quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Os números podem enganar

«Seria o Velho do Restelo um economista? Não é provável: se ele exercesse a ciência lúgubre, decerto fundamentaria o seu ponto de vista numa análise custo-benefício. Ou seja, teria imputado um valor monetário tanto aos ganhos como às despesas decorrentes da descoberta do caminho marítimo para a Índia para tentar apurar se o saldo global seria positivo». Não percam o resto do magnifico artigo que João Pinto e Castro publicou ontem no Jornal de Negócios. Lembrando Keynes, parece-me que João Pinto e Castro está vagamente certo. Os economistas convencionais, que usam e abusam da análise custo-benefício (ACB) para tentar ganhar autoridade no debate público, estão rigorosamente errados. O que é que preferem?

Em co-autoria com a economista Ana Costa do ISCTE, escrevi um artigo sobre este assunto que sairá em breve na Revista Crítica de Ciências Sociais. Uma versão provisória, em formato documento de trabalho, pode ser encontrada aqui. Escrutinamos alguns dos pressupostos da ACB e argumentamos que, pelas suas múltiplas limitações, este instrumento deve ter um papel secundário na avaliação das políticas públicas. Este livro foi uma das nossas referências e aconselho-o a quem quer conhecer todos os efeitos perversos da lógica de «que o não se conta, não conta».

É então tempo de abandonar a ficção, alimentada por muitos economistas, de que existe um método neutro e despolitizado (a ACB) que poderia prescindir da deliberação e da discussão políticas, por exemplo, sobre o modelo de desenvolvimento que queremos adoptar ou sobre as apostas públicas em relação à melhor forma de o alcançar. Assim, o conflito social, a persuasão ou o estabelecimento de consensos precários, fundados em razões partilhadas, continuarão a ser elementos insuperáveis da nossa paisagem. Por muito que custe a tantos que querem fazer passar as suas posições políticas e ideológicas à boleia de «argumentos técnicos».

A esquerda face às suas responsabilidades

A crónica de Rui Tavares, na última página do Público de ontem, foi acutilante. Confronta as mulheres e os homens de esquerda deste país com a sua responsabilidade histórica que, neste momento de grave crise é, em última análise, uma responsabilidade moral.

A crónica termina assim: "Se o desejo da esquerda é - como costumam alegar os seus líderes - transformar a sociedade portuguesa, pois o momento aí está. Basta ver o incómodo com que qualquer diálogo à esquerda, mesmo quando diminuto e contingente, é encarado pelo statu quo da política nacional. É que o combate às desigualdades não é apenas uma boa resposta às razões do nosso atraso nem aos sintomas da nossa injustiça. É também uma estratégia transformadora que, se for levada a sério, não deixará incólume o nosso panorama político."

Os debates do próximo domingo, em Lisboa, só podem ser o início de uma caminhada que restitua esperança a este país.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Para além da crise: regras para uma economia decente

Uma das ideias mais interessantes do último livro de James K. GalbraithO Estado Predador – diz respeito às virtudes económicas da existência de regras apertadas capazes de diminuir a discricionariedade do poder empresarial privado: das normas ambientais exigentes às normas salariais igualitárias negociadas por contrapoderes sindicais fortes. Galbraith assinala que certas fracções do mundo dos negócios podem ter vantagens em apoiar muitas destas regras e que este é um dos segredos para a sua adopção em muitos países capitalistas: «Uma estrutura de regulação funcional é um instrumento competitivo para as fracções mais progressivas do mundo dos negócios que desejam – para a sua própria vantagem – forçar todos os outros concorrentes a alinhar por um conjunto comum de regras».

Na questão dos salários, Galbraith cita o exemplo dos países escandinavos e a importância da existência de uma estrutura relativamente centralizada de negociação colectiva que favorece a emergência de um padrão salarial mais igualitário: «O efeito disto na disciplina dos negócios é magnífico. Para ser bem sucedida, a empresa tem de encontrar formas de competir que não envolvam a degradação dos standards salariais da sua força de trabalho. Manter a produtividade elevada e investir na busca permanente de inovações tecnológicas é a melhor forma de o conseguir. Isto significa que as indústrias avançadas prosperam na Escandinávia, enquanto que as atrasadas morrem (…) Salários altos, protegidos por sindicatos fortes, garantem que a empresa não tem alternativa a não ser manter-se competitiva».

Galbraith defende que muitos economistas cometem um erro crasso quando declaram que os salários variam mecanicamente de acordo com a produtividade. A produtividade não é determinada fora do processo produtivo por inovações tecnológicas exógenas ou por outras circunstâncias que a empresa não controla: «No mundo tal como ele é, as estruturas salariais são, em larga medida, fixadas pela sociedade; as empresas ajustam-se. A tecnologia e os métodos de negócio são inventados e adaptados dentro da empresa para se conformarem às regras que a sociedade impõe à empresa. E estruturas igualitárias são mais exigentes e, portanto, até um certo ponto, mais produtivas». Em Portugal, regras pouco exigentes favorecem os sectores empresarias mais retrógrados e predadores. E ainda há economistas que querem subsidiar as empresas que pagam o salário mínimo aos seus trabalhadores. De qualquer forma, e como mostra o estudo do Ricardo Mamede, os recentes aumentos do salário mínimo têm um impacto «moderado» na estrutura de custos das empresas.

A mensagem de Galbraith deveria ser escutada pelos decisores políticos portugueses: «os standards salariais exigentes que empurram a indústria para as melhores práticas são apenas uma versão do que pode ser feito nas áreas ambientais, da saúde e da segurança do trabalhador ou do consumidor. Impor standards e assegurar que estes são respeitados é uma resposta política à emergência do Estado Predador. Este último reduz-se a uma coligação das forças empresariais reaccionárias que tentam manter a competitividade e a rendibilidade sem melhorias tecnológicas, sem controlos ambientais , sem respeito pelos direitos laborais ou pela segurança dos produtos que fabricam».

Debate mensal do Le Monde diplomatique


A crise do imobiliário numa «sociedade de proprietários».

O novo problema da habitação.

João Pedro Nunes (sociólogo, CIES-ISCTE, especialista em sociologia urbana)

José Carlos Guinote (engenheiro civil e especialista em planeamento regional e urbano)

Vítor Neves (economista, Faculdade de Economia - Universidade de Coimbra, especialista em economia da habitação)

O debate terá lugar na zona do bar do Instituto Franco-Português, no dia 11 de Dezembro, quinta-feira, às 21h30. Clique aqui para ver o mapa com a localização do Instituto Franco-Português (Av. Luís Bivar, n.º 91, em Lisboa - junto ao Saldanha).

Sobre o tema tratado no dossiê «A crise do imobiliário», publicado no número de Dezembro do jornal, podem ler os seguintes artigos:



terça-feira, 9 de dezembro de 2008

O debate entre economistas não é fácil


Não se pense porem que isso resulta do facto dos economistas falarem linguagens diferentes, se orientarem com teorias diversas, subscreverem paradigmas distintos. Tudo isso existe em Economia – linguagens, teorias e paradigmas divergentes – e não podia ser de outra maneira.

O problema, o verdadeiro problema é que parte dos economistas se arroga o direito de legiferar acerca do que é e do que não é Economia.

Isto a propósito de um extraordinário “Economia política não é Economia, é outra coisa” que de uma só tirada deita pela borda fora séculos do nosso património comum.

A Economia Política não será a Economia do autor do tiro, mas devem os economistas que se reclamam da Economia Política ser punidos por isso, despedidos dos departamentos de economia e dos centros de investigação, não por serem maus, mas por ‘não serem economistas’; ver os seus artigos e projectos de investigação rejeitados, não por falta de qualidade, mas “por não serem Economia”? Tudo isto acontece frequentemente, e não pode continuar a acontecer.

Convenhamos, a Economia que se arroga saber o que é e o que não é Economia corre o risco de passar por ser um bocadinho totalitária.

Recessão e Estado Estratega

Hoje soube-se que o PIB recuou 0,1% no terceiro trimestre face ao trimestre anterior. O Banco de Portugal assinala que o nosso país não deverá escapar à chamada recessão técnica ainda em 2008 – dois trimestres consecutivos de quebra da actividade económica. É assim desde o final da década de noventa: períodos de crescimento medíocre, estagnação e recessão. A crise internacional e a obsessão do governo, bem denunciada por Medeiros Ferreira, só vieram piorar as coisas.

João Ferreira do Amaral (JFA) foi um dos poucos economistas que se atreveu a criticar o romance de mercado que tem inspirado a política económica desde há muito tempo: da chamada convergência nominal, que minou o sector dos bens transaccionáveis, até à estrutura de constrangimentos criada pelo euro que nos fez perder instrumentos de política sem contraponto em novos mecanismos de política pública dignos desse nome à escala da União Europeia. O facto do keynesianismo de esquerda não influenciar as orientações do Partido Socialista na área económica diz tudo sobre o pântano intelectual onde o PS se encontra. Parece que a crise está a abrir os olhos a muito gente. Recomendo então a leitura dos artigos que JFA tem escrito nos jornais desde meados da década de noventa. Valeria a pena recolher e editar em livro.

Chamo a atenção para a entrevista que Rui Peres Jorge do Jornal de Negócios e do economia.info fez a JFA e que saiu na semana passada no Negócios. O pretexto é o parecer do Conselho Económico e Social, de que JFA foi relator, sobre o orçamento de 2009. É um parecer crítico a um documento que, tal como a ortodoxia que o forjou, terá de ser deitado para o lixo muito em breve. Na entrevista, JFA acusa o governo de seguidismo: «Acho que o governo segue muito as directivas comunitárias». Assinala a total impreparação das instituições comunitárias – é feitio, não é defeito, como se assinala no livro que encabeça esta posta – e define os contornos de um orçamento à altura da situação: «O OE deveria ter três objectivos fundamentais. Primeiro suportar a procura interna [investimento e consumo], com mais investimento público e eventual alteração de impostos – embora ache que a despesa pública terá um efeito mais rápido do que a descida de impostos. Em segundo lugar, deveria prever um apoio social muito mais forte. Em terceiro, deveria alargar o apoio ao crédito às empresas e discriminar positivamente as produções de bens transaccionáveis, quer em termos financeiros, quer em termos fiscais».

No fundo, JFA defende um orçamento de um «Estado Estratega». Um Estado capaz de proteger e de nutrir os sectores económicos que interessam ao país num contexto de crise, capaz de reduzir as desigualdades socioeconómicas e de imaginar uma trajectória diferente daquela em que o esgotado romance de mercado nos parece ter trancado. A formulação de JFA que encerra a entrevista é muito pertinente: «É preferível ser o orçamento a gerir a crise do que a crise a gerir o orçamento».

Economia ao serviço dos cidadãos

Como já vai sendo hábito, o número de Dezembro do Le Monde diplomatique – edição portuguesa é bastante forte nas questões de economia politica e de política económica. Destaque ao dossiê «Como responder à crise? Propostas para uma economia ao serviço dos cidadãos». Artigos de Jorge Bateira – Política de inovação: a crise como oportunidade – José Castro Caldas – A impossibilidade de uma economia amoral – e de Octávio Teixeira – Para uma resposta à crise. Nuno Teles escreve sobre a «A crise e o processo de financeirização em Portugal». Um número cheio de Ladrões de Bicicletas. Não percam ainda o editorial de Serge Halimi: «Dois meses após a bancarrota de Wall Street, é inútil procurarmos neste texto do G20, mescla de banalidades e de chavões (mas também de reiteração do dogma), uma qualquer crítica às políticas baseadas nas desigualdades – e às instituições financeiras – que, por exemplo, levaram dezenas de milhões de pessoas a endividar-se para compensar o esboroamento contínuo dos seus rendimentos».

60 anos da declaração universal dos direitos humanos

A 10 de Dezembro de 1948 (há 60 anos) a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Estamos portanto a comemorar.

Lida hoje esta Declaração suscita uma reacção paradoxal. Por um lado, vemos nela um conjunto de princípios consensuais de que ‘ninguém’, pelo menos no ‘Ocidente’ discorda, ou diz discordar. Por outro lado, encontramos a definição de um horizonte de esperança de que manifestamente não nos estamos a aproximar. O horizonte continua a não parecer inalcançável e no entanto, apesar do consenso aparente, estamos a divergir dele. Aqui está o paradoxo.

Mas o consenso é mesmo só aparente; a convergência que permitiu a aprovação quase unânime da Declaração Universal dos Direitos Humanos deixou de existir. De facto, a Declaração Universal existe e comemora-se hoje contra visões adversárias que de há 30 anos para cá se constituíram como hegemónicas e capturaram (quase) todos os partidos e muitos domínios do saber, com destaque para a Economia. Que visões são essas? Procuremo-las, se as quisermos encontrar no estado puro, em think-tanks neoliberais como o Cato Institute.

É precisamente no Cato Journal (vol. 28, n.1) que encontrei um artigo (Human Rights, Limited Goverment , and Capitalism) de Erich Weede, um professor de sociologia na Universidade de Bonn, que resumindo impecavelmente a doutrina, nos pode guiar no argumentário neoliberal contra os direitos humanos.

A tese do autor é simples: “uma lista curta de direitos humanos a proteger, meramente ‘negativa’, susceptível de ser implementada, é preferível a uma longa lista ‘negativa’ e ‘positiva’ de direitos”. A Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Carta da União Europeia de Direitos Fundamentais (que Blair não quis adoptar), são, como esclarece o autor, listas de direitos “negativos” e “positivos”. Listas que, portanto, não são as suas preferidas.

Em sessenta anos, a redução do espaço entre a proclamação e a efectivação dos direitos humanos ficou muito aquém das expectativas. Isso aconteceu não só por ser difícil reduzi-lo, mas também porque, do ponto de vista da concepção de direitos que entretanto se tornou hegemónica, a própria proclamação, e sobretudo todas as tentativas de efectivação, se tornaram indesejáveis para os circulos do poder.

Celebremos pois o que, sem ter sido realizado, está em risco: um projecto de sociedade em que existem critérios mínimos de decência.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Valentes asneiras

Vasco Pulido Valente (VPV) não percebe, nem quer perceber, o artigo que cinco economistas críticos escreveram no Público. Só alguém que desconheça totalmente a história das ideias económicas é que pode escrever coisas destas: «toda a economia é profundamente insensível e vive de abstracções sem prova empírica e deduções lógico-matemáticas» (Público 5/12/2008). Ficamos a saber que VPV ignora, por exemplo, a economia política institucionalista ou a economia pós-keynesiana. VPV desconhece que estas tradições, como os autores do artigo que «critica» assinalam, levam a cabo um trabalho académico em que o económico é indissociável do político, do moral e do institucional.

Neste blogue não nos temos cansado de divulgar abordagens, fora daquilo que na cabeça de VPV passa por teoria económica, que identificam os mecanismos, estruturas e processos que geraram a crise com que estamos confrontados. Essas mesmas teorias estão em boa posição para prescrever soluções para a crise. Aliás, alguma da política económica conjuntural de combate à crise tem sido inspirada, de forma mais ou menos explicita, por elas.

Estranha-se que VPV, investigador-coordenador de um laboratório associado do Estado na área das ciências sociais, considere que a economia não é «ciência» porque caso o fosse «não haveria agora crise (ou haveria uma crise com um remédio prescrito e infalível)». A prescrição de remédios infalíveis é um objectivo destituído de sentido no mundo dos assuntos humanos. Aliás, a falibilidade das ciências, sociais e naturais, é hoje um dado adquirido. Existem, no entanto, critérios que permitem distinguir a boa da má ciência, a boa da má teoria. Esta distinção é importante porque os remédios, que apesar de tudo são prescritos, procuram apoiar-se em argumentos considerados razoáveis à luz do conhecimento, sempre falível, vigente. É por isso fundamental que se submeta ao escrutínio, científico e público, as correntes teóricas que são mobilizadas para justificar e conceber os remédios para problemas comuns. É isto que propõem os autores do artigo em questão. Teorias desajustadas da realidade não são boas teorias prescritivas.

É surpreendente que um intelectual público e cientista social exiba um desdém tão vincado pela ciência e pela realidade. O mundo social não tem remédio para VPV. Qual é então o papel que o investigador-coordenador VPV concebe para o cientista social?

A dimensão moral da economia especulativa

A edição do Público/Economia da passada sexta-feira (5.12.08) tem um artigo do professor de política económica Robert Skidelsky cuja tradução deixa a desejar em algumas passagens. O próprio título, que poderia ser traduzido por “A dimensão moral da economia especulativa” aparece como “Princípios morais e desagregação.”

Chega mesmo a haver deturpação do sentido original quando diz que “No mundo económico, a moralidade não deveria controlar a tecnologia mas devia adaptá-la às suas exigências.” Na realidade, a tradução deveria ser algo como isto: “No mundo dos economistas, a moral não deve procurar controlar a tecnologia, antes deve adaptar-se às suas exigências.”

Assim, recomendo a leitura do texto original onde se faz uma crítica contundente às teorias da Economia que trabalham com pressupostos errados sobre o comportamento humano e os mercados, e estão na origem dos modelos que suportam os tais “produtos tóxicos”, uma metáfora que oculta a sua verdadeira natureza: “produtos financeiros imorais”.

De facto, o rebentar da bolha especulativa na finança é também o descrédito da corrente dominante na Economia.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Movimento Altermundialista – Segundo Acto?


É sabido que a rede de movimentos sociais, que se constituiu aquando da contestação em Seattle em 1999 e cuja mobilização culminou com os fóruns sociais de Porto Alegre, quase que desapareceu depois de 2001. É difícil sublinhar, de entre toda uma miríade de possíveis razões, quais as mais relevantes no enfranquecimento do movimento. Contudo, uma coisa é certa. O movimento altermundialista deixou todo um património de propostas e práticas na luta por um mundo mais justo e solidário. (...)

Ler a totalidade do artigo aqui.

Cambalhota ou inteligência?

Como já todos notamos vivem-se entre economistas e políticos centristas tempos de mudança de opinião e de atitude. Surpreendemo-nos todos os dias com indignações anti-liberais e aberturas heterodoxas vindas de onde antes só conhecemos acomodação ao pensamento hegemónico, cumplicidade com a marginalização de opiniões divergentes e a supressão de projectos dissonantes. Para não cometer injustiças com outros exemplos fico-me pelas tiradas contra o capitalismo financeiro do nosso primeiro-ministro.

Em alguns casos (embora não no que serviu de exemplo) encontro-me sem saber o que pensar. Incapaz de distinguir entre a cambalhota oportunista e a aprendizagem inteligente. Sem saber como reagir. Dizer: “bem vindos a bordo” ou “deixem-se estar onde se puseram”?

Só me lembro do Leopardo de Visconti e de Lampedusa: mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma…

sábado, 6 de dezembro de 2008

Reformas: começar por escutar (IV)

[Conclusão da série com o mesmo título iniciada aqui e continuada em II e III ]

“O que se pede a um dirigente num mundo em movimento como o nosso ?
Não é apresentar a melhor solução racional para problemas bem definidos, mas ser capaz de, confrontado com uma imensidão de problemas potenciais, identificar atempadamente os que vão afectar o decurso das actividades por que é responsável, e ao mesmo tempo, as oportunidades de desenvolvimento que as respectivas soluções podem trazer. Talvez mesmo ser inovador, na medida em que for capaz de construir problemas que ainda não surgiram. …

Mas o que é que acontece quando o dirigente está num nível demasiado elevado para ver os problemas ? A nossa visão das coisas corresponde a uma tradição hierárquica há muito ultrapassada. Não são apenas os quadros técnicos e dirigentes intermédios, mas também os trabalhadores na base, que podem e devem inovar, isto é, apresentar os problemas correspondentes ao respectivo nível de responsabilidades; o modo como o dirigente compreenderá a realidade depende antes de mais dos problemas que lhe são transmitidos pelos executantes no terreno. Os problemas a resolver, além de serem problemas construídos, também só encontram solução através das interacções entre os diferentes participantes.

E o que é válido para grupos relativamente bem delimitados, caso das empresas industriais, ainda é mais marcante nas situações complexas que cada vez mais dominam a vida económica e social, como é o caso do sistema administrativo e político. Aprender a resolver racionalmente os problemas não constitui, nestas condições, uma boa preparação para o exercício de responsabilidades de direcção e mesmo de enquadramento. Não é inútil mas não chega e, se não for compensado por outras aprendizagens, é mesmo perigoso.”

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

The Dodos



Em tempos de balanço musical, vale a pena recordar um dos melhores grupos de 2008. Concerto é já amanhã no Music Box, Lisboa.

Reformas: começar por escutar (III)

[Continuação da série com o mesmo título]

"As mudanças estruturais indispensáveis apenas são possíveis se, previamente, houver uma mudança de lógica que revalorize a experiência prática. … Continuamos a acreditar instintivamente que existe um interesse geral situado acima dos interesses particulares, ou mesmo separado destes; o interesse geral seria de outra natureza e dever-se-ia impor aos interesses particulares em vez de resultar do seu confronto. …

Nesta lógica, cria-se uma oposição congénita entre a procura do consenso e o primado do interesse geral. O nosso sistema leva-nos a acreditar que o consenso alcançado através de uma deliberação não conduz ao interesse geral. Este é fixado pelos seus guardiões naturais, os altos dirigentes da administração, que a vão elaborar nos seus serviços para depois, embrulhada como política, ser apresentada às instâncias encarregadas da deliberação. … [Este modelo] tornou-se incapaz de enfrentar a complexidade crescente dos problemas, a sua mediatização e, por um lado, a intervenção de todos os grupos profissionais, por outro, a fragmentação dos serviços da administração pública, eles próprios cada vez mais fechados."

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Reformas: começar por escutar (II)

[Continuação da série iniciada aqui]

“A escuta é insubstituível porque só ela permite descobrir a realidade do funcionamento de um grupo de pessoas. Estamos sempre a falar das finalidades, dos objectivos de uma instituição – do que devia ser – mas não damos importância ao que é. E, o mais importante para se compreender o funcionamento das nossas empresas e instituições, não são as necessidades abstractas dos indivíduos mas antes os comportamentos concretos das pessoas enredadas nas condicionantes de um funcionamento complexo, em relação ao qual têm responsabilidades mas que não controlam. …

A escuta não põe em risco o modelo da representação sindical ou mesmo política? A objecção é válida de um ponto de vista teórico. Mas, no actual estado de coisas, ela é simplesmente retórica. … As organizações que designamos “representativas” representam apenas minorias activas que, elas próprias, representam de um modo pouco preciso a realidade vivida pelos seus representados. Elas são eficazes apenas em domínios bem delimitados como os salários e as condições de trabalho, e apenas em certos momentos. … O problema de que padecem as organizações sindicais, tal como os partidos políticos e todas as organizações fechadas e preocupadas em defender as suas prerrogativas e o seu estatuto, é precisamente a não-escuta. … O diálogo social apenas pode ser restabelecido através da escuta, da abertura, e do fim dos monopólios da representação. O problema ultrapassa a questão sindical: é indispensável uma nova reflexão sobre as condições de uma vida democrática activa num mundo diferente. A democracia limitada à representação é insuficiente porque dá demasiada importância ao problema do acesso aos representantes. Temos de passar de uma democracia de acesso a uma democracia de deliberação.”

Manuais para compreender a crise

Aqui vão mais duas sugestões de leituras sobre a crise a somar à lista abaixo publicada:

Theories of Financial Disturbance: An Examination of Critical Theories of Finance from Adam Smith to the Present Day por Jan Toporowski e Financial Crises: Understanding the Postwar US Experience por Martin Wolfson.

Da crise de realismo ao realismo da crise

Cinco economistas académicos, entre os quais José Reis do Ladrões de Bicicletas, escreveram um importante artigo que saiu no Público de ontem. Oferece um retrato realista do estado da ciência económica e do seu ensino: «Esta crise é também um colapso teórico, uma falência de um modo de ver. A má teoria é um elemento central da crise». Vale a pena republicar na integra. Aproveito para recomendar quatro livros recentes que estão dentro do espírito do artigo. São quatro excelentes introduções a temas/correntes que, desgraçadamente, têm sido crescentemente marginalizados no ensino da ciência económica – história das ideias económicas, economia política, instituições económicas e comportamento humano e economia pós-keynesiana. Acho que podem ser úteis para todos os que, economistas ou não, se interessam por questões económicas.

A ciência económica vai nua?

Os tempos de crise tornaram-se tempos de acção inovadora, inesperada, imprevista. Por todo o mundo tem-se observado um movimento por parte dos Governos que tentam estabilizar a situação e revertê-la. Predominam políticas conjunturais, mas, caso singular à escala global, assiste--se à tomada de iniciativas coordenadas para consertar uma arquitectura financeira internacional demasiado permeável a falhanços sistémicos.

Começa, por isso mesmo, a ser altura de reflectir sobre as lições que a própria teoria económica deve retirar desta experiência, a qual, infelizmente, está ainda longe de ter terminado. A teoria económica dominante é profundamente insensível à realidade. Constitui, em geral, uma abstracção desatenta e trata os acontecimentos difíceis como um problema que não é dela. Na melhor das hipóteses, esforça-se por demonstrar, perante a turbulência e a crise, que não se passa nada de anormal e que os problemas se reduzem a erros humanos ou pormenores transitórios, passageiros, sempre devidamente previstos.

É das escolas de Economia e Gestão de todo mundo, sobretudo dos Estados Unidos, que tem saído uma boa parte dos operadores dos mercados financeiros e gestores de topo que lentamente acumularam decisões insustentáveis culminando na actual crise. Esta crise é, também por isso, um colapso teórico, uma falência de um modo de ver. A má teoria é, evidentemente, um elemento central da crise.


A realidade é o verdadeiro teste, por vezes doloroso, das ideias. E, neste momento, é o rigor e a relevância da realidade que deve falar mais alto do que as premissas e os modelos ainda em vigor nos manuais de Economia. A teoria económica convencional pressupõe, mais do que demonstra, que os agentes optimizam e os mercados harmonizam. A ideia de "mão invisível" é uma expressão usada uma só vez por Adam Smith, o filósofo celebrado como o pai da ciência económica, nas muitas páginas de A Riqueza das Nações. No entanto, Smith começa o seu livro por sublinhar a importância crucial da organização e do conhecimento, algo que os manuais modernos preferem ignorar. E importa lembrar que, para além deste, ele escreveu outro grande livro: A Teoria dos Sentimentos Morais. Muito boa gente acha que só o primeiro é ciência, é economia.

Os livros-texto que hoje dominam falam de racionalidade e de equilíbrio, abstracções insensatas que a prova empírica contesta com violência. Teorias deficientes têm, pois, ocupado o lugar das mais prudentes, das mais capazes de perceber que o económico não é uma esfera autonomizável do institucional, do político, do social, do psicológico. No passado era mais fácil encontrar manuais mais pluralistas e sensíveis às estruturas institucionais da realidade, mais baseados em lições retiradas de padrões históricos e não somente em deduções lógico-matemáticas. O ensino dominante não tem municiado os estudantes para conhecerem o mundo real e para o interpretarem, para saberem que comportamentos emergem, que sistemas institucionais se confrontam, que valores estão em crise e quais os que se reforçam.

Não é, portanto, ousado supor que no ensino da Economia e da Gestão tudo ainda continua como dantes, alheio a uma crise talvez descrita como mera mas rara anomalia, numa atitude fechada e defensiva face aos desafios do pensamento crítico. No entanto, não podemos esquecer que os operacionais dos mercados têm sido formados neste contexto intelectual. Ou seja, dificilmente o ensino da Economia e da Gestão não estará implicado nas causas da crise.


Com estes acontecimentos, as teorias que sabem acolher a incerteza, a dinâmica da evolução estrutural e, sobretudo, a noção de que a economia funciona de um modo complexo, da qual fazem parte os mercados mas também numerosas outras instituições, poderão assumir maior protagonismo. Ganha peso a convicção de que os comportamentos económicos, em vez de serem o resultado óbvio de respostas a incentivos, são sempre comportamentos limitados, provisoriamente ajustados às circunstâncias e aos contextos. Quer dizer, são comportamentos humanos.

Há, portanto, necessidade de responsabilidade e realismo crítico no ensino das Ciências Económicas e Empresariais, esses campos em evolução e sempre politicamente carregados. Algumas editoras têm, aliás, procurado reflectir a procura por maior pluralismo no ensino da Economia. Referimo-nos, por exemplo, às abordagens neo/pós-keynesianas, evolucionistas e institucionalistas - um portfólio de perspectivas para lidar com um mundo económico complexo, multidimensional e persistentemente surpreendente. É urgente que a academia as tire da sombra e lhes atribua o devido destaque.


João Ferreira do Amaral é professor do ISEG; Manuel Branco é professor da Universidade de Évora; Sandro Mendonça é professor do ISCTE; Carlos Pimenta é professor da Universidade do Porto e José Reis é professor da Universidade de Coimbra.

Deflação?

Num interessante discurso dado na Federal Reserve, em 2002, um notável economista chamava a atenção para os perigos de um período deflacionário: 1- os juros, não descendo abaixo do zero, aumentam em termos reais, tornando o crédito (e o investimento) mais caros; 2- as dívidas tornam-se maiores - uma situação já bem explicada aqui; 3 - com a descida generalizada dos preços, os consumidores adiam as suas compras na fundada esperança de os preços continuarem a cair, deprimindo a procura.

Este economista defendeu que, numa tal situação de risco, a política monetária não ficaria limitada à descida da taxa de juro até ao zero e às injecções de liquidez. A partir desse momento, o Fed deveria começar a “imprimir” moeda de modo a financiar as injecções de capital no sistema bancário e os défices da política fiscal que, entretanto, o governo seria obrigado a promover. Como assinala o artigo do The Guardian que me chamou a atenção para o discurso, os governos comportar-se-iam como muitos dos regimes autoritários dos anos setenta e oitenta na América Latina.

Além do conteúdo muito interessante do discurso, o que importa sublinhar é o nome do economista: Ben Bernanke, actual presidente do Fed. O discurso está aqui.

Perante os actuais riscos deflacionários, Bernanke parece estar à altura do que antes defendeu. Como a The Economist assinala, o Fed há muito que abandonou as abordagens convencionais. Actualmente, a autoridade monetária norte-americana chega mesmo a substituir-se à banca, através de um programa de compra de hipotecas imobiliárias. O Fed está, assim, a emprestar directamente aos consumidores. Uma situação que o próprio Bernanke achava difícil no discurso de 2002.

É certo que o financiamento dos défices através da impressão de moeda ainda não é uma realidade. Lá chegaremos.

Nada como uma crise económica para aumentar o rendimento disponível


"As famílias portuguesas podem esperar ter um melhor rendimento disponível em 2009". O optimismo foi manifestado hoje pelo primeiro-ministro, José Sócrates, e tem como base as baixas que se esperam nas taxas de juro dos créditos à habitação, nos preços dos combustíveis e na inflação.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Reformas: começar por escutar (I)

Não resisto a divulgar algumas passagens de um livro do sociólogo Michel Crozier, já aqui mencionado, que mantém toda a actualidade apesar de escrito há mais de uma década e estar centrado na sociedade francesa. Em alguns pontos, suprimi a referência à França sem prejuízo do sentido:

“Estas manifestações nada têm a ver com as greves clássicas de tipo reivindicativo. Elas surpreenderam tanto os sindicatos quanto os poderes públicos. … O que exprimem estes manifestantes, directa ou indirectamente, é simplesmente um apelo à escuta. A sua mensagem, nunca entendida, é no entanto clara: “Escutem-nos ! Tentem compreender quanto o nosso trabalho … é importante e extremamente difícil ! Não subestimem os nossos problemas ! Vocês tratam deles sem os compreender, vocês diminuem-nos, vocês consideram-nos executantes que não têm voto na matéria, que somos incapazes de ter uma visão de conjunto das nossas tarefas. Escutem-nos ao menos !”

[Este é o primeiro de uma série sob o mesmo título]

As hipóteses do keynesianismo ecológico

Eric Schmidt, líder da Google e actual conselheiro económico de Barack Obama, publicou recentemente um artigo onde defende, na linha do programa eleitoral do futuro Presidente norte-americano, um plano público de investimento que aumente a eficiência energética e desenvolva as tecnologias ambientais e as energias renováveis, favorecendo a criação de milhões de "postos de trabalho verdes" ("Financial Times", 2/11/2008). Noutro sentido, sabe-se que só a ExxonMobil canalizou, entre 2000 e 2003, cerca de oito milhões de dólares para financiar as actividades de "think-tanks" neoliberais*. Ignorando toda a evidência científica disponível, estes dedicam-se a desinformar os cidadãos, difundido a ideia de que não existe qualquer fenómeno de aquecimento climático causado pela acção humana. O resto da minha contribuição mensal para o Jornal de Negócios pode ser lido aqui.

A tradição associada a um economista, cuja expressão “no longo estamos todos mortos” é erradamente colada à suposta irresponsabilidade da despesa pública, fornece-nos afinal uma grelha útil para pensarmos e agirmos em nome dos melhores interesses das gerações futuras. Sobre as virtudes do aumento da despesa e do investimento públicos em tempos de crise, ver também Dean Baker e Paul Krugman.

CONFERÊNCIA PARLAMENTAR: A REFORMA DO SISTEMA ELEITORAL

Caros leitores, atenção, é já amanhã e estão todos convidados: a entrada é livre.
(Nota: o livro tem fundo azul e não castanho, o que se vê, erradamente, é fruto de uma qualquer conversão da imagem que me escapa; na mesma linha, a urna de voto, no centro da imagem, também não é verde: é vermelha; o resto está tudo certo e o livro está a chegar às bancas e, além disso, poderá ser adquirido amanhã na Assembleia da República)

Assembleia da República (Sala do Senado)
4 de Dezembro de 2008

PROGRAMA
09 h 30 Abertura
Alberto Martins
Presidente do Grupo Parlamentar do Partido Socialista
Apresentação do Estudo “Para uma melhoria da representação política” pelos Autores:

André Freire, Professor do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE)

Manuel Meirinho, Professor do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP)
Diogo Moreira, Investigador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL)

Intervenções:

Manuel Braga da Cruz
Reitor da Universidade Católica Portuguesa (UCP)

Marina Costa Lobo
Investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL) e Professora convidada do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE)

Jorge Reis Novais
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FC-UL)

11 h 30 Pausa para Café
Vitalino Canas
Presidente da Comissão Parlamentar de Assuntos Europeus

António Araújo
Jurista

Vital Moreira
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FD-UC)

Comentário final, às questões levantadas, pelos Autores do Estudo

13 h 00 Encerramento

Homo academicus ou homo economicus?

O que é que acontece quando aplicamos o modelo do homo economicus aos próprios economistas académicos que o tendem a divulgar e aos estudos por encomenda para grupos económicos privados que muitos preferem fazer? A conclusão só pode ser uma: diz-me quem te paga, dir-te-ei as conclusões que tiras. Tudo se resume a uma questão de «incentivos». Lembrando Hannah Arendt, o problema deste modelo não está tanto no facto de ser verdadeiro, mas sim no facto de poder tornar-se verdadeiro.

E ainda, a tragédia de Maastricht em plena crise europeia

Perante os riscos de deflação que conduziriam a uma crise económica prolongada, Kenneth Rogoff, Professor de Economia na Universidade de Harvard (e insuspeito das heresias que aqui gostamos de promover), defendia ontem no Guardian que os Bancos Centrais deveriam estar a imprimir notas para comprar obrigações emitidas pelos Estados, como forma de financiar as medidas necessárias para prevenir os piores cenários de depressão económica. O mesmo argumentava ontem no Financial Times Nouriel Roubini, Professor da Universidade de Nova York (e também ele um recentemente convertido a medidas menos ortodoxas). No contexto actual, o crescimento da inflação que tal tenderia a provocar é o menor dos males com que teríamos de viver.

Ora, adivinhem o que é que o Tratado da União Europeia diz sobre isto? Eu transcrevo o nº 1 do Artigo 101º, para não terem o trabalho de procurar: «É proibida a concessão de créditos sob a forma de descobertos ou sob qualquer outra forma pelo BCE ou pelos bancos centrais nacionais dos Estados-Membros, adiante designados por «bancos centrais nacionais», em benefício de instituições ou organismos da Comunidade, governos centrais, autoridades regionais, locais, ou outras autoridades públicas, outros organismos do sector público ou empresas públicas dos Estados-Membros, bem como a compra directa de títulos de dívida a essas entidades, pelo BCE ou pelos bancos centrais nacionais.»

Não gosto de me repetir, mas é irresistível terminar esta posta como terminei a anterior: quem nesta fase ainda não percebeu a embrulhada em que a UE se meteu ao adoptar a arquitectura de gestão macroeconómica saída de Maastricht já não pode ser apelidado de neoliberal; crédulo irredutível, é o adjectivo mais apropriado.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

A tragédia do ‘free-riding’ em plena crise europeia

O problema do ‘free-riding’ é uma noção básica da ciência económica. Num exemplo clássico, embora todos os contribuintes beneficiem dos bens públicos providenciados pelo Estado (educação, ciência, saúde, infra-estruturas várias, segurança, etc.), há sempre quem procure fugir aos impostos, contando que outros paguem por eles os bens de que todos usufruem. Se todos procurassem (e conseguissem) fugir aos impostos, o resultado seria óbvio: os bens públicos não poderiam ser financiados e todos ficariam a perder. Algo equivalente ameaça agora a economia europeia.

Em plena crise económica, dada a incerteza sobre o futuro, os agentes privados tendem a adiar as suas decisões de investimento e consumo, o que reduz a procura agregada na economia. Mas menos procura significa também menos produção, o que acarreta menos emprego, menos salários e menos lucros. Isto deprime ainda mais a procura agregada, envolvendo as economias numa espiral recessiva, com custos económicos e sociais graves. Diz o mais elementar bom senso que, em contextos como este, o Estado deve tomar a iniciativa, estimulando a procura agregada através do investimento público e das despesas correntes. Por outras palavras, os governos europeus deveriam estar já a prevenir a espiral descendente que se anuncia, pondo em acção um vasto programa de investimento e consumo públicos.

Acontece que algumas economias europeias foram apanhadas pela crise com desequilíbrios macroeconómicos significativos, nomeadamente com dívidas externas avultadas. Aumentar as despesas públicas nestas condições incorre no risco de deteriorar ainda mais a dívida externa (e.g., parte dos investimentos públicos implicam a aquisição de bens e serviços ao exterior, o que prejudica a balança comercial). Para estes países a tentação do ‘free-riding’ é demasiado grande. A lógica que tendem a adoptar é: deixemos os outros governos aumentar os seus défices, que as nossas exportações beneficiarão com isso (melhorando o défice externo), sem termos de aumentar a nossa dívida pública.

O problema, tal como no caso de manual descrito acima, é que se muitos governos adoptarem essa atitude, o nível de procura agregada no conjunto da UE poderá ser insuficiente para evitar uma crise prolongada. Pior ainda, apercebendo-se das tentações de ‘free-rinding’, alguns dos países que poderiam neste momento dar um maior contributo para a retoma, sem riscos para o seu equilíbrio macroeconómico (como é o caso da Alemanha), recusam-se a desempenhar o papel de perdulários num clube de egoístas. O resultado é que a crise se generaliza, o investimento escasseia, o consumo também, caem as exportações em todo o lado e, com isto, aumenta o desemprego, deterioram-se ainda mais as contas públicas e prolonga-se a recessão.

As notícias que vão chegando a este propósito não são boas. Nem mesmo o modesto plano de recuperação económica da Comissão Europeia parece receber o apoio dos principais governos da UE. A solução para este tipo de problema só poderia ser um: atribuir às instituições europeias a possibildade de envividamento e de gestão supranacional da crise, tendo em conta as diferentes situações nacionais e tirando partido de todos os instrumentos de política económica que um Estado soberano deve ter (emissão de obrigações europeias, transferências automáticas de natureza anti-cíclica, controlo política das políticas monetária e cambial, etc.). Mas tudo isto está vedado pelos Tratados - tanto no que está em vigor como naquele que insistem em querer aprovar contra a vontade dos irlandeses (e sem consultar a esmagadora maioria dos europeus).

Quem nesta fase ainda não percebeu a embrulhada em que a UE se meteu ao adoptar a arquitectura de gestão macroeconómica saída de Maastricht já não pode ser apelidado de neoliberal. Crédulo irredutível, é o adjectivo mais apropriado.

Hipóteses de trabalho

«Se o banco não representa risco sistémico e não foi para ajudar a economia, resta saber por que razão o Governo avança com um garantia pública para salvar um banco no qual os próprios accionistas não quiseram apostar. Ninguém saberá, mas fica sempre a dúvida se não terá sido para garantir o apoio da poderosa e influente rede de clientes do BPP» (Pedro Sales).

Entretanto, sabe-se que o Banco de Portugal nomeou Fernando Adão da Fonseca como presidente provisório do BPP (Público). Vem do BCP. Uma das instituições que participa na operação de financiamento do BPP garantida pelo Estado. É presidente do «Fórum para a Liberdade de Educação», um grupo de interesse que se dedica a pugnar pela privatização do ensino em Portugal, ou seja, pela expansão do escândalo que são as dezenas de milhões de euros que o Estado entrega todos os anos ao ensino privado no quadro de protocolos de associação (com um crescimento de 30 milhões de euros em 2000 para 221 milhões em 2007). Faz parte da SEDES. É da área do PS, claro. É membro do Compromisso Portugal, organização que, felizmente, anda muito apagada (pudera…).

O neoliberalismo sempre foi assim. Como já aqui e aqui se defendeu, trata-se sempre de promover a reapropriação privada do Estado, das instituições e dos recursos públicos, depois de intervalos de democracia forte. Promover os interesses dos negócios, fortalecidos por anteriores processos de privatização, e a sua expansão a nova esferas da vida exige uma engenharia política com algum grau de flexibilidade. Sobretudo em tempos de crise.

Défice de diálogo social: resposta a Rui Pena Pires (III)

4. Além disso, RPP acusa-me de “O problema do André é que a este respeito faz apenas discurso ideológico e do mais enviesado.” Esta argumentação tem dois problemas fundamentais. Primeiro, não tem qualquer base empírica porque há várias pessoas, de vários quadrantes (nomeadamente da área do PS), e com elevado prestígio académico, que, tal como eu, têm uma visão crítica do que se tem passado na educação. Vejamos apenas quatro exemplos porque este conjunto de três postas já vai longo e eu não quero maçar mais os leitores:

a) Dizia, por exemplo, José Madureira Pinto (Público de 9/3/08), um eminentíssimo sociólogo português e antigo assessor principal do Presidente Jorge Sampaio (da área socialista, portanto!): “Foi esta a armadilha intelectual em que se deixou cair a equipa ministerial, quase desde o momento em que iniciou funções. Daí à hostilização sistemática dos professores, habilmente mediada pelo ataque às suas estruturas sindicais, não foi senão um passo. Numa altura em que os teóricos da organização e gestão empresarial defendem cada vez mais a importância do envolvimento e participação criativa dos trabalhadores (…), desconfiando dos que teimam em racionalizar e controlar os comportamentos no espaço do trabalho (…), a obsessão «gestionária» do Governo no modo de conceber a actividade docente (…) tem o seu quê de anacrónico.”

b) Dizia, por exemplo, o investigador coordenador do ICS-UL, Manuel Villaverde Cabral, outro eminentíssimo sociólogo e historiador português (conhecido pela sua independência face aos diferentes partidos políticos), ao Público/P2 (28/11/08): “Não se pode ser «autoritário» com os professores, fazer deles «o bode expiatório do insucesso escolar», ser «liberal» com os alunos e completamente populista com as chamadas famílias - que, de forma geral, não são capazes nem fazem qualquer esforço para apoiar os filhos no processo de aprendizagem -, quando toda a gente sabe que, em qualquer sociedade, os alunos só têm êxito quando os pais entram com a sua quota-parte de esforço!”

c) Veja-se, ainda, a finalizar a análise contundente do prestigiado filósofo José Gil, citado na posta do meu amigo Jorge Bateira, “Abuso do poder”, num artigo intitulado “A domesticação da sociedade” (Visão, 2/10/08), de que retiro apenas uma passagem: “No processo de domesticação da sociedade, a teimosia do primeiro-ministro e da sua ministra da Educação são técnicas terríveis de fabricação de subjectividades obedientes”.

d) E, finalmente, também concorda comigo a ministra da Saúde (do PS e do governo em funções), a médica Ana Jorge:

“Sou do sector da Saúde, e ninguém faz reformas numa situação conflituosa da população e dos profissionais (declarações ao Expresso, 29/11/08).”

Este governo (e o PS) parecem estar, aliás, esquizofrenicamente divididos em duas facções, uma que, tal como sempre foi a tradição do PS, acredita profundamente no diálogo social e na necessidade imperiosa de mobilizar os profissionais para que as reformas, em qualquer sector, possam ser bem sucedidas; e outra (que por ora parece ser dominante) que, ao contrário do que sempre foi a tradição do PS, pensa que “só se fazem reformas contra os profissionais”.


5. O segundo problema fundamental da acusação de RPP de que eu faço “(…) discurso ideológico e do mais enviesado”, é que estas afirmações de RPP não têm qualquer credibilidade porque vem de alguém que se tem evidenciado recentemente, sobretudo, pelo seu proselitismo partidário.

6. Repudio veementemente (e já demonstrei porquê) a acusação de que eu faço “(…) apenas discurso ideológico e do mais enviesado.”

O que eu perfilho são determinadas orientações valorativas de que não abdico por quaisquer razões circunstanciais, nomeadamente por os meus amigos (políticos e/ou pessoais) e/ou colegas estarem no governo:

Primeiro, penso que os sindicatos (e as liberdades sindicais) são um pilar fundamental de uma sociedade democrática.

Segundo, penso que, numa sociedade democrática, não cabe aos governos certificar as “boas” e as “más” estruturas/direcções sindicais, cabe-lhes apenas zelar pelo estabelecimento de regras claras que assegurem a democraticidade interna das organizações da sociedade civil (sindicatos incluídos) e, depois, tentar negociar com todas elas em pé de igualdade (chegando ou não a acordos, naturalmente).

Terceiro, penso que, não só do ponto vista da esquerda (social-democrata e não só), mas também de uma perspectiva democrata-cristã, os sindicatos são uma organização fundamental porque está provado historicamente que, lá onde eles são mais fortes, as desigualdades sociais são também bastante menores.

Quarto, last but not least, penso que não é possível fazer reformas bem sucedidas sem mobilizar os profissionais, nomeadamente através das suas estruturas representativas (isto é, os sindicatos, etc.).

Défice de diálogo social: resposta a Rui Pena Pires (II)

2. O segundo problema da argumentação de RPP é que continua a reduzir o problema da falta de diálogo na educação a um mero problema de confrontação entre o governo e os sindicatos. Tal é, porém, totalmente errado.

No meu artigo do Público (17/11/08) a este respeito (“O pecado original de um governo iluminado”), afirmei o seguinte:

“O pecado original foi, de novo, recordado pela gigantesca manifestação de professores: cerca de 120 mil desfilaram pelas ruas de Lisboa não só contra o sistema de avaliação proposto, mas também contra o modelo de gestão escolar e o novel estatuto da carreira docente. Só míopes podem atribuir manifestações desta grandeza a uma manipulação dos sindicatos.

O pecado original radica na ilusão de que é possível fazer reformas, nomeadamente na educação, sem mobilizar os profissionais para as mudanças (por maioria de razão quando estes são altamente qualificados e gozam de significativa autonomia), não só tornando claras para esses profissionais as vantagens das mudanças, mas também oferecendo contrapartidas para as perdas que porventura se perspectivam no seu estatuto e direitos (sem um trade off significativo não há efectiva negociação).”

3. Aliás, num artigo de opinião publicado no Público (22/11/08), intitulado “E depois da maré vazar?”, a jornalista São José Almeida explicou magistralmente porque é que, primeiro, há muito que a contestação na educação ultrapassou os sindicatos e, segundo, porque é que, goste-se ou não (destes) sindicatos, sem eles tudo poderá ainda ser pior: “É importante que ninguém esqueça que não há sindicalismo em parte nenhuma do mundo que consiga o que a atitude sistemática de afronta à dignidade dos professores seguida pela ministra da Educação conseguiu em Portugal: colocar a classe docente na rua com manifestações sucessivas e um calendário de acções reivindicativas que passa pela greve nacional e pelo boicote às notas do primeiro período.

De facto, os sindicatos assinaram um acordo com a ministra e aceitaram um tipo de avaliação que foi lançada e posta a funcionar. Só que os sindicatos não são as escolas. Os sindicatos representam professores, não são os professores. E é evidente em toda esta guerra que os sindicatos foram ultrapassados pela rua. E só resta aos dirigentes sindicais engolir em seco, rasgar o acordo que assinaram e tentar navegar na crista da onda da rua, sob pena de serem afogados pela voragem da rebentação e acabarem a não representar ninguém. E, por mais que a posição de Mário Nogueira e de outros dirigentes sindicalistas seja de pura sobrevivência política, é bom que sobrevivam e que o poder negocial não caia de todo na rua. A bem do ensino público e do que restar da escola, quando a maré vazar.”

São, sem sombra de dúvida, palavras sábias desta prestigiada jornalista. E, acrescento eu: o PS faria muito melhor em dar profunda atenção a estas sábias palavras do que em andar a aconselhar-se com os spin doctors da estratégia da confrontação.

Défice de diálogo social: resposta a Rui Pena Pires (I)



No blogue o canhoto, Rui Pena Pires (RPP) fez uma série de comentários sobre três postas minhas nos Ladrões de Bicicletas: “Os três calcanhares de Aquiles da governação PS sob Sócrates I, II e III”. Ver ainda aqui.

Continuo a minha resposta aos comentários de RPP, agora sobre a questão do défice de diálogo social, sobretudo na educação.

Disse eu então “Continuando a escrever sob os pontos fracos da governação do PS sob Sócrates, passo, agora, ao terceiro aspecto fundamental: a falta de diálogo social, sobretudo na área da educação.

Na minha perspectiva, este é o ponto mais crítico deste governo e tem marcado a sua actuação praticamente desde o início. Este pecado original não só vem à revelia da tradição que o PS sempre defendeu, como também diverge, primeiro, das modernas tendências da governação democrática nas sociedades europeias e, segundo, das mais avançadas práticas de gestão (privada e pública) (veja-se o meu artigo no Público, 17/11/08).”

A este respeito, afirmou então RPP:
“André Freire acusa também o Governo de “falta de diálogo social, sobretudo na área da educação”. O problema do André é que a este respeito faz apenas discurso ideológico e do mais enviesado. Eu também acho que ganharíamos, e muito, em ter um sistema de diálogo e de concertação social à nórdica, só que este é muito difícil de colocar em prática quando um dos parceiros tem uma orientação para o diálogo próximo de zero (a CGTP) e, sendo o de mais peso no mundo sindical, induz esta lógica de competição confrontacional que arrasta os outros sindicatos para as trincheiras da resistência à negociação (embora um pouco mais de coragem pudesse ajudar, e muito, a resistir a este efeito de arrastamento).”

1. A ideia de que o problema (da falta de acordos na área da educação) é porque “um dos parceiros tem uma orientação para o diálogo próximo de zero (a CGTP) e, sendo o de mais peso no mundo sindical, induz esta lógica de competição confrontacional que arrasta os outros sindicatos para as trincheiras da resistência à negociação” não é nada, mas mesmo nada convincente, por quatro razões fundamentais:

a) Por esta ordem de razões, a UGT (que, em termos do número de filiados tem entre cerca de um terço a metade dos membros da CGTP, de acordo com as diferentes estimativas) nunca teria conseguido assinar acordos com este governo, nesta legislatura, mas fê-lo várias vezes. Portanto, o argumento não convence, de todo.

b) Numa democracia, as direcções das organizações da sociedade civil (sindicatos incluídos) são democraticamente escolhidas pelos seus membros, sendo por isso autónomas e apenas responsáveis perante os seus membros (e perante a lei). Cabe ao Estado (e aos governos) apenas zelar pelo estabelecimento de regras claras que assegurem a democraticidade interna das organizações da sociedade civil (sindicatos incluídos) e, depois, tentar negociar com todas elas em pé de igualdade (chegando ou não a acordos, naturalmente). Não cabe, por isso, aos governos certificar as “boas” e as “más” estruturas/direcções sindicais. Já tivemos isso, mas é de muito má memória: foi durante o Estado Novo.

c) No passado, quer governos do PSD (com Cavaco, por exemplo), quer governos do PS (de António Guterres, por exemplo) fizeram acordos com estes sindicatos de professores (FNE e FENPROF). A própria CGTP já assinou acordos com diferentes governos. Portanto, o argumento não convence, de todo.

d) Mais, face aos anteriores governos do PSD e do PS, a situação presente deveria ser ainda mais favorável à negociação e ao estabelecimento de acordos. Duas das maiores estruturas da FENPROF têm hoje direcções muito mais autónomas face ao PCP, que venceram eleições contra listas “oficiais” do PCP (chegando ao ponto de terem sido movidos “processos para-disciplinares” a dirigentes sindicais que se recusaram, em nome da sua autonomia e liberdade pessoal, a integrar a lista patrocinada pelo PCP): no SPGL, a direcção é composta por renovadores, socialistas e bloquistas e, nas últimas eleições, o PCP apresentou uma lista alternativa (à desta direcção) e perdeu; no SPN, a direcção é também plural (talvez a melhor garantia de autonomia dos sindicatos face aos partidos!) com maioria de independentes, integrando também comunistas, socialistas e bloquistas e, mais uma vez, nas últimas eleições o PCP apresentou uma lista alternativa (à desta direcção) e perdeu.

(Nota: muito provavelmente, em vez de se aconselhar com pessoas como RPP, que no fundo acham que não se consegue negociar com a CGTP e, por isso, a estratégia mais apropriada é a da confrontação, o PS faria talvez melhor em procurar reforçar o pluralismo interno da CGTP, nomeadamente apoiando mais a corrente socialista (e outras correntes minoritárias), em vez de passar a vida a demonizar a central. É que, goste-se ou não dela, a CGTP tem implantação nos locais de trabalho, está em todo o país, tem milhares de quadros activos e representa entre duas a três vezes mais sindicalizados do que a outra confederação, a UGT (há fontes e números sobre o peso relativo de cada uma das duas confederações sindicais no meu Crónicas Políticas Heterodoxas, Lisboa, Sextante, 2007).

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Para acabar com os «infernos fiscais»

Segundo o The Guardian, a fuga às obrigações fiscais faz com que os países em vias de desenvolvimento percam cerca de 160 mil milhões de dólares por ano (a ajuda ao desenvolvimento cifra-se em cerca de 100 mil milhões). Existem setenta paraísos fiscais em todo mundo que, segundo o FMI, captam cerca de um quarto da riqueza privada mundial.

Para que servem os «infernos fiscais»? Para que os mais ricos possam escapar às suas obrigações fiscais, para que as grandes empresas possam realizar as suas sofisticadas actividades de «planeamento fiscal internacional», para que os operadores financeiros possam escapar às malhas pouco apertadas da regulação, criando um «sistema bancário sombra», para que a economia subterrânea, feita de tráficos vários, possa florescer ou para que as organizações terroristas possam financiar as suas actividades. Tudo com a maior discrição e sigilo.

A utilidade social destes «infernos fiscais» é evidente. Perguntem ao BPN. Evidente também tem sido a complacência dos governos. Na União Europeia, por exemplo, existem vários paraísos fiscais. Da Madeira à ilha de Man. O seu encerramento seria um sinal de que os governos estão determinados a mudar as coisas. Não é preciso esperar.

Entretanto, Barack Obama, referindo-se às ilhas Caimão, afirmou: «há um edifico que alberga 12000 companhias norte-americanas. É o maior edifico do mundo ou a maior intrujice fiscal» (via FT). Barack Obama tem currículo nesta área visto que patrocinou, enquanto senador, uma proposta para aumentar o escrutínio das operações em off-shores: «stot tax haven abuses act». A UE, com os bons pretextos da crise financeira e dos escândalos recentes de fuga ao fisco que abalaram a cada vez mais desigual Alemanha, parece sair do seu habitual torpor. Não faltam propostas para acabar com uma das mais poderosas «térmitas fiscais» (a expressão é do economista Vito Tanzi). Falta apenas vontade política para enfrentar gente com muito poder.

“quando o povo português quiser”


Segundo o Público, Jerónimo de Sousa afirmou que os comunistas serão poder "quando o povo português quiser", sem ficar "à espera de lugares oferecidos". Disse também que é com a "luta" dos portugueses que "se dará a ruptura e a mudança", numa "ampla frente social".

Se bem entendo, num contexto de agravamento da crise do capitalismo neoliberal, vem a caminho o dia em que os portugueses vão acolher de braços abertos a chegada ao poder de uma ampla frente social liderada pelo Partido Comunista. Admitamos que se trataria de uma vitória eleitoral, embora este ponto não tenha ficado claro.

De facto, o PCP mantém-se fiel à ideia de que se constrói uma "sociedade nova" a partir do controlo do Estado, primeiro numa frente ampla ... depois sozinhos, claro. Marx e Engels também viveram na expectativa de que as crises do capitalismo do seu tempo tornariam possível a sua extinção, sobretudo na Inglaterra e na Alemanha. Acabaram as suas vidas desiludidos. Afinal, foi na periferia do capitalismo que o século XX viu nascer as tais "novas sociedades", afinal causadoras de sofrimento humano a uma escala inimaginável.

E se as esquerdas deste país, tendo aprendido com a história, percebido melhor a dinâmica das sociedades, a importância e os limites da acção do Estado, a necessidade de diferentes formas de propriedade, a complementaridade entre planeamento e mercados (os 'mercados' são anteriores ao 'capitalismo'), afirmassem com clareza que o socialismo não é uma sociedade nova que rompe com tudo o que vem de trás ?

E se as esquerdas deste país, assumindo explicitamente que o futuro é aberto, dissessem com clareza que o socialismo é um longo processo de luta pela transformação do capitalismo numa sociedade radicalmente democrática (democracia no interior das empresas privadas e também nas organizações do Estado) em que a economia está ao serviço do interesse público ?

E se as esquerdas deste país dissessem que não se propõem construir o céu na terra, e que nos seus partidos também há vaidades, interesses particulares e ambições mesquinhas, estando no governo ou fora dele, porque os seres humanos são por natureza imperfeitos ?

As imagens do congresso do PCP não deixam dúvidas. Em Portugal, a reconstrução da esquerda exige dois tipos de ruptura, uma relativamente ao social-liberalismo da Terceira Via, outra relativamente ao messianismo comunista. Quanto tempo isso vai levar não sabemos. Como disse, o futuro é aberto e, também aqui, "os homens fazem a sua história num quadro historicamente determinado" (Karl Marx dixit).

domingo, 30 de novembro de 2008

Asfixia do ensino superior: resposta a Rui Pena Pires

No blogue o canhoto, Rui Pena Pires (RPP) fez uma série de comentários sobre três postas minhas nos Ladrões de Bicicletas: “Os três calcanhares de Aquiles da governação PS sob Sócrates I, II e III”.

Há muitas pessoas que pensam de forma diferente da minha, por vezes de modo diametralmente oposto, mas por quem não só tenho o maior respeito intelectual como gosto até bastante de debater com elas: do meu ponto de vista, elevam o nível do debate político e, por isso mesmo, qualificam-no.

Infelizmente, não é o caso do RPP: não só por causa do seu estilo deselegante e desagradável, mas também porque, muitas vezes, não argumenta (provavelmente porque não tem verdadeiros argumentos) e tenta apenas desqualificar a pessoa com quem debate (por exemplo, tentando colar rótulos ou fazendo acusações completamente infundadas), RPP não contribui para elevar o nível do debate político.

1. Sobre o facto de a transformação das universidades públicas em “Fundações Públicas de Direito Privado” poderem representar uma “porta aberta à privatização do ensino superior e à sua completa mercantilização” reitero o que disse e acrescento:

a) Em Portugal, se há subsector da administração pública que funciona muito melhor do que o sector privado é precisamente o das universidades públicas, em particular, e do ensino superior público, em geral. É, por isso, espantoso, que, nestas condições, a jóia da coroa da reforma do ensino superior seja a transformação das universidades públicas em “Fundações Públicas de Direito Privado”. Ou seja, a grande reforma diz-nos que devemos emular o sector privado… porque só assim conseguiremos melhorar a sua performance… No mínimo, isto é paradoxal e surpreendente, a não ser que haja alguma agenda escondida que desconhecemos…

b) Sabendo-se muito bem do papel das instituições internacionais (Banco Mundial, FMI, OCDE, etc.) na promoção da globalização neoliberal, de nada serve, muito pelo contrário, alegar que a reforma foi proposta pela OCDE (sobre este ponto, ver o meu texto “A narrativa neoliberal sobre a globalização” e “Opções técnicas e opções políticas no ensino superior”, Crónicas Políticas Heterodoxas, Lisboa, Sextante, 2007, pp. 35-39 e 163-165.

c) Num artigo sobre este tema, “Que universidade queremos?”, publicado no Le Monde Diplomatique, II Série, Número 18, reportando-se nomeadamente às experiências internacionais com o regime fundacional aplicado às universidades públicas, Maria Eduarda Gonçalves referiu vários problemas, designadamente: declínio da componente de investigação face à componente ensino no trabalho destas universidades, como meio de obter mais financiamento; deterioração do ratio do número médio de alunos por professor, isto é, crescente deterioração da qualidade do ensino; crescente dependência do financiamento privado, isto é, do mercado, para financiar quer o ensino, quer a investigação nestas instituições.

2. Além disso, RPP faz as seguintes acusações: “Convinha ainda evitar as insinuações malévolas, facilmente desmentidas pelos factos. Segundo o André, e a propósito de uma referência a declarações de António Nóvoa proferidas num cenário digno da mais caricatural representação da velha universidade, “para 2009 o governo vai dar, apesar de tudo, mais dinheiro a algumas universidades: as que aceitaram transformar-se em ‘Fundações Públicas de Direito Privado’, como pretendia a tutela”. As instituições universitárias que poderão, a curto prazo, passar ao regime fundacional, por terem para isso aberto negociações com o Governo, são o ISCTE, a Universidade de Aveiro e a Universidade do Porto. No OE de 2009, as transferências por aluno para as universidades portuguesas serão, em média, de 4.274 euros. Para o ISCTE, o valor definido é de 2.937 euros, o mais baixo de todos; para Aveiro, é de 3.833, bem abaixo também da média. Apenas a transferência para a Universidade do Porto, a mais eclética do país, é claramente acima da média: 4.684 euros. O desprezo pelos factos no calor da controvérsia tem limites, (…).”

Quanto ao desprezo pelos factos, refira-se o seguinte:
a) Na minha posta, que RPP comentou, cito dois artigos meus onde há abundantes dados estatísticos comparativos (da OCDE) evidenciando a asfixia financeira a que este governo tem submetido as universidades: ver aqui e aqui. São, por isso, totalmente infundadas as acusações de “desprezo pelos factos”.

b) Além disso, pode ainda citar-se a entrevista (a Paulo Peixoto e Nuno David) de Seabra Santos, Presidente do CRUP (Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas), em 2008, sobre o tema: “As universidades compreendem muito bem as restrições que estão associadas ao exercício de elaboração de um Orçamento de Estado em situação de reconhecidas dificuldades financeiras e mostraram já, no passado recente, ser solidárias com o esforço nacional de reequilíbrio das contas públicas. O que as universidades não podem compreender, porque nada o justifica, é a dimensão da componente desse esforço que lhes está a ser exigida já que, entre 2005 e 2008, viram as suas dotações para funcionamento diminuir, em percentagem do PIB, cerca de 16%. Este valor é quatro vezes superior ao esforço nacional concertado para redução do défice público no mesmo período que, como é sabido, foi de cerca de 4%.
Pelo quarto ano consecutivo, teremos em 2009 uma diminuição real da dotação para funcionamento do sistema de Ensino Superior, já que o aumento da receita pública ficará muito aquém do acréscimo de despesa obrigatória traduzido no pagamento de 11% da massa salarial global para a Caixa Geral de Aposentações, nos aumentos salariais de 2,9%, nas progressões obrigatórias de carreira e na inflação. Este estrangulamento financeiro ocorre em contra-ciclo com o que se passa na generalidade dos Países da União Europeia e também não pode encontrar justificação na evolução do número de estudantes que tem sido, nos últimos anos, em Portugal, francamente positiva. São circunstâncias que perturbam a integração das nossas Universidades no Espaço Europeu de Ensino Superior, que lhes retiram argumentos competitivos no contexto universitário internacional e que contrariam a evolução para um novo paradigma de desenvolvimento baseado no conhecimento, o que não pode deixar de ter consequências negativas de médio prazo sobre os indicadores económicos nacionais.” São, por isso, totalmente infundadas as acusações de “desprezo pelos factos”.

c) Finalmente, para contestar a minha afirmação de que
“para 2009 o governo vai dar, apesar de tudo, mais dinheiro a algumas universidades: as que aceitaram transformar-se em ‘Fundações Públicas de Direito Privado’, como pretendia a tutela”, RPP recorre aos custos médios por aluno para dizer que isto não é verdade porque as transferências médias por aluno nas três universidades que estão em vias de passar a Fundações são muito menores do que a média das transferências para as várias universidades públicas (excepto no caso da Universidade do Porto). Bom, em primeiro lugar, é preciso dizer com muita clareza que os custos médios por aluno (logo, as transferências) não são totalmente comparáveis porque os diversos cursos têm diferentes custos e algumas universidades poderão ter, pelo menos em termos de peso relativo no conjunto dos cursos de cada instituição, muitos mais cursos mais baratos do que outras (por exemplo, porque não têm medicina, têm poucas engenharias, etc.). Em segundo lugar, quando queremos saber como evolui o financiamento de uma determinada instituição, sector, etc., de um ano para o outro, não usamos como indicador os custos médios per capita mas sim a variação percentual (e absoluta) no total de financiamento de um ano para o outro. Portanto, o mínimo que se pode dizer do indicador referido por RPP é que ele é totalmente inadequado para se avaliar a questão que eu levantei. São, por isso e mais uma vez, totalmente infundadas as acusações de “desprezo pelos factos”. Aliás, no quadro abaixo (cuja fonte é o documento discutido na comissão parlamentar de educação e ciência, na reunião que teve com o Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, em 10 de Setembro 2008). podemos constatar a justeza e ancoragem empírica do que eu afirmei.

d) A finalizar refiram-se, ainda, duas notas fundamentais para que não restem quaisquer dúvidas a este respeito. Primeiro, penso que, por causa dos eventuais custos envolvidos, é razoável o governo prever um financiamento suplementar das universidades públicas que pretendiam passar a “Fundações Públicas de Direito Privado”, o que isso não deveria era implicar uma penalização praticamente generalizada das outras (como se verifica). Segundo, para pelo menos uma parte do bolo do financiamento público das universidades públicas, defendo um sistema competitivo, transparente e estável no tempo (para as instituições saberem com o que contam de uns anos para os outros). Num regime como este, não tenho quaisquer dúvidas de que o ISCTE, bem como as universidades de Aveiro e do Porto (embora esta não esteja a ser beneficiada para 2009), estariam entre as melhores do país e, por isso, entre as mais beneficiadas. Porém, tal não deveria significar uma asfixia generalizada das outras instituições e, além disso, se fosse um sistema competitivo, transparente e estável no tempo não suscitaria a ninguém dúvidas quanto à justeza de alguns levarem uma fatia do bolo maior do que os outros (em termos relativos). Não foi isto que se passou, muito pelo contrário, e, por isso, já vi alguns responsáveis das outras universidades (mais penalizadas) levantarem este tipo de dúvidas. Nem o ISCTE, nem Aveiro mereciam isto, obviamente.

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