No início era o adjectivo. “Precário” era qualidade do que não é estável, seguro, do que é incerto e sujeito a contingências. Uma característica que parecia querer colar-se-nos à pele. Depois veio o substantivo: "os precários". Logo assim, no plural, incluindo as mulheres precárias e os homens precários, porque com o substantivo veio a identificação de uma instabilidade que afinal é sólida, que não passa, e com a qual cada um se identificou a si mesmo, mas também aos outros. Entre o nascimento do substantivo e a consciência de o ser, deve ter havido um ovo e uma galinha, não sei qual foi qual, que assim funcionam estes processos em que tomamos consciência de nós.
Com a identificação de si mesmo e dos outros deu-se uma salto gigantesco, visível nos rostos de quem se foi encontrando. Precário passou a ser substantivo, mas por vezes mais parece verbo, a dizer eu, tu, ele/ela, nós, vós, eles/elas... Muita gente, demasiada. Gente que entrou na precariedade há vinte anos, ou mais, e nunca mais dela saiu. Gente que ainda agora entrou, mas que quando olha para o futuro mais parece que já sente o peso de pelo menos vinte anos.
O reconhecimento dos precários uns pelos outros não acabou com a precariedade, é certo, mas estilhaçou o isolamento, a sensação de passividade e impotência. E obteve resultados concretos. Melhorou vidas. O eventual regresso do adjectivo "precário" vai passar agora pela acção, em todas as declinações dos verbos que foram feitos para unir, compreender e lutar.
Escrevi sobre “desigualdades sólidas, capitalismo líquido, vidas gasosas” no livro que vai ser apresentado pelo FERVE amanhã, terça-feira, 15 de Setembro: 2 anos a FERVEr: retratos da luta, balanço da precariedade (22h00, FNAC do Norte Shopping, no Porto, mais informações sobre a iniciativa aqui).
Daqui da ladroagem, lá encontram o José Maria Castro Caldas. E muitos outros cientistas sociais, escritores, sindicalistas, activistas de movimentos sociais e jornalistas (Carvalho da Silva, Henrique Borges, Elísio Estanque, Sofia Cruz, Ana Maria Duarte, São José Almeida, Alexandra Figueira, Regina Guimarães, Valter Hugo Mãe, Tiago Gillot, José Soeiro, Luísa Moreira e Luís Silva). A não perder os dez testemunhos de trabalhadores a recibos verdes (Catarina Falcão, Chico, Gémeo Luís, Isabel Lhano, João Alves, Luís Silva, Paulo Anciães Monteiro e Rui Vitorio dos Santos), bem como o debate que acompanha o lançamento.
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3 comentários:
Não sei do que é que se está à espera para criar um partido dos precários...
É um corolário deste artigo que, aliás, achei muito interessante.
E interessante faz lembrar interessado, outro adjectivo substantivado.
A geração que foi tramada
Portugal tem as leis laborais mais rígidas da Europa. Portugal deve ser o único país da Europa onde é (quase) impossível arrendar uma casa. Eis as duas razões que fazem de Portugal um inferno para um jovem.
A irracionalidade (sindicalista) do código laboral e a esclerose (salazarista) da lei das rendas estão a dinamitar o futuro da minha geração. Não por acaso, já existe um novo tipo de emigração: jovens licenciados estão a sair de Portugal. A narrativa dos “direitos adquiridos”, que só protege os mais velhos, tramou a malta que nasceu nos anos 70 e 80.
O código laboral português – mesmo depois da ténue maquilhagem de Vieira da Silva – é o mais rígido da Europa. Todos os países europeus (repito: todos) têm leis laborais mais flexíveis do que as nossas. Todos os países europeus procuraram adaptar os seus regimes laborais à globalização e ao mercado comum europeu. Nada disso aconteceu em Portugal. Portugal é a Antárctica sindicalista da política europeia: ficámos congelados em 1976. Ao longo das últimas décadas, criou-se uma gelada inércia que impossibilita a adaptação do país à quente realidade de 2009. A causa desta inércia é a narrativa dos “direitos adquiridos”. Na prática, essa narrativa representa o quê? Bom, representa a “ilegalização” do despedimento individual. Os funcionários do “quadro” tornaram-se intocáveis. Em consequência, esta rigidez laboral tem dificultado a contratação de gente nova. Para o lugar dos barões dos “direitos adquiridos”, os empresários (ou os directores de organismos públicos) poderiam contratar jovens. Poderiam. Poderiam, se as leis laborais fossem justas. Mas sucede que o código laboral é um factor de injustiça social entre gerações. Na terra dos sagrados “direitos adquiridos”, os mais jovens ficam com as migalhas dos recibos verdes. A condição de “falso recibo verde” é o preço que um jovem da minha geração tem de pagar para cobrir os “direitos adquiridos” dos mais velhos. Quando é que alguém tem coragem para relacionar o facto de Portugal possuir as leis laborais mais rígidas da Europa com o facto de Portugal estar a caminhar para a condição de país mais pobre da Europa?
Para proteger os milhares de privilegiados que pagam rendas pornograficamente baixas, os governos da democracia foram incapazes de descongelar as rendas que Salazar congelou. Este congelamento salazarista destruiu, por completo, o mercado de arrendamento em Portugal. Para a minha geração, isto teve uma consequência dramática: “sair de casa dos pais” tornou-se sinónimo exclusivo de “comprar casa através de empréstimo bancário”. Ao serem incapazes de mexer nas rendas pornográficas das brigadas do reumático, os governos enforcaram a minha geração na Euribor. Obrigado, meus senhores.
Mas este novo paladino da treta liberal vive onde?Sabe este paladino do "espesso",que em Portugal é onde mais se despede COLECTIVAMENTE???E já agora onde é que um cinico deste calibre coloca os VELHOS DESTE PAÍS?Na rua?L. Reis
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