quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Inovar à esquerda - I

No passado Sábado realizou-se no Porto uma conferência de homenagem à Professora Leonor Vasconcelos Ferreira. Abrindo a conferência, a Profª Manuela Silva apresentou um texto notável que, pela sua extensão, não vou transcrever na íntegra. Porque considero importante dar a conhecer o seu pensamento inovador, com a devida autorização vou divulgar alguns excertos que constituem, não tenho dúvidas, outros tantos desafios à renovação do pensamento da esquerda em Portugal. Textos para ler devagar.

1. O conceito de pobreza como violação de direitos humanos

O conceito de pobreza mais frequente nos estudos académicos ou nos relatórios institucionais continua a ser o de pobreza monetária, que consiste em considerar como pobres os indivíduos ou agregados familiares cujo rendimento ou despesa é inferior a um certo limiar.

Por outro lado, não basta dispor de certo rendimento monetário para deixar de ser pobre. O reconhecimento desta realidade tem levado a adoptar um conceito de pobreza assente no grau efectivo de privação, em que a privação do rendimento é apenas um elemento de um indicador compósito que contemple os diferentes défices de satisfação relativamente a um conjunto de necessidades essenciais correspondentes ao estilo de vida corrente.

Deve-se a Peter Townsend, recentemente falecido, a ideia original do conceito de privação expresso nestes termos: são pobres os indivíduos, famílias e grupos de população que não dispõem de recursos suficientes para obterem os tipos de alimentação, participarem nas actividades e terem as condições de vida e conforto que são comuns, ou pelo menos largamente encorajadas e aprovadas, na sociedade a que pertencem. (Townsend, 1979)

Por outro lado, não pode considerar-se indiferente o facto de as pessoas poderem - ou não - satisfazer as suas necessidades pelos seus próprios meios. Dispor de um subsídio de assistência social ou ter uma remuneração devida pelo seu trabalho ou por reforma, mesmo que de valores equivalentes, não é o mesmo. A dependência em relação à assistência social configura, só por si, uma situação de pobreza.

Para dar conta de mais esta perplexidade, é particularmente relevante o contributo dado por Amartya Sen que recorre ao conceito de capacitação (entitlement) para definir a pobreza. Segundo este prestigiado economista indiano, prémio Nobel da economia, não são as características dos bens em si mesmos e a respectiva privação que definem a situação de pobreza, mas sim a ausência de capacidades próprias para levar uma vida segundo os padrões correntes na sociedade. (Sen,1983)

Este conceito tem o mérito de, além de acomodar melhor a complexidade do fenómeno da pobreza nas suas várias dimensões, veicular também a ideia de que a pobreza não se combate apenas com medidas compensatórias da escassez de rendimento monetário, ou seja por meio do recurso à subsidiação, mas sim através do reforço da dotação de recursos ao dispor das pessoas e famílias em situação de pobreza, afim de que alcancem capacidades para, por si próprias, assegurarem uma vida digna. Daí a ênfase posta no combate à pobreza através das políticas educacionais e de qualificação profissional, promoção da saúde, inserção no sistema produtivo e no mercado de trabalho, remuneração por serviços prestados à família e à comunidade, etc...

Todos estes conceitos, que, até agora, têm servido de base aos estudos sobre a pobreza, partilham um mesmo ângulo de visão que é o de considerar a pobreza como um infortúnio de alguns dos membros da sociedade a que esta, por razões de solidariedade, deve prestar auxílio, através de políticas públicas generosas e eficientes e de organizações privadas de solidariedade social. Está, porém, em curso um novo conceito de pobreza que poderá alterar profundamente este paradigma.

Com efeito, desde o início do Milénio, tem vindo a impor-se a ideia de que a pobreza involuntária constitui uma violação de direitos humanos fundamentais e como tal deve ser colocada na agenda política, nomeadamente da responsabilidade dos governos nacionais e das instâncias internacionais, a par de outras matérias como a segurança ou a paz. De algum modo, já foi esta a ideia que esteve subjacente ao Pacto dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, assinado em 2001 pela generalidade dos Estados que integram a ONU.

Podemos perguntar-nos: Que valor acrescenta este enfoque ao conhecimento da pobreza e, sobretudo, às estratégias para sua erradicação?

Em primeiro lugar, este conceito traz para primeiro plano o valor da dignidade de toda a pessoa humana, fundamento dos direitos humanos universalmente reconhecidos, e afirma que a pobreza involuntária ofende esta dignidade e põe em causa o valor da vida humana. Em segundo lugar, porque a existência de um amplo consenso universal em torno deste princípio abre caminho a que os governos e as organizações internacionais se comprometam com a definição de estratégias de eliminação da pobreza e encontrem os adequados suportes institucionais para fazer valer estes direitos e sancionar o respectivo incumprimento.

Apesar de reunir um amplo consenso político, não tem sido fácil, porém, implementar esta ideia e encontrar os instrumentos adequados para a transpor para a agenda política e a prática dos governos.

Aproveito a lembrar que, em Portugal, por força de uma petição promovida pela Comissão Nacional Justiça e Paz, apresentada à Assembleia da República em Outubro 2007, aquele Órgão de soberania veio a aprovar uma Resolução (n.º 31/2008) na qual se dispõe o seguinte: declara-se solenemente que a pobreza conduz à violação dos direitos humanos; recomenda-se ao Governo a definição de um limiar de pobreza em função do nível de rendimento nacional e das condições de vida padrão na nossa sociedade; determina-se a avaliação regular das políticas públicas de erradicação da pobreza; afirma-se que o limiar de pobreza estabelecido sirva de referência obrigatória à definição e à avaliação das políticas públicas de erradicação da pobreza.

Como se deduz do teor desta Resolução da Assembleia da República de Julho 2008, há uma intencionalidade por parte deste Órgão de soberania de dar passos neste caminho inovador de introduzir na agenda política da governação do País o conceito de pobreza como violação de direitos humanos.

4 comentários:

Pedro Viana disse...

Concordo plenamente com o conteúdo da comunicação apresentada neste post. Mas iria mais longe. A pobreza é sempre retratada como uma condição relativa a um padrão (mais ou menos objectivo) exterior ao indivíduo em causa: é pobre quem não aufere pelo menos um certo rendimento monetário; é pobre quem "não dispõem de recursos (...) que são comuns (...) na sociedade a que pertencem"; é pobre quem não possui "capacidades próprias para levar uma vida segundo os padrões correntes na sociedade". Entre estes vários padrões, o do rendimento monetário parece-me claramente o mais inadequado, não só porque "não basta dispor de certo rendimento monetário para deixar de ser pobre" como também pode não ser necessário dispor de certo rendimento monetário para não se ser pobre, como é claro se atentarmos à associação de capacitação e pobreza por Sen. Mas, voltando, à aparente necessidade de definir um padrão único, para uma dada sociedade, em comparação com o qual se define pobreza. Na minha opinião, a pobreza é um estado individual, e deve ser aferida em comparação com um padrão individualmente definido: é pobre quem não possui as capacidades que acha que poderia ter. Obviamente, tal tornaria a caracterização da pobreza mais difícil, e claramente influenciada pelas apreciações, subjectivas, das pessoas sob consideração. Mas evitaria erros que podem ter consequências graves, em particular originando a destruição de modos de vida ancestrais (os indígenas brasileiros são pobres?..), que sustentam comunidades "felizes", por via de políticas demasiado agressivas de "erradicação da pobreza", e escondendo situações de real pobreza sob o manto duma aparente "normalidade" de capacidades (aquele que labora num emprego que lhe permite dispôr dum rendimento monetário elevado, mas não lhe dá satisfação e impediu de desenvolver as capacidades a que aspira - ex. saber pintar - não é na realidade pobre?...).

migueltorres disse...

Caro Jorge Bateira

Gostaria de lhe pedir autorização para enviar este seu post para o dlr (desenvolvimento local em rede), rede de discussão sobre o movimento do Dl em Portugal, para quem esta questão da pobreza é um tema central do seu dia-a-dia de trabalho.
Grato
Miguel Torres

Jorge Bateira disse...

Caro Miguel,
O texto (como se refere, incompleto)está disponível na condição de ser feita referência à autora: Profª Doutora Manuela Silva, Catedrática de Economia do ISEG-UTL, reformada.

Jorge Bateira disse...

O título do texto na sua versão completa é "Pobreza, direitos humanos e democratização da economia"
Jorge Bateira