quarta-feira, 29 de julho de 2009

O monstro que ninguém dispensa...


O artigo de Ricardo Reis no i sobre a evolução da consumo público apresenta-nos dados interessantes, mais conhecidos uns, menos conhecidos outros: o aumento do peso do consumo público é acompanhado por um aumento do peso dos impostos; o consumo público, basicamente destinado a pagar os custos laborais dos serviços públicos, subiu mais durante os governos PSD do que durante os governos do PS nas duas últimas décadas. De resto, o volume do Estado nada nos diz sobre a natureza das políticas públicas. O resto do artigo, marcado pelo uso da expressão «crescimento do monstro», cuja aceitação acrítica deve ser recusada, revela alguns preconceitos ideológicos. Ricardo Reis assume que os «recursos são devorados pelo monstro». É como se o improdutivo Estado parasitasse a esfera produtiva da economia com as suas punções fiscais.

Na realidade, o «monstro» público gera bens e serviços úteis que são parte dos «recursos disponíveis num país». As actividades de produção do sector público não-mercantil, muito intensivas em trabalho, somam-se às do sector mercantil e contribuem para o PIB. Isto é evidente. A produção não-mercantil do «monstro», a provisão pública, gera rendimentos. Neste campo, os impostos, pagos pelo sectores público e privado, não são mais do que um pagamento socializado por um conjunto de actividades com valor (esta ideia é apresentada e desenvolvida num excelente artigo do economista Jean-Marie Harribey). Além disso, é artificial separar transferências redistributivas do consumo público. A provisão pública de bens e serviços pode ser, em si, bastante redistributiva e as transferências requerem recursos humanos e um aparelho administrativo (não falemos dos custos administrativos do sector privado em actividades de substituição como os seguros privados).

Ricardo Reis menciona de passagem a convergência do nosso país com a Europa nesta área. Falta referir um dos factores que a pode explicar: a democratização do país. Esta tende sempre a impulsionar o processo de «crescimento do monstro», o que até pode ser bem virtuoso (veja-se o livro do economista Peter Lindert). Explicações convergentes sublinham a perenidade da popularidade e apoio político à ideia do Estado Social, apesar de todos os ataques de que este tem sido alvo, ou destacam o lastro na despesa pública que resulta do envelhecimento, em curso, da população ou da natureza muito intensiva em trabalho qualificado e com evoluções da produtividade necessariamente lentas, típica das áreas tradicionais de envolvimento do Estado, como é caso da educação.


Finalmente, um comentário à forma algo enviesada como Ricardo Reis insiste em enquadrar teoricamente o debate sobre políticas públicas: esquerda intervencionista e direita não intervencionista. Na realidade, como já aqui defendi, o debate relevante nos países capitalistas desenvolvidos já há muito que não é sobre o peso do Estado, mas sim sobre o que o Estado deve fazer. Isto tem implicações para a compreensão do ainda hegemónico projecto neoliberal. De facto, e para além da ênfase nos processos de privatização, de liberalização financeira e comercial ou de desregulamentação das relações laborais, uma das dimensões que tem sido recentemente sublinhada nos estudos sobre o neoliberalismo, como conjunto de ideias que inspiram as políticas públicas, é a sua aposta numa profunda reconfiguração do Estado e das suas funções.

O objectivo neoliberal, sobretudo nos países mais desenvolvidos, é o de encontrar soluções institucionais e de financiamento que favoreçam a progressiva entrada dos grupos privados nas áreas tradicionais da provisão pública, associadas não só ao chamado Estado Social (saúde, educação ou segurança social), mas também à gestão e controlo de equipamentos e infra-estruturas públicas. Usar o Estado e os recursos financeiros que este controla para abrir novas áreas de negócio, onde os lucros estão relativamente garantidos, é a orientação de fundo. A célebre questão da redução da sua dimensão (em termos, por exemplo, do peso das despesas públicas no PIB), ao contrário de alguma retórica neoliberal, nunca foi realmente central para este projecto de transformação.

É por estas e por outras que devemos falar, na linha de Dean Baker (o livro está disponível na integra aqui), do inevitável «intervencionismo», que pode ser de esquerda ou de direita. Estruturação política das instituições por forma a dirigir recursos para os mais ricos ou para os mais pobres? Estado Social ou Estado Penal? Estruturação política das instituições por forma a favorecer interesses capitalistas ou interesses mais vastos? Para promover lógicas cooperativas ou concorrenciais? Respondam como quiserem, mas reconheçam que há sempre estruturação política das instituições económicas. E que quanto mais mercados, mais regras e mais Estado. É a vida no capitalismo tardio...

8 comentários:

Nuno disse...

Prof. João,
Esse livro do Peter H.Lindert "Growing Public" é uma obra com 2 volumes,não é?Qual dos volumes aconselha?

João Rodrigues disse...

Caro Nuno,

Pode tratar-me por João. Eu não sou prof. Este livro tem de facto tem dois volumes. Eu só li o primeiro. Comece por aí. O segundo pareceu-me um complemento. E o tempo não dá para tudo. Posso estar enganado, claro.

F. Penim Redondo disse...

Mas há uma contradição que não está esclarecida.
Se o PSD é acusado de seguir o neo-liberalismo não se devia esperar que encerrasse departamentos do Estado, reduzindo as despesas, em vez de os engordar.
Pela lógica seguida nos últimos anos, que define absurdamente a esquerda como primado do Estado, teríamos que concluir que o PSD tem sido mais de esquerda do que o PS.

João Rodrigues disse...

Caro Fernando,

Posso aconselhar que leia a posta até ao fim? Talvez o mistério possa ficar esclarecido. Só uma hipótese.

Nuno disse...

Caro JR,
Ainda vou consultar o indice do livro do PL na Net.Entretanto já encomendei o livro da Carlota Perez "technologial revolutions and financial capital" para ler.É pena que o mercado livreiro em Portugal apenas publique livros de gestão,pelos vistos a edição de livros de Economia não são rentáveis.Idiossincresias dos mercados!

F. Penim Redondo disse...

Caro João Rodrigues

Realmente não fiquei esclarecido.

O facto de existir o livro mencionado não faz desaparecer, por milagre, a prática dos nossos militantes e políticos de esquerda que passam a vida a qualificar como de esquerda todas as políticas que ponham o Estado gastar mais dinheiro.
Que interpretam como de direita muitas das tentativa que apenas exigem o uso criterioso e justo dos recursos do Estado.

Como não fui directo no meu primeiro comentário vou ser agora:

acho que o post do João deve ser dirigido em primeiro lugar ao pessoal da esquerda, a que eu também pertenço, e não ao Ricardo Reis.

alexandre disse...

A meu ver, a Direita nao se destingue da Esquerda na dicotomia Estado Grande / Estado Minimo ou Servicos Publicos / Servicos Privados. Como foi sugerido recentemente neste post, ver a economia politica nessa dicotomia e' extremamente redutor e, no meu entender, acefalo.

Vejamos o exemplo do Estado Novo, em que Salazar dizia "Um Estado grande nao precisa de ser violento". Nunca Portugal teve um Estado tao GRANDE. Mas desse Estado alguma Direita Neoliberal sente falta. Porque sera?

Na minha opiniao porque as metas da Esquerda e da Direita sao diferentes em termos ideologicos, onde a Esquerda acredita num Estado Social e a Direita no cada um por si e nao tenho nada a ver com isso, a nao ser quando dou as sobras a instituicoes de caridade ou se for alguem da minha familia.

Na genese da Esquerda pos-revolucao Francesa, o homem livre e' todo e qualquer homem. Na genese da Direita anglo-saxonica, o homem livre e' aquele que possui terra.

Isso nada tem a ver com o tamanho do Estado. Eu considero a discussao do tamanho do Estado como uma manobra de diversao da Direita para nao falar de assuntos essenciais, como por exemplo a reflexao de um modelo de desenvolvimento para Portugal, como ja foi reflectido em tantos paises da Europa de cima. O Estado deve ter o tamanho certo para executar o seu papel. A Esquerda e Direita divergem quanto ao papel do Estado.

Ja que se falou de Cavaco.

João Pedro disse...

Sem duvida que o estado cria riqueza. Mas qual a quantidade de recursos consumidos para a produzir? Será o sector privado, com os mesmos recursos capaz de produzir mais riqueza?
Ex: Será um hospital privado capaz de com o mesmo dinheiro oferecer um serviço de melhor de qualidade? Se sim, uma boa gestão do dinheiro dos contribuintes seria pagar o tratamento dos cidadãos nesse hospital. Ou de outro modo, será um hospital privado capaz de assegurar a mesma qualidade de serviço gastando menos? Se sim então o estado deve pagar o tratamento neste hospital e ainda lhe sobra dinheiro para outras coisas.
Isto pode ser aplicado em diversas áreas e não devemos ter preconceitos ideológicos e optar simplesmente pela alternativa de provisão mais eficiente.
Infelizmente, cá em Portugal, mais estado significa maior desperdício.