terça-feira, 23 de novembro de 2010

Pequenas heresias #1: Inovação social


Os discursos e práticas das políticas sociais e do desenvolvimento são regularmente tomados de assalto por novas modas – conceitos e ideias que alcançam uma tal popularidade, quase até unanimidade, que se impõem normativamente sobre tudo e sobre todos e se tornam critérios fundamentais de avaliação da actualidade e, mais do que isso, competência, de quem os mobiliza. Empoderamento (“empowerment”), microcrédito, capital humano, capital social ou inovação social são apenas alguns dos exemplos mais salientes das últimas três décadas. Ideias poderosas ao ponto de fundarem agendas de investigação, definirem programas e políticas de acção e relegarem para a condição de herético quem os questione criticamente.

E no entanto, devem ser questionados. A questão não é que cada um destes discursos, ou das práticas que lhes estão associadas, não sejam muitas vezes movidos pelas melhores intenções. Nem sequer que esses discursos e práticas não produzam por vezes resultados concretos positivos, no sentido de contribuirem para sociedades mais livres, igualitárias e emancipadas. A questão está, isso sim, no facto de estas ideias, para poderem tornar-se hegemónicas a este ponto, deverem ser de algum modo funcionais para as estruturas de poder existentes – leia-se, para as classes e interesses dominantes. Estas ideias têm de saber apelar a todos. E, para isso, é até funcional que sejam inicialmente movidas por intenções progressistas e que contenham em si elementos de contestação. Porém, têm também de poder ser apropriadas, no discurso e na prática, de formas que efectivamente as neutralizem.

Não é por acaso que cada um dos exemplos indicados em cima tem servido funcionalmente, de uma forma ou de outra, a agenda neoliberal – precisamente, o regime de acumulação das últimas três décadas. A inovação social, última moda no mundo das políticas e práticas de combate à exclusão social, é disso um bom exemplo. As origens do conceito remontam à quase-revolução cultural dos anos ‘60-’70 e à procura de alternativas tanto à sociedade de consumo de massas, alienante e geradora de exclusão, quanto à experiência burocrática e desumanizante do “socialismo real”. A proposta passava por uma reconquista do poder à escala das comunidades e por formas de auto-organização que melhorassem a experiência de vida colectiva através de iniciativas espontâneas e participadas. Mais uma vez não por acaso, foi sobretudo em França que o conceito e o discurso foram originalmente desenvolvidos – na esteira do socialismo utópico do século XIX e da sólida tradição francesa de economia social e solidária (cooperativas, mutualidades, associações). Tratava-se de uma proposta intrisecamente política – tanto no que recusava como no que propunha. A estratégia era dispersa, fragmentária, “multitudinária”, mas o objectivo, para lá da inclusão social, era claramente a mudança social e a alteração das relações de poder.

Que resta hoje desta inovação social? Muito pouco. O centro de gravidade da produção do discurso passou do mundo francófono para o mundo anglo-americano, onde colossos como a Young Foundation debitam publicações sobre o tema e disponibilizam peritos para a realização de conferências. A inovação social tornou-se um elemento central dos discursos e práticas de múltiplas entidades públicas nacionais e supra-nacionais, como a iniciativa comunitária Equal. Em Portugal, organizou-se já o primeiro congresso exclusivamente dedicado a debater o tema. Porém, algures ao longo do caminho, o conteúdo político foi progressivamente esvaziado e neutralizado. Do que se trata agora é de encontrar e afirmar novas soluções técnicas (em sentido amplo) para a exclusão social. Muitas vezes, com uma componente de fascínio pelas novas tecnologias de informação. De preferência, afirmando que as comunidades excluídas, eventualmente apoiadas pelo ‘marketing caritativo’ da responsabilidade social das empresas, devem “ajudar-se a si mesmas” – e não esperar o apoio de um Estado “ineficiente, incapaz e distante”.

No discurso, a negação do carácter político do desenvolvimento e da exclusão social, que se tornam problemas técnicos. Nas políticas e práticas, dar pouco com uma mão – os incentivos à inovação social –, enquanto se retira muito com a outra – aquilo que resta do estado social. Ou como um conceito transgressor e progressista se torna funcional no contexto neoliberal – e como de boas intenções está o inferno cheio.

5 comentários:

Manuel Rocha disse...

Sem dúvida que um dos grandes trunfos do capitalismo liberal tem sido essa enorme capacidade que revela de incorporar e subverter por dentro e em proveito próprio as correntes contrárias. Em lugar de as afrontar, assimila-as. A ideia de sustentabilidade era outro dos exemplos que poderia ter dado. De bandeira do discurso da revolução verde transformou-se num lugar comum do capitalismo neo-verde.

xatoo disse...

"Congratulations again for the agreement with the IMF; now you must keep negotiating firmly with private creditors." -- George W. Bush to Nestor Kirchner, 23 September 2003

João Carlos Graça disse...

Caro Alexandre Abreu, permita-me quanto a isto uma sugestão bibliográfica: French Intellectuals against the Left - The Antitotalitarian Moment of the 1970s, Michael Scott Christofferson, Berghan Books, Oxford-New York, 2004.
Não diz tudo, sublinho, nem sempre está factualmente correcto, nem tão-pouco é tão olimpicamente desapaixonado como sugeria por exemplo uma recensão crítica há uns anos aparecida na New Left Review.
Mas creio que já diz, mesmo assim, o bastante e constitui uma boa base de discussão. É realmente necessário, quanto a isto, se não se quer levar com as coisas só já demasiado "a jusante", voltar lá acima e proceder a uma crítica - não apenas a uma "descontrução", note-se, mas de facto a uma "crítica" e em profundidade - daquilo que foi a, digamos, "impostura anti-totalitária" dos late 60' e early 70'.
Isto, é claro, caso queiramos compreender realmente em que ponto estamos hoje, e as origens da respectiva "miséria"...

Emília Arroz disse...

É um sistema de se lhe tirar o chapéu! Sim senhor, Senhor sistema. Tenho que me render. Sempre atentos e vigilantes à assimilação de qualquer vanguardinha de esquerda. Ainda mal refeitos de inventar uma já ele encontra forma de a reformular e, mais, de a apresentar às massas de uma forma bem mais colorida, atractiva e, obviamente, inócua relativamente aos propósitos iniciais e quantas das vezes servindo interesses contrários. Sim senhor! Senhor Sistema!

Emília Arroz disse...

A propósito de um comenário a este artigo feito por Paulo Pedroso no seu Blog "Banco Corrido" resolvi postar de novo:Penso que deve ter havido uma leitura apressada por parte de Paulo Pedroso do que escreveu Alexandre Abreu. O que, a meu ver, este texto pretende evidenciar é como determinados conceitos políticos são desvirtuados pela prática dos poderes dominantes. Em nenhuma parte do texto se subestima o valor de muitas intervenções sociais, nomeadamente nas suas consequências em benefício da melhoria da vida das pessoas. O que se problematiza é o objectivo último da Inovação Social: novas relações de poder em que as populações em situação de desvantagem envolvidas em intervenções sociais de empowerment e de inovação social logram alcançar mais autonomia, mais poder dentro do todo social. Outra coisa completamente diferente é falarmos em intervenções sociais, que até podem ser muito inovadoras (e muito “giras”), importantes para quem nelas directamente participa mas que não deixam lastro nem são transformadoras das relações de poder. Poderia dar aqui inúmeros exemplos de intervenções que são apontadas como de “Inovação Social” que mais não são do que boas e mediáticas acções que servem para que, no essencial, tudo fique na mesma (excepto o quotidiano de quem nelas participa e enquanto nelas participa). Significativo de conceitos e práticas inovadoras que são apropriadas pelos poderes dominantes e completamente desvirtuados da sua essência, vem na apresentação que o jornal Expresso de 20 de Novembro faz da revista “Sciences Humaines”. Nesta revista, que desenvolve o tema “L’autonomie – nouvelle utopie” conclui-se que o empowerment tem dado muitas voltas e que actualmente as sociedades (e os Estados) usam-no para se descartarem dos indivíduos “quanto mais autosuficiente for o indivíiduo, menores os encargos da sociedade, sobretudo os referentes à sua protecção” (o empowerment vs “amanha-te”). São estas transformações que o Alexandre Abreu discute.