para o BE.

c) Dentro do PCP, dever-se-ia discutir a viabilidade de uma participação naquilo que bem se poderia chamar “refundação da esquerda”. Seria importante obter uma decisão clara do PCP quanto ao seu interesse em discutir as bases programáticas de um novo partido de “esquerda socialista” para o século XXI onde a pluralidade de pontos de vista seja considerada uma riqueza.

d) Fora dos partidos – vários grupos independentes, sobretudo intelectuais, deveriam dar início a uma reflexão programática, bem fundamentada, sobre a estratégia dos socialistas em Portugal e na UE nas próximas décadas. Um primeiro documento, já com algum detalhe, deveria ser objecto de aberta discussão até meados de 2010 com todos os que estivessem interessados.

e) Concluída a redacção do documento programático seria lançado um novo partido que recolheria toda a gente da "esquerda socialista" disposta a fazer algumas rupturas (mais ou menos dolorosas) com o seu percurso político passado. É previsível que muita gente esteja descontente com a actual fragmentação da esquerda mas, pelas mais variadas razões, acabe por não conseguir romper com os respectivos partidos. Contudo, um projecto desta natureza não pode ficar à espera da unanimidade.

O processo de lançamento do novo partido deveria estar concluído a tempo das próximas eleições legislativas que, muito provavelmente, serão eleições intercalares. A meu ver, chegou a hora de tornar possível a esquerda de que o País precisa, a "esquerda necessária". É que o País vota maioritariamente à esquerda mas não está feliz com a representação política que recebe em troca. E tem razão, merece melhor.

Política a política

O socialismo desfaz-se e faz-se política pública a política pública. As reformas estruturais de que o país necessita – do imposto sobre as grandes fortunas à revisão do código do trabalho, passando pela apropriação pública das mais-valias fundiárias obtidas graças a modificações políticas ou pelo reforço do subsídio de desemprego para fazer face à crise – também. O novo parlamento, sem maiorias absolutas de um só partido, pode facilitar este processo de transformação, a partir de uma valorização do debate e da participação democráticas. Pode. A esquerda socialista duplicou a sua força. O processo de reconstrução da esquerda portuguesa vai continuar. Enfim, as esquerdas alternativas somam 18% e têm juntas um milhão de votos. Com 36% e uma descida assinalável, a esquerda-mocambo precisa de uma boa dose de cafeína. As escolhas do PS são claras: bloco central com um partido sem paz, pão, povo e liberdade, alianças com a extrema-direita em ascensão ou convergências à esquerda para mudar o país. Política a política, as escolhas ficarão muito mais claras e isto será muito pedagógico e interessante. Vejam o que aconteceu ao SPD na Alemanha: quem converge com a direita e com as suas políticas perde. Aprender sempre. Esperemos então que não se repitam as cedências sistemáticas ao empresarialmente correcto. Isto também depende da capacidade das esquerdas alternativas, dentro e fora do parlamento. Este é mesmo o primeiro dia do resto da vida da esquerda num país onde a direita está em minoria...

A verdadeira asfixia democrática

Há um pequeno país que vive num regime de asfixia democrática. O seu legítimo presidente está cercado e não se sabe quando regressará ao exercício das suas funções. Falo, obviamente, das Honduras. Faz hoje três meses que Manuel Zelaya foi deposto por um golpe de Estado condenado por toda a comunidade internacional, que se recusa a reconhecer o novo poder. O resto da minha crónica semanal pode ser lido no i.

domingo, 27 de setembro de 2009

O cavaquismo morreu


Que fique morto e enterrado.

Um ciclo a não perder


Economia Global e os Muros da Repartição nos Estados Unidos e no Mundo
28 de Setembro de 2009, 16.00, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

John Schmitt (Center for Economic and Policy Research in Washington, DC)
Desigualdade como Política: Os Estados Unidos desde 1979.
Thomas Coutrot (Ministério do Trabalho e Membro do Conselho Científico da ATTAC, França)
Que emancipação do salariado no séc. XXI?

Esta é a primeira iniciativa de um ciclo a não perder. Mais detalhes aqui.

sábado, 26 de setembro de 2009

República das bananas?

Estou a escrever a minha crónica para o i. Para variar, decido concentrar-me no vergonhoso golpe de Estado nas Honduras, que faz na próxima segunda-feira três meses. Situação volátil. A embaixada brasileira, onde o legítimo Presidente deposto, Manuel Zelaya, está refugiado, está a ser atacada pelo exército (via cinco dias). O governo brasileiro já fez saber que a única solução aceitável é o regresso de Zelaya à presidência. Claro. O que pensará agora Palmira Silva da esquerda neo-conservadora? Pergunta de um pobre "albanês"?

Leituras para um dia de reflexão

A New Left Review é uma das minhas revistas preferidas. No último número, destaque para as especulações de Gopal Balakrishnan sobre a actualidade do espectro que perseguiu os economistas clássicos – o estado estacionário: “será que é inevitável que novas fases de acumulação emirjam depois do que promete ser uma enorme e prolongada convulsão?” Jan Breman, por sua vez, demole os mitos da rede social supostamente criada pela crescente informalização da economia, ali onde a crise faz as suas maiores vitimas: entre os mais pobres dos mais pobres. Duas propostas de leitura para um dia de reflexão.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Inovar à esquerda - III

[Conclusão do texto iniciado aqui e continuado aqui]
3. A democracia tem de estar presente também na economia e nas relações económicas

Por último, queria referir que a actual crise veio também impor que se proceda à revisão do conceito de empresa e, consequentemente, à definição dos parâmetros de definição da responsabilidade social da mesma.

A democracia não pode ficar confinada ao sistema político e dizer respeito apenas às funções do estado na sua relação com os cidadãos e cidadãs enquanto votantes. A democracia tem de estar presente também na economia e nas relações económicas.

A ideia de que o mercado, só por si, é o garante da democracia económica presidiu ao pensamento liberal e neo-liberal das últimas décadas, mas hoje não resiste à verificação empírica: as grandes desigualdades, o risco ambiental, o desemprego massivo, só para referir alguns exemplos de disfunções que o mercado não previne nem corrige. Volta a falar-se na necessidade de um papel mais interventivo do Estado e dos Órgãos de regulação e orientação estratégica do desenvolvimento que matizem o papel do mercado, nomeadamente na salvaguarda do bem comum, da coesão social e dos direitos das futuras gerações.

Também o conceito de empresa carece de profunda revisão. Com efeito, a empresa não é apenas um capital, mas uma realidade social complexa, que envolve múltiplas relações: entre os diferentes sujeitos que nela intervêm (trabalhadores, fornecedores, clientes, além dos detentores do capital) bem como com a sociedade onde está implantada e onde opera. Assim sendo, os gestores não devem responder apenas, como hoje sucede, perante os accionistas que os nomeiam, mas devem também assumir responsabilidades perante os demais elementos que integram a empresa. Ladislau Dowbor ao defender a democracia económica, afirma que esta “se manifesta na qualidade da inserção no processo produtivo, no acesso equilibrado aos resultados do esforço, e no acesso à informação que assegure o direito às opções.” Estas questões não são novas. A título de exemplo, veja-se Robert A. (1985) - A preface to economic democracy, University of Califórnia Press.

Concluindo

No meu próprio percurso académico, fui acompanhando e participando no esforço comum para reconduzir a economia à sua matriz ética donde nunca deveria ter saído.
Quero crer que a presente crise venha a ter o mérito de colocar de novo na agenda académica e política estas questões e abrir caminho para a construção de uma real democracia económica, capaz de assegurar, em simultâneo, eficiência na utilização responsável dos recursos e repartição equitativa dos bens alcançados.

A extensão e a persistência do fenómeno da pobreza à escala mundial, incluindo nesta os países ricos e de economia avançada, a par de uma maior consciência dos direitos humanos universais são, a meu ver, razões para acelerar as mudanças de paradigma económico que a crise exige.

Combater as causas da pobreza e erradicá-la das nossas sociedades de abundância e desperdício, enquanto violação de direitos humanos, implica olhar criticamente para o modelo de economia actual e identificar caminhos que levem à democratização da economia, incluindo a revisão dos conceitos de empresa e de mercado em que aquela se fundamenta.

“Este Bloco de Esquerda é mesmo um perigo.”

Os blogues de apoio partidário do PS e do PSD não me interessaram muito nesta campanha. Serviram como meras claques de cada um dos partidos. Já é mais chato quando começam a inventar coisas, como o Zé Neves aqui assinala.

Parece valer tudo. O pudor dos líderes do PS na campanha não tem correspondência nos seus apoiantes. Não há aqui a mínima tentativa de debate político. Porfírio Silva qualifica Louçã de “pároco de Arronches”. Fiquei esmagado pelo argumento. Palmira Silva decide alinhar com Paulo Portas no ridículo insulto de associar o BE à Coreia do Norte ou à Albânia. Enfim, já sabemos que, ao contrário dos congéneres europeus, a origem identitária do PS foi o combate à esquerda. Num momento em que as sondagens mostram a possibilidade de viabilização de um governo do PS pelo PP, estas convergências não são nada estranhas, pois não? “Este Bloco de Esquerda é mesmo um perigo” escreve Palmira. Pois é, mas para quem?

Todavia, o maior prémio do argumento mais rasteiro vai para Carlos Santos que confunde o que se escreve neste blogue com o Programa do Bloco de Esquerda (obviamente, sem referir o meu post). Fico muito honrado pelo poder que me atribui, mas se quer discutir o cheque-dentista é de bom-tom interpelar quem sobre ele escreveu e não começar, sei lá, a inventar.

De facto, sou contra o cheque-dentista como paradigma do que não se deve fazer na saúde. Num país em que os médicos dentistas são forçados a emigrar maciçamente para o estrangeiro, acho extraordinário que este governo promova um modelo de cuidados de saúde que, sendo necessariamente parcial, porque dificilmente consegue financiar o tratamento de duas cáries, promove e fortalece o actual modelo de provisão exclusivamente privada de medicina dentária. Defende Carlos Santos que um serviço de saúde público dentário não se cria com um “estalar de dedos”. Pois não. Mas o que fez este governo nesse sentido? Esta é simplesmente uma discussão sobre qual deve ser o destino dos recursos públicos. O resto é areia para os olhos dos pasmados leitores de Carlos Santos.

O sábio, artífice de humilhante derrota

O sábio fez na terça-feira, no Público, na sua usual coluna um artigo sobre as “leis de bronze” do sistema partidário português que tem tanto de ciência quanto pode ter uma generalização (“lei”) baseada num único caso (Portugal, ainda que multiplicado por 12 eleições, mas muitas deles sem necessidade de acordos: 12 – 3 (maiorias absolutas) = 9), ainda que com 9 ocorrências.

Quanto à sapiência, penso que estamos conversados…

Mais recentemente, terá afirmado o sábio/spin doctor, segundo uma notícia do Público:

“Quem não é por nós está contra nós! Esta é uma interpretação Vital das declarações do rosto da última derrota do Partido Sócrates. Segundo o Público, "o constitucionalista" disse à Rádio Clube «que o PS não deve ceder à oposição e que se tiver dificuldades em aprovar os orçamentos e em conseguir “maiorias de geometria variável” é preferível clarificar a situação com novas eleições para perceber “se deve governar quem ganhou as eleições ou se devem governar as oposições coligadas”». Portanto, para evitar novas eleições, segue-se já a orientação do "constitucionalista": quem deseja uma coligação entre o Partido de Sócrates e "as esquerdas", só tem de votar PSD. Se este ganhar as eleições, governam as oposições coligadas.”

Mas as afirmações deste ilustre sábio não são apenas de sapiência duvidosa, são também de muitíssimo duvidosa eficácia enquanto conselheiro político: recorde-se que, com ele como cabeça de lista, o PS teve a maior de derrota de sempre em europeias (a segunda maior em termos relativos) e, em larga medida, por causa dos seus conselhos políticos.
A sua responsabilidade na derrota, que antevi muito antes das europeias, expliquei-a aqui, aqui e aqui.

Será uma deriva suicidária?

Governabilidade à esquerda

Se estivéssemos numa democracia madura, como a espanhola, a francesa, a italiana, a sueca, a norueguesa, a dinamarquesa ou a finlandesa, etc., o acordo parlamentar entre um PS com maioria relativa e o BE seria perfeitamente plausível. Numa tal democracia e em abstracto, seria talvez desejável incorporar também a CDU (mesmo que aritmeticamente dispensável) para que não ficasse a monopolizar o protesto…

A improbabilidade de um tal acordo não radica nas distâncias ideológicas que, embora grandes, não são muito diferentes das que se verificam nesses outros países em partidos congéneres. E mesmo em políticas de mais difícil aproximação (Europa e política externa), a Suécia fornece o exemplo: deixar essas políticas fora do acordo.

O problema é que às lideranças de cada um dos três partidos parece faltar-lhes a atitude compromissória necessária. Esta atitude não é congruente com a vontade maioritária dos seus eleitores (daí, provavelmente, a brutal queda do BE). Se o veredicto popular for claro nesta matéria, creio que os que não estiverem à sua altura poderão ser fortemente penalizados em próximas eleições.

Publicado no Diário Económico, 25/9/2009, no contexto de um dossiê especial sobre as eleições.

Razões de um voto

Por que voto à direita? Por que voto à esquerda? Duas perguntas do i. Duas respostas no i. Paulo Tunhas responde pela direita. Eu respondo pela esquerda:

Um voto à esquerda, tal como a cantiga, é uma arma. Contra quem? Ou melhor, contra o quê? Contra a insolência que o dinheiro ganha quando está concentrado em poucas mãos, contra a sua conversão em poder político, em desigual capacidade para influenciar e moldar decisões que dizem respeito a toda a comunidade. Um voto à esquerda é um voto contra a tirania das desigualdades socioeconómicas. Este é o grande bloqueio à participação democrática dos cidadãos na definição dos destinos comuns e a uma saída mais rápida para a crise.

Um voto à esquerda exprime a vontade de pertença a uma comunidade política que tem num Estado Social robusto o seu pilar essencial. Os bens e serviços públicos, geridos democraticamente – do Serviço Nacional de Saúde à escola ou à biblioteca públicas, passando pelos correios ou pela Segurança Social –, são a base material de uma sociedade de bem-estar. Mandar uma carta para qualquer ponto do país deve custar o mesmo. São estas pequenas coisas que fazem uma sociedade decente. Proteger os serviços públicos contra as tentações da sua comercialização, ou seja, da sua perversão, é uma tarefa para a esquerda.

Um voto à esquerda é um voto realista. O desmantelamento do Estado Social que nos propõe a utopia de mercado não é o início do reino da liberdade, mas sim o início do Estado Penal, do Estado que encarcera os pobres e excluídos ou que promove a administração de paliativos caridosos que não passam de incentivos à subordinação e ao preconceito, maus substitutos dos direitos sociais, dos direitos de cidadania.

Um voto à esquerda é uma autorização para entrar nos grandes baluartes de poder e de subordinação – as empresas – e para distribuir direitos e obrigações de outra forma. Esta opção traduz uma vontade política de fixar regras exigentes que assegurem um maior equilíbrio nas relações laborais e que aumentem os incentivos para a modernização da estrutura produtiva, a partir do momento em que os sectores mais retrógrados do patronato sabem que não podem mais prosperar através da transferência sistemática de custos para os trabalhadores e para a sociedade sob a forma dos baixos salários, das relações laborais autoritárias, da precariedade ou da poluição.

Um voto à esquerda defende as famílias, ameaçadas por uma sociedade de mercado que, mesmo em crise, odeia tempos mortos, ou tem formas desumanas de os gerar. É um voto contra códigos do trabalho que dão poder aos patrões para baralhar ainda mais horários e rotinas. A luta pela possibilidade do casamento por parte de pessoas do mesmo sexo é também uma luta em defesa da família, de todas as famílias. Um voto é um modesto contributo para que a ética do cuidado possa florescer e para que possam ser removidas, pouco a pouco, as fontes evitáveis de infelicidade.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Convergências e divergências intelectuais

Numa manifestação de trabalhadores no Chile de Allende pontificava uma faixa onde se podia ler: «é um governo de m..., mas é o nosso governo». Talvez um governo socialista não possa, não deva, almejar mais. É o realismo de quem reconhece que as expectativas estão em adaptação permanente e que o campo dos possíveis não é fixo. E ainda bem.

Seja como for, as políticas do keynesianismo ecológico e social no marco do capitalismo são valiosas, entre outras razões, porque atenuam o grande mecanismo que disciplina as classes subalternas – o desemprego e a multiplicação de transacções desesperadas – e porque podem gerar a confiança e a imprevisibilidade que anunciam transformações na forma como se produz. Como argumenta Prabhat Patnaik neste artigo, as medidas de promoção do Estado Social não se opõem, pelo contrário, ao socialismo como processo de intensificação do protagonismo popular . E, entretanto, tornam a vida mais decente para todos.

No actual contexto, a expansão destas políticas depende, é claro, da progressiva remoção do chamado colete de forças dourado criado pela globalização económica. Uma boa dose de proteccionismo comercial e de mecanismos de taxação e de controlo de capitais a várias escalas (sobretudo a escala dos grandes blocos regionais) mudaria a correlação das forças sociais porque reduziria o impacto desestabilizador da concorrência internacional e das ameaças de fuga dos capitais, os dois grandes bloqueios à política socialista. Isto apesar da mobilidade de capitais e da sua capacidade em fazer reféns serem menores do que se julga.

Não há nada de novo aqui, mas há coisas que têm de ser constantemente relembradas porque, talvez devido aos muitos anos de hegemonia neoliberal, há gente à esquerda que delas se esqueceu. Não cesso de me espantar com o uso de termos totalmente vazios, caso da «economia de mercado», cuja função de ofuscação ideológica deveria ser evidente para quem quer alternativas à esquerda. O mercado é, entre outros, um plástico e necessário mecanismo de coordenação, claro, mas muito do que conta passa-se a montante e a jusante dele. Devemos voltar a falar de capitalismos e de socialismos. No plural porque as instituições económicas têm alguma plasticidade e é variado o menu das suas combinações.

Boas intuições morais, valores socialista firmes, teoria social crítica e unidade política é tudo o que a esquerda pode ter no seu caminho de criação das condições para o tal governo da faixa. Não é pouco. Isto permite-nos separar o trigo das reformas socialistas do joio das políticas conformes ao capitalismo tóxico. O resto é correlação de forças, hegemonia e infinita paciência.

Escrevi um capítulo neste livro plural acabado sair e que coordenei com Renato Carmo. Inspirado em Karl Polanyi, toco em alguns destes temas. Depois das eleições, assente o pó, trocaremos umas ideias sobre os assuntos. O debate não pode parar.

Tarefa socialista: impedir a maioria absoluta de Sócrates

O PSD já perdeu. Cavaco e as «baboseiras» (a expressão é de Paulo Mendo, antigo ministro do PSD) de economistas retintamente neoliberais como António Borges (a mão que escreveu um manifesto pobre para parar o país) deram um bom contributo. Uma campanha sem paz, pão, povo e liberdade. Agora a coisa discute-se à esquerda. Só uma votação expressiva na esquerda-café pode impedir o poder absoluto da esquerda-mocambo. É questão de esmiuçar a realidade do país. A esquerda do PS sabe, no fundo, que a sua sorte depende do fracasso do seu apelo ao voto em Sócrates. Um paradoxo interessante. Só se mudarmos a correlação de forças à esquerda é que podemos começar a atacar os grande baluartes do privilégio neste país, a remover discriminações - como as que impedem o casamento de pessoas do mesmo sexo ou a adopção - que são outros tantos mecanismos de geração de infelicidade ou a criar um multiplicador de igualdade e de combate à corrupção, lançando um imposto sobre as grandes fortunas, um novo imposto sucessório, assegurando a apropriação pública das mais-valias fundiárias, revendo um código de trabalho que ataca a contratação colectiva e os tempos da família ou proibindo os contratos a prazo por mais de um ano. Proposta a proposta impede-se uma maioria absoluta, constrói-se uma esquerda grande e desmonta-se o bloco central de interesses que nos tem desgovernado.

Dou a palavra a Fernando Rosas numa excelente iniciativa do i: «A estratégia neoliberal gerou a desigualdade e a injustiça social mais profundas, mergulhou o país numa crise estrutural duradoura, numa semiperiferia dependente e subqualificada, em suma, confirmou, e aqui regressamos, a falência histórica das elites pós-abrilistas, dos seus partidos do centro-direita e do seu modelo neoliberal quanto à modernização economicamente sustentada e socialmente justa do país. Isto, só por si, exprime o grave impasse actual da democracia portuguesa.É, por tudo isto, o momento histórico de desarticulação do bloco central e de romper o caminho de mudança. Isto é, de juntar e organizar o campo social e político capaz de protagonizar um novo modelo de desenvolvimento e uma governação de novo tipo à esquerda. É claro que falo de um processo em que o BE não é senão um participante, falo de um movimento de reunião de forças sociais e políticas, partidárias e não partidárias, que se iniciou antes das eleições e continuará para além delas, mas em que se apela ao voto no BE como um gesto de confirmação, apoio e reforço decisivo à construção de um poder político e social alternativo.»

Inovar à esquerda - II


[Continuação do texto iniciado aqui]

2. Um modelo de crescimento económico inviável

A crise mundial que conhecemos teve (e tem!), como seria de esperar, consequências muito negativas do ponto de vista do agravamento da pobreza, tanto em extensão como em intensidade. Não só se agravou a pobreza tradicional em muitos países como surgiram novas formas de pobreza, sobretudo em países ditos desenvolvidos, incluindo os Estados Unidos e os países da U E.

Os governos nacionais e as autoridades supranacionais têm procurado contornar os efeitos da crise e evitar que o fenómeno da exclusão social se propague e atinja níveis que ponham em risco a própria democracia e o modelo de economia e de sociedade que conhecemos. Cresce a convicção de que não bastam medidas pontuais, já que a crise é global e de natureza sistémica e que são também muito limitados os resultados das políticas nacionais, por mais generosas que se apresentem.

Surgem no horizonte propostas de criação de mecanismos que assegurem uma melhor regulação das transacções a nível mundial e pressões políticas no sentido de que se venha a pôr termo à especulação financeira que esteve na origem do desencadear da crise. Por seu turno, no plano nacional, os reguladores financeiros impuseram critérios mais exigentes no que respeita a normas prudenciais e intensificaram as acções inspectivas assim como têm recorrido a injecções de liquidez no sistema.

São certamente medidas necessárias e urgentes mas, por enquanto, deixam intocável o modelo de crescimento económico. Ora, a crise actual não é apenas uma crise financeira com os seus decorrentes efeitos no funcionamento da economia. É o próprio modelo de crescimento económico que se mostra inviável: quer por razões de insustentabilidade ambiental (esgotamento de recursos não renováveis, efeitos sobre a degradação do meio ambiente, atentados à biodiversidade, …) quer por aumento de risco de perda de coesão social (concretizado na elevada e crescente desigualdade na repartição da riqueza e do rendimento, no elevado volume de desemprego, na precariedade do trabalho e nos baixos salários, no alastramento da pobreza, no desajustamento da oferta de bens às necessidades básicas de boa parte da população) quer, ainda, porque, nas actuais circunstâncias de informação e mobilidade das populações, o mau funcionamento da economia constitui um factor propiciador de violência e de ameaça à paz.

A actual crise obriga, assim, a repensar o modelo de crescimento económico num quadro mais amplo, o da sua finalidade última de desenvolvimento humano e sustentável e abre caminho a um maior envolvimento da sociedade civil na viabilização de empreendimentos de economia social e de economia solidária que assentem na valorização dos recursos humanos e no seu emprego em produção de bens e serviços de utilidade social.

Em particular, cabe atender às necessidades de consumo e às potencialidades de emprego e inserção no sistema produtivo dos grupos de população mais carenciada e providenciar no sentido da criação de serviços de proximidade adequados às suas reais necessidades e recursos humanos. Trata-se de olhar a crise a partir de baixo e colocar a economia ao serviço das pessoas e do seu bem-estar.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Ainda há social-democratas no PSD?

Surpreendentemente, parece que sim. Paulo Mendo, ex-ministro da Saúde do PSD, arrasa o programa do PSD (o discurso político de António Borges é qualificado como "baboseira") e acusa o governo PS de promover a entrega dos cuidados de saúde ao sector privado. Não é nada difícil concordar com ele. Foi este governo que manteve e promoveu a empresarialisação dos hospitais (e consequente desorçamentação dos gastos de saúde), que introduziu preços em todos os serviços de saúde (as abusivas taxas moderadoras para internamentos), que entregou a gestão de futuros hospitais públicos a privados depois de desastrosas experiências como a do Amadora-Sintra e, last but not least, inventou o cheque-dentista. Uma medida que mostra bem qual o sentido futuro das políticas públicas de saúde. Financiamento público do mercado privado de cuidados de saúde, desresponsabilizando-se o Estado da provisão.

Inovar à esquerda - I

No passado Sábado realizou-se no Porto uma conferência de homenagem à Professora Leonor Vasconcelos Ferreira. Abrindo a conferência, a Profª Manuela Silva apresentou um texto notável que, pela sua extensão, não vou transcrever na íntegra. Porque considero importante dar a conhecer o seu pensamento inovador, com a devida autorização vou divulgar alguns excertos que constituem, não tenho dúvidas, outros tantos desafios à renovação do pensamento da esquerda em Portugal. Textos para ler devagar.

1. O conceito de pobreza como violação de direitos humanos

O conceito de pobreza mais frequente nos estudos académicos ou nos relatórios institucionais continua a ser o de pobreza monetária, que consiste em considerar como pobres os indivíduos ou agregados familiares cujo rendimento ou despesa é inferior a um certo limiar.

Por outro lado, não basta dispor de certo rendimento monetário para deixar de ser pobre. O reconhecimento desta realidade tem levado a adoptar um conceito de pobreza assente no grau efectivo de privação, em que a privação do rendimento é apenas um elemento de um indicador compósito que contemple os diferentes défices de satisfação relativamente a um conjunto de necessidades essenciais correspondentes ao estilo de vida corrente.

Deve-se a Peter Townsend, recentemente falecido, a ideia original do conceito de privação expresso nestes termos: são pobres os indivíduos, famílias e grupos de população que não dispõem de recursos suficientes para obterem os tipos de alimentação, participarem nas actividades e terem as condições de vida e conforto que são comuns, ou pelo menos largamente encorajadas e aprovadas, na sociedade a que pertencem. (Townsend, 1979)

Por outro lado, não pode considerar-se indiferente o facto de as pessoas poderem - ou não - satisfazer as suas necessidades pelos seus próprios meios. Dispor de um subsídio de assistência social ou ter uma remuneração devida pelo seu trabalho ou por reforma, mesmo que de valores equivalentes, não é o mesmo. A dependência em relação à assistência social configura, só por si, uma situação de pobreza.

Para dar conta de mais esta perplexidade, é particularmente relevante o contributo dado por Amartya Sen que recorre ao conceito de capacitação (entitlement) para definir a pobreza. Segundo este prestigiado economista indiano, prémio Nobel da economia, não são as características dos bens em si mesmos e a respectiva privação que definem a situação de pobreza, mas sim a ausência de capacidades próprias para levar uma vida segundo os padrões correntes na sociedade. (Sen,1983)

Este conceito tem o mérito de, além de acomodar melhor a complexidade do fenómeno da pobreza nas suas várias dimensões, veicular também a ideia de que a pobreza não se combate apenas com medidas compensatórias da escassez de rendimento monetário, ou seja por meio do recurso à subsidiação, mas sim através do reforço da dotação de recursos ao dispor das pessoas e famílias em situação de pobreza, afim de que alcancem capacidades para, por si próprias, assegurarem uma vida digna. Daí a ênfase posta no combate à pobreza através das políticas educacionais e de qualificação profissional, promoção da saúde, inserção no sistema produtivo e no mercado de trabalho, remuneração por serviços prestados à família e à comunidade, etc...

Todos estes conceitos, que, até agora, têm servido de base aos estudos sobre a pobreza, partilham um mesmo ângulo de visão que é o de considerar a pobreza como um infortúnio de alguns dos membros da sociedade a que esta, por razões de solidariedade, deve prestar auxílio, através de políticas públicas generosas e eficientes e de organizações privadas de solidariedade social. Está, porém, em curso um novo conceito de pobreza que poderá alterar profundamente este paradigma.

Com efeito, desde o início do Milénio, tem vindo a impor-se a ideia de que a pobreza involuntária constitui uma violação de direitos humanos fundamentais e como tal deve ser colocada na agenda política, nomeadamente da responsabilidade dos governos nacionais e das instâncias internacionais, a par de outras matérias como a segurança ou a paz. De algum modo, já foi esta a ideia que esteve subjacente ao Pacto dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, assinado em 2001 pela generalidade dos Estados que integram a ONU.

Podemos perguntar-nos: Que valor acrescenta este enfoque ao conhecimento da pobreza e, sobretudo, às estratégias para sua erradicação?

Em primeiro lugar, este conceito traz para primeiro plano o valor da dignidade de toda a pessoa humana, fundamento dos direitos humanos universalmente reconhecidos, e afirma que a pobreza involuntária ofende esta dignidade e põe em causa o valor da vida humana. Em segundo lugar, porque a existência de um amplo consenso universal em torno deste princípio abre caminho a que os governos e as organizações internacionais se comprometam com a definição de estratégias de eliminação da pobreza e encontrem os adequados suportes institucionais para fazer valer estes direitos e sancionar o respectivo incumprimento.

Apesar de reunir um amplo consenso político, não tem sido fácil, porém, implementar esta ideia e encontrar os instrumentos adequados para a transpor para a agenda política e a prática dos governos.

Aproveito a lembrar que, em Portugal, por força de uma petição promovida pela Comissão Nacional Justiça e Paz, apresentada à Assembleia da República em Outubro 2007, aquele Órgão de soberania veio a aprovar uma Resolução (n.º 31/2008) na qual se dispõe o seguinte: declara-se solenemente que a pobreza conduz à violação dos direitos humanos; recomenda-se ao Governo a definição de um limiar de pobreza em função do nível de rendimento nacional e das condições de vida padrão na nossa sociedade; determina-se a avaliação regular das políticas públicas de erradicação da pobreza; afirma-se que o limiar de pobreza estabelecido sirva de referência obrigatória à definição e à avaliação das políticas públicas de erradicação da pobreza.

Como se deduz do teor desta Resolução da Assembleia da República de Julho 2008, há uma intencionalidade por parte deste Órgão de soberania de dar passos neste caminho inovador de introduzir na agenda política da governação do País o conceito de pobreza como violação de direitos humanos.

Elogio da política

«Querem ser populares? Digam mal dos políticos. Chamem-lhes aldrabões, falsários, carreiristas - terão aplauso de aprovação. Começou nos anos oitenta, pela mão do liberalismo yuppie, a estratégia de desqualificação da política. Nas universidades, nos media, na fala de rua, soprou-se que os políticos não são senão empecilhos ao funcionamento da economia segundo as suas "leis naturais". A política como confronto de propostas de fundo foi atirada pelo pragmatismo frio para o campo da verborreia. Os políticos das jotas puseram-se a jeito. E o resultado é este: a repugnância pela política como outra face do "cada um por si". O elogio da política é hoje um imperativo de resistência.»

«A humildade postiça e ensaiada pelo Primeiro-Ministro faz lembrar os liftings que correm mal e deixam as bochechas grotescamente empinadas ou os cantos dos lábios "a la" Joker. Mas, para lá do anedótico, o simulacro de conversão de Sócrates suscita uma questão pouco debatida entre nós: quais devem ser as virtudes públicas numa sociedade democrática e plural? Em tempo de maquiavelismo travestido de humildade, por onde passa a "fortuna" e por onde passa a "virtu"?»

José Manuel Pureza no seu blogue palombella rosa. As palavras são mesmo importantes. Na última terça-feira, Pureza falou de palavras que temos de acarinhar: socialismo e feminismo contra o extremismo da violência social. O parlamento precisa destes «salpicos de vida». Coimbra também. As alternativas, que se escondem atrás de Ana Jorge, são os Vítor Baptistas desta vida. Vítor Baptista é o melhor exemplo do aparelhismo, do bloco central dos interesses e da defesa dos privilégios e abusos dos gestores de topo no país mais desigual da Europa. Esta é a esquerda mocambo. No dia 27 de Setembro, vamos eleger um deputado da esquerda socialista.

Sem paz, pão, povo e liberdade

Houve um tempo em que as belas palavras do hino do PSD - "paz, pão, povo e liberdade" - eram ameaçadoras para toda a esquerda. Era o tempo de Cavaco e das suas maiorias absolutas. Era o tempo em que o PSD tinha uma capacidade de mobilização impar. Era o tempo em que os Dias Loureiros e os Oliveira e Costas desta vida comandavam uma máquina partidária muito bem oleada. Há muito tempo que isso desapareceu. Hoje, o cavaquismo, ou o que resta dele na Presidência da República, já só é um espectro que persegue o PSD. No entanto, sabemos agora que um fantasma consegue destruir uma campanha frágil, ancorada no simulacro da "asfixia democrática" e onde a dura realidade da "asfixia social" criada pela crise do neoliberalismo nunca entrou. O PSD deixou de fazer jus ao seu nome porque o seu programa foi redigido por gente mais habituada ao conforto da Goldman Sachs. Esta é uma campanha sem paz, num partido dividido e enfraquecido pelos comportamentos irresponsáveis de Belém e do seu "porta-voz" no jornal "Público". É uma campanha sem pão porque o PSD desistiu de apresentar um programa de reforço da capacidade pública para tirar o país da crise. É uma campanha sem povo porque Manuela Ferreira Leite, já se sabe, não gosta de comícios, ou seja, não gosta das festas da democracia. Uma maçada. E é uma campanha sem propostas para expandir as liberdades e para remover o que hoje realmente as ameaça - desemprego, precariedade ou desigualdades socioeconómicas. É por estas e por outras que arrisco uma previsão: o PSD já perdeu e o bloco central também.

A minha crónica no i sobre a campanha do PSD também pode ser lida aqui.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Incertezas para as legislativas I I

(continuação)

Falar no “labirinto socialista” não implica escamotear as responsabilidades do BE e do PCP nas dificuldades para a formação de um governo de esquerda plural. Primeiro, temos um dos partidos comunistas mais ortodoxos da Europa. Segundo, há um certo défice de cultura democrática na “esquerda radical”: em democracia os números contam e, por isso, nunca poderão ser os pequenos a determinar as principais linhas de uma coligação. A não ser que também só consigam governar com maioria absoluta… Claro que, num tal acordo, os pequenos obtêm geralmente um poder acrescido. Mas isto não significa que sejam eles a determinar o grosso do programa. Adicionalmente, um estudo recente revelou que é na “esquerda radical” que há um maior desfasamento entre votantes e eleitos, com os segundos bastante mais à esquerda do que os primeiros. Mais, tal como o crescimento da direita não resultou de uma adesão recente às ideias neoliberais, também o crescimento da “esquerda radical” não resulta da adesão a um extenso programa de nacionalizações.


Na Europa é usual as esquerdas entenderem-se. Em França há muito que se entenderam para um “programa comum”, o qual tem tido tradução governativa em várias legislaturas desde 1981. Actualmente, no PSF discute-se a hipótese de alianças que vão dos centristas (MoDem) até à “esquerda radical”. Em Espanha, o PSOE já fez uma coligação pré-eleitoral com a Izquierda Unida (2000), e governou com o seu apoio e o da “Esquerda Republicana da Catalunha” (2004-08). Em Itália, desde 1994 que tem havido várias coligações incluindo as várias esquerdas e o centro. No Chipre, os renovadores comunistas do AKEL (o maior partido, que governa o país e do qual é oriundo o presidente) também têm sabido entender-se com os outros partidos. Na Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia, há muito que os sociais-democratas se entendem com a esquerda pós comunista e libertária para soluções de governo. Pelo contrário, em Portugal continuamos como há cerca de 30 anos. Todavia, vários estudos demonstram que esta falta de entendimentos resulta de um significativo desfasamento entre os eleitores, propensos a um entendimento, e os dirigentes, que persistem na incomunicabilidade. Após as eleições, e se se verificar uma maioria de esquerdas, veremos se os dirigentes destes partidos estarão ou não à altura das suas responsabilidades.

Artigo originalmente publicado no Público de 21/9/2009

Incertezas para as legislativas I

As sondagens apontam para uma vitória do PS ou do PSD, sobretudo do primeiro, sem maioria absoluta. Apontam ainda para um crescimento dos partidos à esquerda do PS. Mas o elevado número de indecisos torna todos os cenários possíveis. Há dois dados de especial relevo. Primeiro, muitos dos eleitores que admitem ainda mudar o sentido de voto são potenciais votantes do BE. Segundo, é também entre estes que muitos dizem ser mais importante “pensar nas consequências do voto para a formação do governo” do que “votar de acordo com as simpatias e proximidades ideológicas”. Ou seja, muito dos potenciais eleitores do BE dão bastante importância à produção de soluções governativas. Logo, caso se vislumbre como totalmente improvável o BE contribuir para tais soluções, então as votações na “esquerda radical” poderão ficar uns furos abaixo do estimado...

A rejeição da maioria absoluta resulta do exercício musculado e pouco dialogante do poder nesta legislatura, da penalização da inflexão centrista do PS e da crise económica. Sobretudo desde a estrondosa derrota nas europeias que os socialistas se apresentam mais propensos ao diálogo e piscando o olho à esquerda. Mas esta mudança é para muitos demasiado tardia e não congruente com a actuação de um governo que passou a legislatura a combater os sindicatos, apesar de alguns acordos na concertação, a passar a ideia de que “só se fazem reformas contra os profissionais” que as irão executar, a descapitalizar alguns dos melhores serviços públicos (veja-se o que se passou no ensino superior) e a fazer da “esquerda radical” a sua bête noire.

Se PSD e CDS juntos conseguirem maioria absoluta, a governabilidade estará, em princípio, assegurada: a última coligação foi suportada por uma maioria coesa, numa conjuntura difícil, e o seu colapso resultou da acção presidencial. Se ganhar, tal dever-se-á não tanto a uma adesão recente dos portugueses às ideias de recuo do Estado social mas antes à rejeição do governo incumbente. Todavia, poderá existir alguma adesão à prudência quanto ao endividamento do país, bem como à necessidade de uma política menos centrada na produção de estatísticas a qualquer preço e, nesta exacta medida, uma certa adesão à “política de verdade”. Tudo junto, e somado a uma certa incapacidade de Leite em capitalizar com a dinâmica das europeias, será porventura insuficiente para uma maioria de direita.

O PS, por seu lado, está só no seu labirinto. Em 2004, altos responsáveis do partido (todos os que apoiaram a candidatura de Alegre nas primárias) defendiam que, em caso de maioria relativa, deviam ser envidados esforços de entendimento entre as esquerdas. O que mudou? Exceptuando algum acentuar do esquerdismo (vide o programa de nacionalizações), alias simétrico da inflexão centrista do PS, BE e PCP continuam iguais a si próprios... Pelo contrário, o PS apostou na estratégia “Sócrates (e a maioria absoluta) ou o caos”. Estão agora num beco de difícil saída: se perderem ou tiverem uma maioria muito relativa, o partido poderá afundar-se com o líder. Haverá sempre a hipótese de entendimento com o PSD, que aliás aprovou a maioria das suas iniciativas legislativas (SOL, 16/5/09), mas Leite não parece coadunar-se bem com Sócrates (e vice-versa). Esta solução agravaria a já pronunciada falta de clareza das alternativas ao centro. E não garante estabilidade: o “bloco central” durou menos do que a coligação PSD-CDS. Há ainda a possibilidade de um governo minoritário, mas será sempre também uma situação de instabilidade potencial.

(continua)

Artigo originalmente publicado no Público de 21/9/2009

O fim do mito cavaquista

Agora que temos mais uma oportunidade de revisitar as sórdidas práticas cavaquistas para além do mito cuidadosamente construído (da rodagem do carro à fracassada "política de verdade" de Ferreira Leite é sempre a mesma cantiga...), acho que vale a pena republicar o que escrevi no i sobre a economia política e moral do cavaquismo:

A “roubalheira” no Banco Português de Negócios, para usar a controversa expressão de Vital Moreira, tem servido para relembrar a experiência neoliberal portuguesa na sua origem, ou seja, a economia política e moral do cavaquismo. Isto é tanto mais útil quanto muitos dos problemas do país resultam das profundas transformações económicas promovidas pelos governos cavaquistas e das normas sociais que as legitimaram.

O cavaquismo legou um guião de políticas de privatização sem fim e de abertura mal gerida às forças do mercado global a que os governos subsequentes só acrescentaram algumas dissonantes notas de rodapé. As mudanças dependem sempre de uma mistura entre economia e política. Não é defeito, é feitio. A mistura iniciada pelo cavaquismo foi perniciosa porque deu origem a um poder político com um fôlego cada vez menor e a um poder económico cada vez mais rentista.
A obsessão cavaquista pela chamada convergência nominal, no quadro da aceleração liberal da integração europeia, contribuiu para uma duradoura sobreapreciação da nossa moeda. Esta opção enfraqueceu a competitividade do sector de bens transaccionáveis para exportação num período de transição crucial e canalizou muito do esforço empresarial para o sector de bens não-transaccionáveis, como foi o caso da construção. Foi à sombra desta e da especulação que prosperou a banca privada impulsionada pelo cavaquismo e por muitos cavaquistas. Nos sectores controlados pelos grupos económicos que ascenderam em Portugal, o mercado é irremediavelmente uma entidade vaporosa que esconde mal a força das redes sociais.

Estes processos foram oleados por um discurso que desprezava o sector público e incensava os negócios privados, mesmo que os últimos crescessem à custa do esvaziamento do primeiro. O cavaquismo representou a vitória de uma perniciosa cultura que transformou a acumulação de dinheiro na base do reconhecimento social. A redistribuição só servia para tolher o homem novo movido a incentivos pecuniários. Os direitos laborais e a acção colectiva eram um vestígio a remover à força de pacotes laborais e de algumas bastonadas. Não é de admirar que o cavaquismo tenha coincidido com a manutenção de elevadas taxas de pobreza e com um assinalável aumento, que nunca mais foi revertido, das desigualdades de rendimentos.

Mário Crespo escreveu recentemente que o mito do cavaquismo acabou. É pena que seja mais fácil acabar com os mitos do com as estruturas económicas e com os valores iníquos que eles nos legaram.