quarta-feira, 5 de maio de 2010

Amanhã os cidadãos do Reino Unido vão votar

Como é sabido, o actual método maioritário conduz ao voto táctico nos círculos onde um eleitor considere que, face aos resultados históricos, não tem qualquer hipótese de fazer eleger o deputado que prefere. Daí o apelo explícito de alguns deputados Trabalhistas para que, nesses círculos eleitorais, os Democratas Liberais votem Trabalhista para impedir a eleição de um Conservador. Assim, uma lei eleitoral anti-democrática, conjugada com um profundo ressentimento do tradicional eleitorado Trabalhista, tornam muito incerta a composição do futuro Parlamento. De qualquer modo, parece garantido um resultado histórico: não haverá uma maioria de deputados de um só partido em Westminster e, em número de votos, os Trabalhistas devem ficar em terceiro lugar. Impensável!

Note-se que em vários assuntos, e particularmente no que toca à relação do Estado com o poder da finança – da City –, os Democratas Liberais ultrapassam pela esquerda os Trabalhistas e prometem fazê-la contribuir significativamente para a redução do défice que em boa parte resultou do salvamento do sistema financeiro. Como foi isto possível?

Importa recordar que Gordon Brown, enquanto Ministro das Finanças de Tony Blair, fez em 2006 um discurso em que, a dado passo, dizia o seguinte:

“A mensagem que o sucesso de Londres manda a toda a economia britânica é a de que se pode ter sucesso se, tal como em Londres, se pensar globalmente … se promovermos uma regulação leve, um ambiente fiscal competitivo e flexível. …
[Na sequência do escândalo da Worldcom]
Estou certo de que procedemos bem ao não adoptar o caminho que nos EUA conduziu à lei Sarbannes-Oxley [que separava banca comercial de banca de especulação e décadas depois foi revogada por Bill Clinton]”.

Peter Mandelson, membro do trio que criou o Novo Trabalhismo, também conhecido por Príncipe das Trevas, ficou famoso por ter afirmado publicamente que
“não se sentia incomodado por haver gente que se estava a tornar escandalosamente rica.”

Foi assim que o Novo Trabalhismo deu continuidade ao modelo introduzido por Margaret Thatcher, a que juntou alguns paliativos de âmbito social que não mudaram o que conta: no Reino Unido a desigualdade social é chocante.

No que toca às parcerias público-privado, foi até onde Thatcher não ousou ir. Hoje alguns centros de saúde privatizados já pertencem a investidores dos EUA. As prisões também têm gestão privada. Em Manchester, numa mesma linha de autocarros concorrem vários operadores cujos veículos sistematicamente saem da sua faixa de circulação para se ultrapassarem na disputa pelos passageiros. Os utentes não têm um passe aceite pelas várias empresas. Há meses, o operador de uma linha de caminho-de-ferro do sudeste de Inglaterra acabou por romper o contrato e o Estado recuperou (a contragosto) o serviço. Os doentes têm medo de ser internados e morrerem de uma infecção com bactéria hospitalar devido à generalizada má limpeza, subcontratada claro. Há ambulâncias estacionadas à porta do hospital, com o respectivo doente na maca, à espera da ordem de entrada. Isto para evitar que o serviço de urgência ultrapasse o tempo médio de atendimento previsto nos indicadores da gestão ‘empresarial’. A cereja no topo do bolo foi a descarada manipulação dos factos, e a indecorosa pressão moral sobre os serviços de informações e tudo o que fosse opinião independente, para justificar a entrada na guerra do Iraque em aliança com Bush.

Foi assim que, apanhados por uma crise que ajudaram a construir, os Trabalhistas desbarataram a sua tradicional base eleitoral: todos os cidadãos que querem viver numa sociedade mais justa, sem consumismo, com serviços públicos fora dos negócios, os assalariados modestos, os cidadãos pobres.
E já não atraem o eleitorado das classes abastadas, agora seduzidas por um líder Conservador mediático, jovem bem falante, que promete curar o défice com uma brutal sangria na despesa. Trazendo de volta a espiral que leva à depressão, a mais défice, a mais dívida pública ...
Infelizmente nenhum dos partidos percebe, ou tem a coragem política de dizer ao eleitorado, que a solução só pode vir de uma política de crescimento sustentada pela procura interna, em simultâneo com a Alemanha e a França, e da submissão da finança ao interesse público. O Reino Unido e toda a Eurozona caminham inexoravelmente para uma situação financeira, social e política insustentável.

Em Portugal, o destino do PS não vai ser muito diferente.
A sua decadência, diria mesmo o seu apodrecimento, tornou-se um processo irreversível. E, à esquerda, é gritante a falta de uma alternativa credível.

4 comentários:

J. Martins disse...

Não foi por acaso que António Guterres prometeu, no seu tempo, adoptar a Terceira Via como linha ideológica do Partido Socialista português...

a.Küttner de Magalhães disse...

O que aqui lemos sobre como hoje , já, funciona o Reino Unido, faz-nos pensar e muito se nos devemos estar sempre a lastimar do serviço de saúde, dos transportes que temos, etc, etc....Melhor é impossivel....pior....está na nossa mão!

Anónimo disse...

Caro Jorge Bateira

Tenho algumas dúvidas em relação a algumas coisas mencionadas no post. Os Lib-Dem ultrapassam pela esquerda os Trabalhistas na relação com a City? São os Trabalhistas que propõe mecanismos mais fortes de regulação e até uma taxa Tobin para as transacções financeiras. Tanto quanto sei, os Liberais Democratas apenas propõe separar a banca de investimento dos bancos normais. Os erros do passado interessam, mas interessa mais o que é proposto e o que está escrito nos manifestos. Nas estratégias de redução do défice, os Trabalhistas propõe um aumento de 1% no National Insurance e os Liberais Democratas uma sangria nos serviços públicos. Enfim, parece que a moda agora é ser Liberal Democrata e até o Guardian já manifestou o seu apoio aos amarelos. Em relação à desigualdade social ser chocante no Reino Unido, acho que não o é e muito menos para um português. No que toca ao serviço nacional de Saúde consta que é o melhor do mundo quando avaliado pelos utentes e a maioria dos serviços prestados é completamente livre de custos. Creio que o Governo subcontrata alguns serviços, mas o post leva a crer que a gestão de alguns hospitais públicos é feita por privados, o que eu duvido. Não estará a confundir com hospitais ou clínicas puramente privadas?
Cumprimentos

João Aleluia disse...

"Estou certo de que procedemos bem ao não adoptar o caminho que nos EUA conduziu à lei Sarbannes-Oxley [que separava banca comercial de banca de especulação e décadas depois foi revogada por Bill Clinton]”."

Só para dizer que a lei que menciona entre [] não se trata do Sarbannes-Oxley Act, mas sim do Glass-Steagel Act.