segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Querido diário - A espiral da terapia de choque

Jornal Público, 27/12/2011
 

A recessão foi o pano de fundo ideal para a aplicação de uma terapia de choque. Tanto cá como em Espanha.  

Pouco importava que as medidas adoptadas pela direita no poder fossem ainda mais recessivas que a própria recessão, causassem desemprego, pobreza e expulsassem os pobres do centro das cidades. O importante era mudar o paradigma económico, concentrar a propriedade e pressionar uma baixa forçada dos salários médios, como receita anunciada de competitividade. Mas agora, com a "falta de mão-de-obra", já não se lembram que esse foi o programa. E culpam a esquerda pelo desastre do seu próprio programa.

O corte dos apoios sociais tinha igualmente essa componente: forçar os pobres a aceitar baixos salários. Mas tinha igualmente aquilo que agora tanto se condena à extrema-direita: estigmatizar. 

Não era necessariamente os ciganos, embora a direita dita moderada criticasse igualmente a subsidio-dependência dos beneficiários do RSI e quem não fosse trabalhar (não se lembram? Veja-se aqui ou aqui ou aqui... E mais recentemente, Rio também o fez). O que se queria mesmo - a par da privatização protecção social - era estigmatizar toda uma outra visão, a intervenção pública, tudo o que mostrasse que a pobreza não nasce debaixo das pedras, nem é fruto da preguiça ou da imprevidência (como tanto se defende pelo menos desde o século XIX); mas sim que é o resultado de uma absurda concentração da riqueza e da desigual distribuição da riqueza produzida, que deixa de lado cada vez mais filhos do país. Em Portugal, dois milhões de portugueses, algo que não se resolve com sacos de plástico dados pelo Presidente Marcelo, tal como se dava antes de 25 de Abril o bodo aos pobres.

Na verdade, a direita sempre se marimbou na pobreza. Sempre quis foi transformar o seu descontentamento em agradecimento. 

O  problema da terapia de choque é que tem um enorme respaldo internacional e que forçou até a social-democracia socialista a manter esse novo paradigma em nome da estabilidade. O problema é que a terapia de choque gera pobreza e descontentamento e esse pântano alimenta o regresso da mesma direita, agora com novos rostos, a qual quer - claro! - aplicar uma nova terapia de choque, embora sem nunca concretizar como será porque sabe que, se o fizer, perde o voto dos  pobres. E então engana-os com um programa que nunca aplicará (como fez em 2011).

O círculo fecha-se e repete-se, até que a social-democracia socialista acorde. Ou se acorde os pobres. 


3 comentários:

Anónimo disse...

"Na verdade, a direita sempre se marimbou na pobreza. Sempre quis foi transformar o seu descontentamento em agradecimento. "

Lapidar.

Há uma relação entre o acordar da social-democracia socialista e o acordar dos pobres, funciona como uma gestão das expectativas, no fundo é uma forma de aplacar qualquer força que ponha em causa a ordem das coisas, ou que ponha verdadeiramente em causa a concentração da riqueza e do poder.

Anónimo disse...

"forçou até a social-democracia socialista a manter esse novo paradigma em nome da estabilidade"
Coitados do PS e de António Costa: eles queriam reverter mas não os deixaram ...

João Ramos de Almeida disse...

Caro anónimo,

A julgar pelos discursos que os depois governantes socialistas fizeram quando eram oposição, sim, acho que gostariam de ter revertido as medidas laborais aprovados com orgulho pela direita no Governo Passos/Portas.

Mas aquilo que acho também - e não sei se é melhor - é que acabaram por capitular face a pressões externas, nomeadamente das instituições europeias. E - pior - moldaram o seu discurso, como se essa capitulação fosse mesmo o seu pensamento, assumindo-o em debates parlamentares. E dessa forma, bloquearam a sua revisão, pois qualquer mudança colocá-los-ia numa posição incómoda.

Como vê,ninguém está a desculpar ninguém.