Um cliente é alguém que compra o produto ou o serviço que eu vendo no mercado, o patrão é alguém que me paga para trabalhar para ele, ou em vez dele. É verdade que em ambos os casos o que eu estou a vender é trabalho, mas ainda assim há pelo menos uma grande diferença: o cliente não manda em mim e o patrão manda (dentro de certos limites). Nada mais claro. Por muito que o cliente tenha sempre razão ele não é o meu patrão.
Acontece no entanto que o recibo verde é uma instituição extraordinária que consegue transformar um patrão em cliente. Com o recibo verde o meu patrão pode-me pagar todos os meses o meu salário como se estivesse a remunerar serviços que lhe prestei e pode deixar de fazê-lo quando entender, sem qualquer custo. Ao mesmo tempo ele continua a poder dar-me ordens. Segundo ouvi dizer numa entrevista de uma representante dos Precários Inflexíveis, isto é o que acontece em 900 000 casos em Portugal. Uma enorme anomalia: 900 000 mil relações de trabalho dependente transformadas em prestação de serviços por obra e graça de uma instituição chamada recibo verde. É absurdo, não é permitido, mas pode fazer-se. O recibo verde usado a torto e a direito ilegalmente, instituiu-se. É considerado natural.
Para alguns pensadores liberais do século XIX a legitimidade do assalariamento assentava na provisão de segurança de um salário (fixo) pelo capital, em troca de esforço, obediência e lucro (variável) por parte do trabalho. Tornar a relação de assalariamento “flexível”, e o recibo verde (ilegal) representa a forma mais acabada de “flexibilidade”, equivale a libertar uma das partes do contrato (o capital) da obrigação que legitimava a relação de assalariamento: a assunção dos riscos e a provisão de segurança.
Em que se transforma a relação de assalariamento depois de isso acontecer? Num produto da circunstância que decorre de alguns não terem (enquanto outros têm) acesso à terra e aos instrumentos de produção. Num produto da necessidade, da coerção e da força bruta.
8 comentários:
A propósito, lembrei-me também da forma como os grandes grupos de distribuição tratam os fornecedores.
Os "bons negócios" estão sempre do lado com mais poder. Não cessa de me espantar o poder do mito do "livre mercado".
Tudo no sentido de criar artificialmente um mercado laboral (como mecanismo sem qualquer elemento social ou cultural) segundo o modelo clássico. Como sempre o que não é explicado é o custo humano e o resultado final: visões infernais à la Ricardo e Malthus em que o salário tende a equivaler ao nivel minimo de subsistência.
o recibo verde está tão institucionalizado que até parece uma excentricidade colocar em causa a sua legitimidade. e o mercado de trabalho, em época de crise e de aumento de desemprego, tem tendência para aumentar a pressão para que a flexibilidade e o descomprometimento seja a regra. hoje ouvi, na rádio, que Sócrates afirmou querer acabar com os recibos verdes na função pública (caso seja eleito). a questão é, como é que se permitiu chegar a este estado de coisas, em que ser precário é tão natural que os contratos de trabalhos são vistos como um encargo insustentável para uma empresa que se quer competitiva ou como um louvável e algo insano acto de generosidade filantrópica.
Só quem nunca esteve a recibo verde pode defender a sua existência.
É a mais completa aberração ao nivel do mercado de trabalho.
E tudo isto, se não me engano, sempre pela mão dos auto denominados Socialistas, que, aquando do sacristão - o Guterres -
facilitaram e incrementaram ao máximo a sua utilização até na função pública, vejam só.
O Pinóquio, aliás, como não podia deixar de ser, também o fez recentemente no novo código do trabalho.
Enfim, o auto-denominado PS, tem sido, sem dúvida, o melhor amigo os patrões (eles dizem-se empresários, empregadores, etc) e dos que mais têm prejudicado os trabalhadores públicos e privados.
Quando oiço o Pinóquio dizer que pretende combater/acabar com os recibos verdes até me dá vómitos(só de vê-lo, aliás, já fico com vontade de vomitar...)tantas e tão grandes têm sido as malfeitorias desta canalhada, CDS e PSD incluidos.
José C.Caldas:
Tomei a liberdade de transcrever o seu post no meu blog, acrescentando-lhe uma adenda. Espero que me perdoe o abuso.
belissimo texto.
Em 2008 estava à procura de emprego. Fui a uma entrevista numa empresa chamada Reditus. Durante a entrevista disseram-me que ia ser pago a recibos verdes.
Quando saí da entrevista fui-me informar do que eram...e um assomo de raiva atingiu-me. Via-me sem qualquer tipo de direitos nunca sabendo quando poderia ser despedido e outras coisas que tais...
Para além de que era completamente ilegal trabalhar a recibos vedes para a empresa em questão pois: 1) esta seria a principal actividade da qual iria auferir o meu rendimento (o recibo verde náo pode ser usado nestes casos); 2) Iria trabalhar para um superior hierárquico e nas instalações dele ( com recibo verde é suposto sermos o nosso próprio patrão) e iria ter um horário de trabalho definido (o recibo verde também não pressupõe isto).
Quer dizer, eu entusiasmado com a perspectiva de entrar no mercado de trabalho e os meus potenciais superiores a tratarem-me como mercadoria indiferenciada desumanizada. Como um "RECURSO" (resource) humano. Após alguma pesquisa começou tudo a fazer sentido. Luis Paes do Amaral tinha reforçado a sua posição accionista na empresa entusiasmado com o seu "potencial". Soube também que o seu lucro tinha mais que duplicado nesse ano. Pudera...
O Governo viola a sua própria lei. A própria ACT ou IGT tem pessoal a recibos verdes. Um paradoxo completo.
Não há esforço sério para acabar com este estado de coisas. Tudo o que os partidos de centro prometerem: não acreditem. Acreditem antes no seu contrário.
De qualquer modo não há problema com este tipo de política salarial. Podemos sempre endividarmo-nos perante a Banca e passar a vida inteira com a corda no pescoço.
Cumprimentos
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