domingo, 12 de dezembro de 2021

O negócio do crédito malparado - parte II

O crédito malparado pode colocar em causa a capacidade de liquidez do sistema bancário. Dito de outra forma, se uma parte substancial do que o banco esperava receber dos seus clientes ficar comprometida, a resposta às obrigações de pagamento no curto prazo é dificultada. A partir de 2016, houve um esforço de redução do stock do crédito malparado. No entanto, uma redução abrupta, feita muito através da venda de carteiras a fundos privados, tem associados custos económicos e sociais que não podem ser ignorados.

Antes de desenvolver este ponto, três notas. Em primeiro lugar, o malparado responde ao ciclo económico. Em tempos de crescimento, com maior atividade económica, emprego e investimento os valores são menores. O contrário acontece em tempos de recessão. Ou seja, a melhor forma de tratar o problema do malparado é garantir recuperação económica e emprego. Em segundo lugar, não é um conceito estanque. O que se entende por incumprimento e passível de contaminação dos balanços depende de conceitos contabilísticos e de registo. Por último, faz parte da própria função da banca gerir este problema, através de reestruturações de dívidas, recuperação do colateral associado, etc.

O verdadeiro problema é a passagem de dificuldades de liquidez para dificuldades de solvabilidade. O balanço de um banco deve equilibrar contabilisticamente o total dos seus ativos (fontes de remuneração) e o total dos seus passivos (obrigações de pagamento), onde se inclui o capital próprio (financiamento dos seus acionistas). Quando se esgotam as possibilidades de reaver o que se esperava do crédito em incumprimento há uma assunção de perda, ou um abate, no ativo que terá uma repercussão negativa nos níveis de capital próprio. Ora, se isto acontecer em níveis muito elevados e num curto espaço de tempo, coloca-se em causa a relação entre os capitais próprios e os alheios que permite ao banco cumprir compromissos a médio e longo prazo. Isto é, passa-se de um problema de operacionalidade de pagamentos para uma potencial falência.

Em 2016, com a criação da União Bancária e mais especificamente o Mecanismo Único de Supervisão, centralizaram-se as decisões de regulação e tomou-se como um dos objetivos centrais a limpeza de ativos tóxicos do balanço dos bancos. O combate ao malparado assumiu assim um papel central, com os bancos a serem forçados a reduzi-lo rapidamente. Uma parte substancial passou pela venda de carteiras de crédito malparado a fundos de investimento que assentam o seu negócio na recuperação de dívida privada, o que se populariza muitas vezes como “fundos abutres”.

Novamente é possível detetar um padrão onde este tipo de negócio mais floresceu nos últimos anos. Se com o Covid-19 abrandou ligeiramente, o mercado está pronto para voltar aos níveis pré-pandemia. Entre 2014 e 2021, a Deloitte contabiliza 22,5 mil milhões de euros de carteiras transacionadas, mais de 10% do PIB português.



O problema destas vendas é duplo. Por um lado, do ponto de vista económico, ao serem feitas com taxas de desconto na ordem dos 40%, significa assumir um abate enorme sobre o balanço dos bancos. Daí a necessidade de injeções públicas. Socialmente, fragilizam a posição de alguns devedores. Se a relação de forças já não é proporcional na negociação com um banco, que responde a normas de procedimento regulamentadas, a situação é mais precária quando a cobrança é feita por este tipo de fundos. A DECO tem recolhido vários testemunhos de assédio por parte de empresas especializadas na cobrança de dívida a que estes fundos recorrem.

O fenómeno do crédito malparado em Portugal (e no resto da periferia europeia) é complexo e revela problemas estruturais. No entanto, e de volta a Maria Albuquerque, haver portas giratórias entre governos, fundos abutres e reguladores, mostra que as escolhas políticas feitas não são inevitáveis.

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