Em primeiro lugar, o ciclo, com mais de vinte anos, de liberalização predatória, feito de abertura irrestrita às forças de mercado, de privatizações sem fim de sectores monopolistas e estratégicos ou de complacência face à apropriação privada de mais-valias fundiárias ou face à desigualdade de rendimentos, aumentou o perigo de captura do poder político por um poder económico privado crescentemente rentista. A mais recente geração de políticas de entrega aos privados de áreas da provisão pública, por exemplo, através de ruinosas parcerias público-privadas, cria um pernicioso caldo político feito de opacas desorçamentações, de tráfico de influências e de subversão da lógica dos serviços públicos. Estradas, aeroportos, matas, prisões, hospitais, rede eléctrica, património histórico, áreas protegidas. A lista de bens públicos em vias de serem capturados pelo sector privado não tem fim. As oportunidades para a corrupção também não.
Em segundo lugar, no país mais desigual da União Europeia, os mais ricos têm cada vez mais recursos e incentivos para contornar as regras e para influenciar o processo político a seu favor. Além disso, a desigualdade tende a corroer a crença de que as instituições fundamentais da sociedade são justas, a sabotar a legitimidade social das regras instituídas e a dificultar a participação de todos na definição dos destinos comuns. Sabemos que uma cidadania activa, mais robusta em sociedades europeias menos desiguais, é um dos antídotos para os comportamentos predatórios.
Em terceiro lugar, é preciso reconhecer que a ética do serviço público, outro ingrediente imprescindível em qualquer sociedade decente, só pode florescer se tivermos funcionários públicos autónomos e motivados. É por estas e por outras que a política de fragilização dos vínculos contratuais na administração pública, a política socrática que "tritura" funcionários, num contexto de hegemonia de um discurso governamental que tem subestimado e desprezado a ética do serviço público e os profissionais e as práticas que a podem sustentar, só irá acentuar a fraqueza e a submissão do Estado perante a insolência do dinheiro.
Pelo contrário, as políticas socialistas de combate às desigualdades, de reafirmação do controlo público directo de sectores estratégicos, de combate à fraude e evasão fiscais, por exemplo, através da total abolição do sigilo bancário, ou de apropriação pública das mais-valias fundiárias obtidas graças a investimentos de toda comunidade desenham linhas mais fortes entre o que pode ser comprado e vendido e o que é de todos e deve estar ao serviço de todos. Traçar linhas é uma tarefa prioritária para um governo de esquerda.
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1 comentário:
As parcerias público-privadas, tidas como o modelo alfa e ómega para gestão de sectores claramente públicos, têm demonstrado que de público …têm o financiamento e o prejuízo. Sensatas continuam a ser conclusões de E. Maskin (um dos laureados Nobel de 2007): As sociedades não devem contar com as forças do mercado para proteger o ambiente ou fornecer um sistema de saúde de qualidade para todos os cidadãos…
O desinvestimento, a opacidade e a discricionariedade, foram os traços dominantes nos serviços públicos em geral, durante esta legislatura PS. Todo um programa, onde o Estado passaria a fazer figura de corpo presente – há gente disposta a tudo e mais a alguma coisa.
Mas é evidente que a vontade de mudança, o “estilo” de governança, têm sempre que vir de cima…É aí que se começam a traçar as linhas e que se conclui da natureza de um governo.
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