sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Tarefa para um governo de esquerda: traçar linhas

João Cravinho, uma figura inconformada com a persistente impotência pública, defendeu recentemente que a corrupção política não pára de crescer no nosso país. Os liberais dizem que isto é o resultado do peso excessivo do Estado. Trata-se de um diagnóstico tão previsível quanto preguiçoso. Se estivesse correcto, outros países europeus, com os países escandinavos à cabeça, seriam os mais corruptos e os menos transparentes. Nada é mais errado. A corrupção não se combate pelo esvaziamento do Estado, mas sim pelo encolhimento das possibilidades que o dinheiro tem de influenciar o processo democrático de definição das regras e da sua aplicação. Um governo de esquerda tem de conseguir traçar linhas mais claras. Isto exige rupturas, ou seja, reformas revolucionárias. Estas têm de partir de um diagnóstico do contributo que as escolhas políticas dominantes têm dado para o atrevimento sem limites do dinheiro concentrado. Destaco três áreas.

Em primeiro lugar, o ciclo, com mais de vinte anos, de liberalização predatória, feito de abertura irrestrita às forças de mercado, de privatizações sem fim de sectores monopolistas e estratégicos ou de complacência face à apropriação privada de mais-valias fundiárias ou face à desigualdade de rendimentos, aumentou o perigo de captura do poder político por um poder económico privado crescentemente rentista. A mais recente geração de políticas de entrega aos privados de áreas da provisão pública, por exemplo, através de ruinosas parcerias público-privadas, cria um pernicioso caldo político feito de opacas desorçamentações, de tráfico de influências e de subversão da lógica dos serviços públicos. Estradas, aeroportos, matas, prisões, hospitais, rede eléctrica, património histórico, áreas protegidas. A lista de bens públicos em vias de serem capturados pelo sector privado não tem fim. As oportunidades para a corrupção também não.

Em segundo lugar, no país mais desigual da União Europeia, os mais ricos têm cada vez mais recursos e incentivos para contornar as regras e para influenciar o processo político a seu favor. Além disso, a desigualdade tende a corroer a crença de que as instituições fundamentais da sociedade são justas, a sabotar a legitimidade social das regras instituídas e a dificultar a participação de todos na definição dos destinos comuns. Sabemos que uma cidadania activa, mais robusta em sociedades europeias menos desiguais, é um dos antídotos para os comportamentos predatórios.

Em terceiro lugar, é preciso reconhecer que a ética do serviço público, outro ingrediente imprescindível em qualquer sociedade decente, só pode florescer se tivermos funcionários públicos autónomos e motivados. É por estas e por outras que a política de fragilização dos vínculos contratuais na administração pública, a política socrática que "tritura" funcionários, num contexto de hegemonia de um discurso governamental que tem subestimado e desprezado a ética do serviço público e os profissionais e as práticas que a podem sustentar, só irá acentuar a fraqueza e a submissão do Estado perante a insolência do dinheiro.

Pelo contrário, as políticas socialistas de combate às desigualdades, de reafirmação do controlo público directo de sectores estratégicos, de combate à fraude e evasão fiscais, por exemplo, através da total abolição do sigilo bancário, ou de apropriação pública das mais-valias fundiárias obtidas graças a investimentos de toda comunidade desenham linhas mais fortes entre o que pode ser comprado e vendido e o que é de todos e deve estar ao serviço de todos. Traçar linhas é uma tarefa prioritária para um governo de esquerda.

Isto foi escrito aqui.

1 comentário:

Dias disse...

As parcerias público-privadas, tidas como o modelo alfa e ómega para gestão de sectores claramente públicos, têm demonstrado que de público …têm o financiamento e o prejuízo. Sensatas continuam a ser conclusões de E. Maskin (um dos laureados Nobel de 2007): As sociedades não devem contar com as forças do mercado para proteger o ambiente ou fornecer um sistema de saúde de qualidade para todos os cidadãos…

O desinvestimento, a opacidade e a discricionariedade, foram os traços dominantes nos serviços públicos em geral, durante esta legislatura PS. Todo um programa, onde o Estado passaria a fazer figura de corpo presente – há gente disposta a tudo e mais a alguma coisa.
Mas é evidente que a vontade de mudança, o “estilo” de governança, têm sempre que vir de cima…É aí que se começam a traçar as linhas e que se conclui da natureza de um governo.