domingo, 10 de março de 2024

Há progresso nas mesas


Fui votar ao fim de almoço, da mesa farta da minha mãe para a mesa de voto, uma boa afluência. Lá estavam as cidadãs e os cidadãos nas mesas, cumprindo o seu dever cívico, garantindo a integridade do processo eleitoral. Vim da mesa de voto para a mesa de trabalho. Enquanto aguardo, tento combater a ansiedade, também através da escrita. 

Tenho ao meu lado o Público em papel de ontem, com o artigo de Pacheco Pereira, que tanto me encanitou. Pereira tem o condão da interpelação, para o pior e para o melhor. Admiro-o sobretudo pela monumental biografia de Álvaro Cunhal, um notável contributo, ainda em construção, para a cultura histórico-política nacional. 

Por falar em Cunhal, que dizer do trabalho, tão metódico quanto militante, de Francisco Melo na edição das suas obras escolhidas, que já vão no sétimo volume? Outro grande contributo cultural, este menos visível, infelizmente. 

Menos visível é também o trabalho de um dos nossos maiores, José Barata-Moura. Começou, no quadro de um coletivo, a traduzir O Capital – o primeiro tomo do livro primeiro saiu em 1990 – e acabou sozinho a traduzir o oitavo tomo, livro terceiro, que saiu em 2017. Pelo meio, está um trabalho monumental. 

Barata-Moura é um dos maiores, porque vai de Hegel ao Fungagá da Bicharada. Temos uma dívida imensa para com a sua criatividade militante, a sua cultura integral. A nossa elite do atraso não reconhece os contributos da cultura marxista e é só por isso que não recebeu distinções merecidas, como o Prémio Pessoa. O mesmo se passa com Fernando Rosas, o nosso principal historiador do fascismo. Neste caso, preferiram dar o prémio a Irene Pimentel, menos relevante, mas mais conforme ao consenso. A cultura marxista é, também em Portugal, uma “cultura marrana”, para usar os termos do historiador Enzo Traverso. 

Isto não quer dizer que não haja reconhecimentos justos, através do Prémio Pessoa. Atente-se em Frederico Lourenço da Universidade de Coimbra, por exemplo. Se mais não houvesse e há muito mais, só a tradução da Bíblia, em especial dos quatro Evangelhos, bastava-me. Foi o que li até agora deste trabalho de amor. 

Regresso a Pacheco Pereira. Estes exemplos de investigação, tradução e edição bastariam para dizermos: há progresso cultural em matéria de livros e de leituras. Não percamos a esperança ou a fé e, já agora, a caridade.

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro João Rodrigues, as obras escolhidas de Álvaro Cunhal já vão no sétimo volume: https://editorial-avante.pcp.pt/#!/%C3%81lvaro-Cunhal-%E2%80%93-Obras-Escolhidas-%E2%80%93-Tomo-VII-1976-1977/p/601242358

O volume mais recente tem perto de mil páginas e um muito rico aparelho de notas, mais de novecentas.

Considero este o tomo mais importante de todos, dos já publicados e a publicar, porque inclui, na primeira metade do livro, cuidadosamente revista, a magnum opus de Álvaro Cunhal, A Revolução Portuguesa. O Passado e o Futuro, escrita a mata-cavalos em apenas quinze dias, para servir de relatório ao 8º Congresso do PCP, em novembro de 1976.

A segunda metade do t. VII inclui basicamente artigos, intervenções, discursos e entrevistas do autor até ao fim do que poderíamos chamar a primeira Geringonça, quando, face ao acordo formal PS-PSD, o PCP retira o apoio parlamentar ao governo PS, em finais de julho de 1977 (o I governo constitucional duraria exatamente ano e meio e terminaria a 23 de janeiro de 1978).

Particularmente instrutivo é o sangue-frio da então direção comunista, na abstenção do Orçamento do Estado de 1977, votado nos finais de 1976, assumidamente para não substituir um governo, que já se lançava desabridamente contra as conquistas da Revolução, por outro ainda pior, resultante de entendimento do PS com a direita.

Dirão que isso já é história, mas, como diz o conhecido adágio, aqueles que a esquecem estão condenados a repeti-la.

João Rodrigues disse...

Obrigado pelo contributo. Já corrigido.