Numa manifestação de trabalhadores no Chile de Allende pontificava uma faixa onde se podia ler: «é um governo de m..., mas é o nosso governo». Talvez um governo socialista não possa, não deva, almejar mais. É o realismo de quem reconhece que as expectativas estão em adaptação permanente e que o campo dos possíveis não é fixo. E ainda bem.
Seja como for, as políticas do keynesianismo ecológico e social no marco do capitalismo são valiosas, entre outras razões, porque atenuam o grande mecanismo que disciplina as classes subalternas – o desemprego e a multiplicação de transacções desesperadas – e porque podem gerar a confiança e a imprevisibilidade que anunciam transformações na forma como se produz. Como argumenta Prabhat Patnaik neste artigo, as medidas de promoção do Estado Social não se opõem, pelo contrário, ao socialismo como processo de intensificação do protagonismo popular . E, entretanto, tornam a vida mais decente para todos.
No actual contexto, a expansão destas políticas depende, é claro, da progressiva remoção do chamado colete de forças dourado criado pela globalização económica. Uma boa dose de proteccionismo comercial e de mecanismos de taxação e de controlo de capitais a várias escalas (sobretudo a escala dos grandes blocos regionais) mudaria a correlação das forças sociais porque reduziria o impacto desestabilizador da concorrência internacional e das ameaças de fuga dos capitais, os dois grandes bloqueios à política socialista. Isto apesar da mobilidade de capitais e da sua capacidade em fazer reféns serem menores do que se julga.
Não há nada de novo aqui, mas há coisas que têm de ser constantemente relembradas porque, talvez devido aos muitos anos de hegemonia neoliberal, há gente à esquerda que delas se esqueceu. Não cesso de me espantar com o uso de termos totalmente vazios, caso da «economia de mercado», cuja função de ofuscação ideológica deveria ser evidente para quem quer alternativas à esquerda. O mercado é, entre outros, um plástico e necessário mecanismo de coordenação, claro, mas muito do que conta passa-se a montante e a jusante dele. Devemos voltar a falar de capitalismos e de socialismos. No plural porque as instituições económicas têm alguma plasticidade e é variado o menu das suas combinações.
Boas intuições morais, valores socialista firmes, teoria social crítica e unidade política é tudo o que a esquerda pode ter no seu caminho de criação das condições para o tal governo da faixa. Não é pouco. Isto permite-nos separar o trigo das reformas socialistas do joio das políticas conformes ao capitalismo tóxico. O resto é correlação de forças, hegemonia e infinita paciência.
Escrevi um capítulo neste livro plural acabado sair e que coordenei com Renato Carmo. Inspirado em Karl Polanyi, toco em alguns destes temas. Depois das eleições, assente o pó, trocaremos umas ideias sobre os assuntos. O debate não pode parar.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
"Uma boa dose de proteccionismo comercial e de mecanismos de taxação e de controlo de capitais a várias escalas (...)"
É difícil de acreditar que continuem a defender regimes económicos autocráticos, i.e., proteccionismo comercial.
Relembro que esse debate - iniciado à mais de 2 séculos quando David Hume e Adam Smith destruíram a tese mercantilista - é hoje bastante consensual entre os economistas profissionais.
Bem sei que este é o momento adequado para defender a imposição de um sistema económico socialista. Também sei que o comércio livre - em geral, tudo o que é externo - permite a construção de analogias fáceis mas redutoras com o condão de unificar o descontentamento geral e de o dirigir para outros objectivos políticos. Permitam-me ser um pouco mais específico com alguns dos argumentos utilizados: "a riqueza do país está a escoar para os mercados financeiros internacionais"; ou "aumentar a despesa equivale apenas a aumentar as importações" ou "se não protegemos os agricultores das importações o que como nos vamos alimentar?" ou ainda mais ridículo "é necessário fechar as fronteiras, nomeadamente transferência de capital, para proteger empresas nascentes".
Mas é interessante que foi com o mesmo tipo de argumentos esdrúxulos, não consensuais, e pouco consistentes do ponto de vista lógico-dedutivo que estiveram na origem de uma das políticas que causou um enorme prejuízo à humanidade por alturas da grande depressão de 1929. Refiro-me, evidentemente, à legislação da Smoot-Hawley que aumentou as taxas aduaneiras de um largo número de bens importados. Nem mesmo uma petição contra a proposta de 1028 economistas demoveu as autoridades de avançar. O resultado foi um colapso do comércio internacional e biliões de dólares perdidos.
É imperativo aprender com a história para não voltar a cometer os mesmos erros. Objectivos políticos ou discussões entre tipo de regime capitalista/socialistas não devem interferir com liberdade de todos os povos do mundo poderem efectuar trocas entre si - e não apenas entre os concidadãos do próprio país. Economistas notáveis com visões políticas tão distintas como Paul Krugman e Jeffrey Sachs de um lado, e Nancy Stokey e Bob Lucas do outro, defendem da mesma maneira a manutenção e existência de um comércio internacional.
É assim difícil de perceber o que vos move contra o comércio internacional. Será que acreditam mesmo que o encerramento das fronteiras teria um efeito positivo no desenvolvimento de um país?
Os senhores fazem cerimónia em querer trazer os velhos opostos; o proteccionismo contra o livre-cambismo; o controlo de capitais contra a livre circulação.
Insisto na mesma tópica. Esta são oposições negativas. São oposições que não iluminam suficietemente o problema económico. Na verdade não passam de significados ideológicos, e uma ciência económica reformada nada teria que ver com eles.
Proteccionismo e livre cambismo; são os dois opostos negativos que anulam o verdadeiro conceito positivo que é aquele de planeamento da divisão técnica e organizacional do trabalho.
Controlo e livre circulação de capitais não é mais do que o negativo da acumulação (na forma monetária e outra). O verdadeiro conceito positivo é aquele do controlo democrático sobre o excedente de produção; o resto são balelas.
Mas os senhores é q sabem.
Hj o que tenho é falta de sono.
Enviar um comentário