sexta-feira, 11 de março de 2022
Só eles ameaçam e ameaçaram a democracia
Cumprem-se hoje 47 anos do 11 de Março de 1975, data em que a direita militar e política pretendeu lançar um contra-golpe de cariz fascizante, antidemocrático e fratricida com base numa calúnia sobre a preparação de um banho de sangue pela mão da esquerda.
Hoje, como ontem, a direita faz da mentira a arma preferencial para justificar as suas ações e manipular o povo a que se dirige. Em tempos conturbados, onde os herdeiros políticos de Março de 1975 se arvoram como grandes defensores da democracia, importa relembrar só deles provieram e provêm as ameaças à ordem democrática . E que, por conseguinte, hoje como há 47 anos, só o seu derrube incondicional deve estar no nosso horizonte.
(Ver aqui uma referência recomendada sobre o tema, pela pena de Ricardo Noronha).
As decisões orçamentais são inevitáveis?
Nos últimos anos, quando o Governo apresentava níveis de investimento público abaixo dos 2% do PIB e subfinanciava áreas como a Saúde, a Educação, a habitação ou os transportes, dizia-se que não havia orçamento para tudo. Agora, fala-se em gastar esse valor - cerca de 4 mil milhões de euros - só na Defesa. E parece que é "inevitável".
Mistério
quinta-feira, 10 de março de 2022
Querido diário - Coisas incompreensíveis?
Jornal Público, 10/3/2002 |
Há 20 anos, surgia com atraso em Portugal a proposta que Ronald Reagan aplicara com o enorme estardalhado do falhanço nos Estados Unidos. Era a proposta política do PSD para um "choque fiscal", como forma de dinamizar a oferta e, por sua vez e por arrasto, permitir a prazo uma maior distribribuição de rendimento aos trabalhadores das empresas - o famoso e polémico "trickle-down" bem representado em todas estas imagens.
Mas na altura, fosse pelo seu fracassado pedigree, fosse porque não se visse como as verbas libertadas do Estado para os empresários poderiam dinamizar a economia, ninguém lhe via muita eficácia. Nem mesmo os séniors das políticas neoliberais em Portugal, como Cavaco Silva ou António Borges. Nem mesmo os empresários portugueses a quem a proposta se dirigia.
Jornal Público, 10/3/2002 |
E não é que de repente, passados 20 anos, toda a direita volta a repegar na mesma proposta? Por que razão? Quais são os novos argumentos técnicos? Não se entende. Aquilo que se entende é que: 1) após a pandemia, prefere-se apoios públicos, sejam eles de forma forem; 2) e que a nova velha proposta está a ser esgrimida como um dos argumentos contra o "intervencionismo do Estado".
Vejam-se as declarações recentes e Abel Mateus, apresentado como ex-presidente da Autoridade da Concorrência e presidente do conselho consultivo da SEDES, mas na verdade também ex-administrador do Banco de Portugal, do departamento de estatísticas do banco central ao tempo de Cavaco Silva, responsável - como o disse ao jornal Expresso - por uma alteração das estatísticas apuradas, de forma a demonstrar que a retoma económica em 1994 - após a recessão de 1993 que o Governo negara - fora mais pronunciada.
"Este intervencionismo do Estado tem de ser retirado para que haja um maior dinamismo da iniciativa privada e empresarial. E aí começa um problema que Portugal tem, que é o nível de impostos que todos pagamos: as empresas, as famílias, etc", vinca. Abel Mateus, que é atualmente presidente do conselho consultivo da SEDES - Associação para o Desenvolvimento Económico e Social, explica que a instituição tem feito uma reflexão sobre as reformas necessárias para alavancar o crescimento do país. 'Essas reformas começam, do nosso ponto de vista, por uma redução das taxas de imposto para dar um choque fiscal e permitir que as empresas tenham mais lucros para reinvestir e permitir que as pessoas tenham maiores incentivos para trabalhar, para poupar e investir'"."Começam por uma redução das taxas dos impostos", mas não se sabe onde acaba. Aliás, o próprio PSD em 2021 - num livro sobre a uma necessária reforma fiscal - mostrou-se muito prudente em baixar impostos sem crescimento económico e revelando um pouco mais da ideia:
É importante que os Portugueses tenham noção que a margem para reduzir impostos nos próximos anos depende sobretudo do crescimento da riqueza gerado pelo país em combinação com uma política de racionalização da despesa pública que possa contribuir para o alívio, merecido e desejado, da carga fiscal na senda da tendência das finanças públicas modernas traduzida na transição da função redistributiva do Estado da vertente da receita para a despesa.
Na verdade, como vê, a ideia é outra.
É que quem diz "intervencionismo do Estado" ou "política de racionalização da despesa pública" diz muito mais do que baixar impostos. Diz privatização de 40% do mercado financeiro português detido pela Caixa Geral de Depósitos; diz capturar parte das contribuições sociais para a Segurança Social (através de uma reforma nas pensões de velhice); diz esvaziar a provisão pública da Saúde e da Educação, etc., etc., e transformar esse esvaziamento em área de negócio.
É todo um programa que ainda está por aplicar, apesar das sucessivas vagas de investidas desde os anos 90 de Cavaco Silva, passando pelo mandato de Guterres (que privatizou mais do que Cavaco Silva) até desembocar na Paf de Passos Coelho e Portas de mãos dadas com a troica do FMI, Comissão Europeia e BCE.
Quando se diz "choque fiscal", a ideia é outra. Mas essa ideia raramente é dita. E deveria sê-lo, em nome da transparência política e da transparência entre políticos e negócios; em nome da verdade e da coragem política de se assumir as ideias junto da população eleitora que, por ora, beneficia do papel do Estado Social.
quarta-feira, 9 de março de 2022
Plana, plano
No seguimento desta intervenção, lembrei-me de Capital e Ideologia, onde Thomas Piketty, em linha com anteriores trabalhos, faz uma detalhada análise da “grande pilhagem de activos públicos” associada à regressiva restauração capitalista da década de noventa na Rússia. Além disso, “nenhum país foi tão longe na demolição da ideia de progressividade fiscal” como a Rússia da taxa plana de 13%.
Hoje: Debate Práxis
Propomos uma reflexão colectiva, dirigida principalmente à participação de membros das comissões de trabalhadores, sobre o estado destas organizações, do cumprimento da lei e dos seus direitos nas empresas e sobre os caminhos para o fortalecimento e crescimento desta importante forma de organização dos trabalhadores.»
Promovido pela Práxis, o debate tem início às 21h00 e realiza-se por videoconferência, podendo ser acompanhado aqui (sem necessidade de inscrição prévia). Com moderação de Rui Moreira (CT da Meo/Altice e Práxis), conta com a participação de Alan Stoleroff (ISCTE), António Monteiro Fernandes (FDUNL), Maximiliano Pereira (CT da Bosch-Braga) e Nuno Ferreira (CT do Turismo do Porto e Norte de Portugal). O encerramento está a cargo de Henrique Sousa (Direção da Práxis).
O que é que tem dado gás aos preços da energia?
Nos últimos dias, os preços dos combustíveis e da energia voltaram ao centro do debate público. Depois do aumento significativo registado ao longo do ano passado, os preços dos combustíveis voltaram a subir substancialmente, à semelhança do que aconteceu com o gás natural e a eletricidade.
terça-feira, 8 de março de 2022
Querido Diário - Há ideias mais velhas que alguns eleitores
Jornal Publico 8/3/2002 |
Neste dia internacional da Mulher, o jornal Público de 2002 não lhe deu muita importância.
À excepção de uma chamada de 1ª página para a queixa de uma centena de britânicas sobre os efeitos de uma nova pílula contraceptiva, apenas a secção da Cultura abriu com uma barra sobre o dia, com um artigo sobre maestrinas (Joana Carneiro parecia uma criança). Tudo o resto estava centrado noutro lado.
Há 20 anos, vivia-se em campanha eleitoral, depois da António Guterres se ter demitido, após a derrota nas eleições autárquicas de 16/12/2001.
"Portugal vive hoje uma situação de pântano político, como foi reconhecido pelo ainda primeiro-ministro António Guterres na noite das eleições autárquicas de 16 de dezembro passado"
Começava assim um artigo de opinião de Miguel Frasquilho - na altura economista-chefe do Grupo Espírito Santo, no qual ingressou em 1996 - em que defendia a necessidade de um "choque fiscal" para fazer aumentar a produtividade do país.
Jornal público 8/3/2002 |
Achava-se que apenas um "choque do lado da oferta poderia tirar o
país da situação em que se encontra e retomar a aproximação ao nível de
vida médio europeu". Sugeria-se uma descida da tributação e alargamento
da base tributária em IRC, incentivos à poupança estável em IRS, a
reforma da tributação do sector imobiliário; e a reestruturação dos
escalões do IRS. Frasquilho dizia-se - veja-se! - "um adepto do caso
irlandês" (!). Onde foi que já se ouviu isso?
Sim, foi há 20 anos, mas parece que estamos a ler um programa do partido IL, como se fosse uma grande novidade. Novidade talvez para quem o elaborou ou para os jovens, mais novos que a idade da ideia, inebriados pela aparente frescura das suas ideias. Mas sim, foi exactamente há 20 anos, que o PSD apresentou esta e outras ideias - como a realização de uma auditoria às contas públicas que reduzisse o "excesso" de despesa pública. Mas nem esta nem a outra política do "choque fiscal" foi levada à prática, dados os seus impactos orçamentais e na vida dos cidadãos, nem nunca a descida fiscal teria a eficácia pretendida, como aliás o mostram diversos estudos, já citados neste blogue.
Cavaco Silva e António Borges - dois economistas impregnados das ideias neoliberais que de, uma forma ou doutra, marcaram estruturalmente o país com a aplicação dessas ideias, sendo em grande parte responsáveis por estarmos onde estamos (um pântano, não é o que se diz?) - torciam-se então com essa ideia do "choque fiscal". Talvez fossem um pouco mais sensatos do que alguns novos actores que repetem agora esta velha ideia.
Dia Internacional das Mulheres
Entretanto, no país da democracia "liberal"...
Jornal Público, 7/3/2022 |
Torna-se uma crítica recorrente.
Magistrados de Direito Laboral - antes mais cientes da desigualdade natural da relação laboral entre trabalhadores e entidades patronais que está na base da protecção legal do lado mais fraco - tornam-se mais sensíveis aos argumentos patronais, assentes na salvaguarda da produtividade da empresa e do bem nacional que daí poderá advir. Os trabalhadores e as condições laborais tornam-se - assim - a variável de ajustamento. E para esse fim, organizações sindicais são tidos como organização de "interesses corporativos", criadores de atrito, um obstáculo ao necessariamente fluido e flexível processo organizativo da empresa, tida como a célula sacrossanta da sociedade.
Como se lê da notícia, a empresa Groundforce - na sequência de um acordo de revisão das tabelas salariais para 2017 - decidiu estabelecer como critério de atribuição de prémios o de o trabalhador ter ou não ter filiação sindical. Os sindicatos STHA (técnicos de handling), SINTAC (trabalhadores da aviação civil), SQAC (quadros da aviação comercial) e SIMA (indústrias metalúrgicas e afins) queixaram-se à Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), que lhes deu razão e enviou o processo para o Ministério Público que lhes deu razão igualmente. Mas nem tudo correu bem.
segunda-feira, 7 de março de 2022
Trio histórico-ideológico
1. Se é verdade que o historiador Francisco Bethencourt, com quem já polemizei por duas ou três vezes, reconhece o contributo de Lénine para a questão das nacionalidades no período pós-imperial, também é verdade que é demasiado generoso para Woodrow Wilson, quando o compara com Lénine na defesa da autodeterminação dos povos. Sim, tropeça-se logo no início do seu último artigo. No célebre discurso dos 14 pontos, em 1918, o Presidente norte-americano circunscreveu o princípio da autodeterminação basicamente à Europa. O seu racismo segregacionista e o colonialismo dos seus aliados levaram-no a tal, ao contrário de Lénine, sempre muito mais universalista, até porque anti-colonialista e anti-racista. Posições destas levaram precisamente o futuro Ho Chi Minh (nasceu Nguyễn Sinh Cun) a passar de Wilson para Lénine. E pensar que historiadores liberais, como Rui Tavares, preferem Wilson…
2. Já que estamos na tradição leninista, tive ontem a felicidade de ser um dos milhares e milhares de cidadãos e de cidadãs no Campo Pequeno. Jerónimo de Sousa reafirmou, sublinho a palavra reafirmou, aí: “O PCP não apoia a guerra. Dizer o contrário é uma vergonhosa calúnia. O PCP tem um património inigualável na luta pela paz. O PCP não tem nada a ver com o governo russo e o seu presidente. A opção de classe do PCP é oposta à das forças políticas que governam a Rússia capitalista e dos seus grupos económicos (…) Em nome da guerra está em curso a mais desbragada intolerância e difusão de ódio fascizante, a criminalização do pensamento e de toda e qualquer opinião que questione a ditadura do pensamento único, a instituição da censura, o condicionamento do acesso à informação a limitação de liberdades, direitos e garantias”...
3. Carmo Afonso continua com a coragem de sempre: “É preciso atender às vozes que dizem que os recentes avanços da NATO, em direção à Rússia, concretizados na adesão de novos países vizinhos, contrariaram entendimentos vigentes e que seguravam a paz”. Desde que muito recentemente deixei de comprar o jornal em papel, rompendo com um hábito de mais de trinta anos, que tenho reparado mais no sítio: as crónicas de Carmo Afonso não têm sido lá muito destacadas…
domingo, 6 de março de 2022
A nossa energia
Reconhecemos na rede de distribuição uma estrutura essencial para a democratização do sector energético e para a soberania energética. O seu pleno exercício pressupõe a existência de uma potência instalada de energias renováveis que assegure o abastecimento do sistema eléctrico nacional, bem como a incorporação, no domínio público, dos grandes centros electroprodutores e das redes de transporte e distribuição de energia. Entendemos que só uma gestão pública do sistema elétrico nacional, salvaguardando a articulação entre municípios e Estado central, permitirá lançar as bases para uma transição energética justa, encetando a luta por um direito universal à energia.
sábado, 5 de março de 2022
Interpretar para transformar
Como se estivéssemos nos anos noventa do século passado
«"Está na altura de entrar em modo emergência" escreveu António Guterres numa mensagem, conhecida esta segunda-feira numa conferência organizada em Lisboa, sobre a necessidade de reduzir as emissões carbónicas. O secretário-geral das Nações Unidas sublinhou estar previsto que as emissões globais aumentem 14% durante a década e apelou a "uma avalanche de ação".
A notícia que li não refere se o presidente da autarquia da capital estava presente na conferência do Clube de Lisboa, onde a mensagem foi ouvida, mas seria interessante saber, ao fim de quatro meses em funções, que tem a dizer sobre a matéria - já que não se lhe conhece qualquer plano nesse sentido.
Aliás, minto: os planos que conhecemos, anunciados no seu programa eleitoral e dos quais não há notícia de ter desistido, vão despudoradamente no sentido de contribuir para que se use mais o transporte individual: cortar para metade o preço do estacionamento para os residentes, tornando-o inclusive grátis nos primeiros 20 minutos, e encher a cidade de silos automóveis. Tudo medidas que incentivam não só a circulação automóvel como até a aquisição dos mesmos (estacionamento fácil é um óbvio incentivo).
Para além disso, como tornou claro há meia dúzia de dias, em discurso na Câmara do Comércio Americana, um dos seus principais objetivos é, tal qual como se estivéssemos nos anos noventa do século passado, "escoar trânsito" - nomeadamente no centro da cidade e num local no qual o seu antecessor tinha planeado situar uma das fronteiras de uma zona de emissões reduzidas (ZER).
(...) Tudo ao contrário do que era suposto. E a demonstrar que a cidade dos 15 minutos de Carlos Moedas se refere afinal ao tempo que levou a pensar nela».
Fernanda Câncio, A Câmara dos 15 minutos
Adenda: Confirma-se entretanto que Moedas vai mesmo pôr na gaveta o plano do seu antecessor, Fernando Medina, para tirar carros da Baixa de Lisboa. E como se não bastasse, o atual presidente conseguiu ainda ver aprovada a promessa eleitoral de reduzir o preço do estacionamento para os residentes na capital, suscitando fortes críticas dos especialistas em mobilidade. «Não conheço nenhuma cidade europeia que tenha uma medida deste género», declarou um urbanista ao Expresso.
sexta-feira, 4 de março de 2022
Condenar a invasão e contextualizar o passado e o futuro
«A invasão da Ucrânia é ilegal e deve ser condenada. (...) Como e porquê chegámos aqui? Há 30 anos a Rússia (então União Soviética) saía derrotada da Guerra Fria, desmembrava-se, abria as suas portas ao investimento ocidental, desmantelava o Pacto de Varsóvia, o correspondente soviético da NATO, os países do Leste Europeu emergiam da subordinação soviética e prometiam democracias liberais numa vasta área da Europa. (…) Com o fim da Guerra Fria, os EUA sentiram-se donos do mundo, um mundo finalmente unipolar. (…) As ideias de correlação de forças e de equilíbrio de poderes desapareceram do seu vocabulário.»
Boaventura de Sousa Santos, Como chegámos aqui?
«Não é admissível o silêncio sobre a invasão militar da Ucrânia pela Rússia, a maior operação bélica na Europa desde a II Guerra Mundial. Por mais previsível que fosse, não deixa de ser uma agressão, em grosseira violação do direito internacional e da Carta das Nações Unidas, que só pode merecer condenação geral.
Só é de lamentar que a Ucrânia e a Nato tenham fornecido pretextos à Rússia para esta ofensiva, desde o abandono do estatuto de neutralidade ucraniana (que tinha sido condição explícita do reconhecimento da independência ucraniana por Moscovo), logo substituída pelo pedido de adesão à Nato (uma óbvia provocação à Rússia), até ao incumprimento do acordo de Minsk de 2015 sobre a autonomia dos territórios russófonos do leste da Ucrânia (que Kiev manteve sob constante assédio militar). Quando se mora ao lado de um gigante ressentido, convém não lhe dar pretextos para a agressão.»
Vital Moreira, Contra a invasão da Ucrânia
«Do lado ocidental, depois da simpatia inicial por Gorby, ganhou a tese de que a Rússia tinha perdido a guerra-fria, podendo doravante ser ignorada. Apesar das promessas de que a reunificação da Alemanha não implicaria o alargamento para leste da NATO, a verdade é que esta se efectuou em duas fases principais (1999 e 2004), integrando uma dezena de aliados do ex-Pacto de Varsóvia, e mesmo ex-repúblicas soviéticas, como foi o caso dos Estados bálticos. (...) A breve guerra desse ano [2008] na Geórgia, e a anexação da Crimeia em 2014, mostraram que Putin tinha falado a sério em 2007: a Rússia traçou uma linha vermelha à expansão de uma aliança militar, que considerava fazer perigar a sua segurança nacional. O desastrado ativismo bélico da NATO e dos EUA nos últimos 20 anos, num proselitismo democrático coberto de sangue e ruínas, no Afeganistão, Iraque ou Líbia, ajudou a consolidar as reservas de Moscovo.»
Viriato Soromenho Marques, Derrota mútua assegurada
«Que fique bem claro, antes de começarem os disparates nas “redes sociais”, que eu condeno sem ambiguidades a invasão da Ucrânia, por razões que são mais do que evidentes. Putin e a nostalgia imperial são muito perigosos numa Europa sem defesa a não ser os americanos. Acresce que, por muito dividida que esteja a Ucrânia, a sua independência é fundamental para conter a Rússia e manter a face do direito internacional, que, mesmo que seja apenas a face, é importante para as democracias.
Mas a obrigação para quem tem uma escrita pública é perceber que a complexidade da história pode e deve ser compreendida, e que não olhar para as coisas a preto e branco não impede que se tenha posição, bem pelo contrário. Nestes tempos de enorme simplificação, em que o conforto do preto e branco domina as posições e induz ao clubismo político, nunca quis deixar de ver as cores, ou seja, tentar perceber a complexidade de qualquer humano assunto. Isso não ajuda a legitimar Putin, mas combate-lo com mais eficácia.»
José Pacheco Pereira, Olhar as cores, decidir a preto e branco
«É preciso condenar a invasão desencadeada por Putin e é preciso contextualizar o passado e o futuro da presente situação. As duas coisas não são incompatíveis e a segunda não é menos necessária do que a primeira. De outro modo a escalada arrisca-se a ser imparável. (...) A paz não é a única via para acabar com uma guerra, mas é a menos dolorosa e mais segura das vias. Precisamos de indignação ética e de racionalidade política. É preciso interromper a espiral de parada e resposta, o que exige imaginação e energia diplomática. É demasiado cedo para desistir da paz e quero apenas recordar que o potencial de destruição em jogo é incomparavelmente maior ao de vésperas da II Guerra Mundial. A União Europeia não deve confundir-se com a Nato.»
Zé Neves (facebook)
Ironias da história
Uma ironia política pouco sublinhada deste momento histórico é a aliança dos apoiantes do PCP com destacados militares afetos ao Grupo dos Nove e/ou hoje conotados como próximos do Partido Socialista.
É notável o número de partilhas que apoiantes do PCP fazem das posições de militares como Carlos Matos Gomes e Rodrigo Sousa e Castro.
Estão juntos na necessidade de contextualização histórica da guerra e na necessidade do diálogo para a sua superação. É que neste conflito são os militares, de quase todas as afinidades políticas, a sublinhar que defender uma guerra aberta com uma potência nuclear só pode resultar de impulsividade emocional por oposição à frieza estratégica.
Uns como outros têm sido vítimas das mais rasteiras infâmias. Dizer "condenamos mas é preciso ver que (...)" ainda não significa o mesmo que dizer "apoiamos (...)". A política baseada em processos de intenção é desinformação. Mesmo que discordemos profundamente, como eu discordo, da forma como o PCP coloca a expansão da NATO como o elo primeiro de uma cadeia causal que desemboca na invasão russa. Nunca a justificando ou apoiando, é preciso sublinhar.
São ironias da história que eu não esperava viver para contar. Mas que ilustram bem que a rejeição de uma investida bélica para resolver o problema está longe de ser o resultado imediato de uma visão geopolítica desculpabilizadora de Putin - como alguns têm o atrevimento de insinuar - mas antes de uma análise fria do problema que, em última análise, nos poupará sempre muitas vidas civis e sofrimento humano.
Da responsabilidade dos EUA na crise na Ucrânia
Excerto da entrevista “Porque é que John Mearsheimer culpa os EUA pela crise na Ucrânia?” de Isaac Chotiner a John Mearsheimer.
quinta-feira, 3 de março de 2022
Começou
Jornal Público, 3/3/2022 |
Manuel Carvalho, director do jornal Público, assinou um editorial que, creio, mais tarde achará excessivo. Todos andamos nervosos com a guerra e com as suas implicações, mas, de repente, acabamos por participar nessas consequências.
O primeiro parágrafo parece zangado:
"A invasão da Ucrânia expôs com crueza a dificuldade de o PCP fazer parte de qualquer solução governativa numa democracia europeia". Mais adiante continua: "Os comunistas nunca esconderam a sua aversão à democracia liberal [muito se gosta de usar palavras na moda!], à União Europeia e, claro está à NATO. Como nunca esconderam a sua admiração velada por ditadores, como Nicolas Maduro, ou regimes autoritários como a China".(...) Quando, como agora, é preciso escolher [!] entre autocratas e democracias [!] o verniz do PCP estala e a sua essência emerge". "O PCP estava e continua na margem dos valores ou da história".
Tudo isto é dito sobre a votação no Parlamento Europeu da resolução sobre a invasão da Ucrânia. Ora, o Manuel deveria ter lido com atenção a dita resolução que tem 20 (!) considerandos e 46 (!) pontos de resolução. Quando se quer unir, reduz-se as arestas; quando se quer demarcar, acentuam-se as diferenças. Qualquer esforço sério, teria separado as propostas a aprovar. Uma declaração de princípios, uma proposta de acção. Mas não. Tudo parece ter sido embruhado com uma intenção clara: à pala de uma condenação consensual à invasão - sim, o PCP condena a invasão! - embrulhar e fazer passar uma "declaração de guerra" nada consensual, ao fortalecer-se militarmente a própria NATO, numa iniciativa belicista que, a fazer o seu caminho face a uma invasão militar, conduzirá tudo à desgraça.
Ora, em vez de discutir isso, o Manuel retirou a conclusão primária - o PCP não condena a invasão! Talvez o PCP devesse dar mais atenção à forma como se afirma
publicamente. Mas nada permite ao Manuel Carvalho extrapolar
daquela forma. E assim deixou-se rebolar por essa rampa inclinada, no desvario assente numa base errada, embrulhando-se com toda a direita em ebulição.
Amizade
Em circunstâncias normais não iria de Coimbra a Lisboa para assistir a este comício num Domingo, mas as circunstâncias não são normais e os amigos são para as ocasiões. E a ocasião é uma campanha anti-comunista particularmente viciosa, com muita mentira à mistura. Atacam sempre os comunistas em primeiro lugar.
Atentem, só para dar um exemplo entre mil, no perdócio da Sonae (os lucros medem-se em influência político-ideológica no que a este tipo de jornal diz respeito): o editorial do inefável Manuel Carvalho no Público de hoje é a versão resumida em papel da série Glória: ficção anti-comunista, com mentiras à mistura.
Num ponto, no entanto, posso estar de acordo com Carvalho, defensor da democracia dita liberal: tal contradição é coisa que não deve assistir a quem é democrata, sem o liberal, que nem sequer está na nossa Constituição, e luta pela igualdade cidadã na economia, seja comunista ou socialista. Democracia liberal é a democracia limitada pelo capitalismo cada vez mais brutal. A comunicação social dominante, controlada por guerreiros de sofá neste rectângulo, é uma das mais decadentes expressões do sistema realmente existente.
O liberalismo, relembremo-lo, só muito tardia e relutantemente na sua história se tornou democrata e mesmo assim procurou sempre institucionalizar constrangimentos internacionais para esvaziar na teoria e na prática a democracia. A UE é um poderoso exemplo desse esforço bem-sucedido. Além disso, retórica à parte, o liberalismo sempre foi perigosamente armado e imperialista. Olhem para a história internacional dos EUA e da sua OTAN.
quarta-feira, 2 de março de 2022
Notícias sobre o fim do mundo
Leituras relativistas e absolutas
JN, 28/2/2022 |
Frise-se as opiniões de Mário Soares em 2008. Ao longo da sua vida política, Soares começou por considerar o "Atlântico" como um "lago americano (da América de Foster Dulles e de McCarthy, é bom não esquecer!)" (Portugal Amordaçado, 1972, pag.200) e desde o eclodir da Revolução elogiou o papel da NATO no "mundo ocidental", por a considerar uma "aliança defensiva", com cujos membros Portugal "comunga (e concorda) dos valores políticos e morais de liberdade e da defesa dos Direitos do Homem que são valores ocidentais" (DN, 11/5/1984). A sua opinião em 2008 é, por isso, ainda mais sintomática.
Já Rui Sá, como é sabido, é dirigente comunista e o líder municipal da CDU na Assembleia Municipal do Porto.
terça-feira, 1 de março de 2022
Trio polémico
1. Tendo em conta os hábitos do Público, se Carmo Afonso continua a escrever assim arrisca-se a deixar de ser colunista mais cedo do que tarde: “As posições assumidas pelo PCP foram o pretexto para uma manifestação de anticomunismo digna da Guerra Fria, período em que os anticomunistas afirmam que o partido está. O regresso à história está ao virar da esquina”. Carmo Afonso continuará a escrever assim, estou certo. Do que já não estou certo é da necessidade de reinvenção da esquerda: soberanismo anti-imperialista, centrado na economia política, chega e sobra, cuidando de não reduzir a política externa à política interna.
2. Por contraste, Rui Tavares regressa ao Público com a mesma conversa equivocada de sempre: a UE, uma expressão do imperialismo, onde a lógica de classe do capital financeiro do centro europeu e a lógica geopolítica das grandes potências se articulam, seria afinal um obstáculo a um neoimperialismo que iria da Rússia à China. A posição razoável da República Popular deve ser sublinhada neste contexto. A propaganda europeísta está objectivamente ao serviço do ordoliberalismo armado.
3. Destacados académicos, como Rui Bebiano, continuam a insistir na mentira sobre o apoio do PCP à invasão de Putin. O historiador Bebiano, em linha com a falta de rigor sobre Lénine, insiste desta feita numa imaginária grande influência do PCP nas redes sociais, talvez para dar dignidade ao seu anti-comunismo nada frontal, até porque sempre sem nomes.
segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022
Declínio editorial violento
Na esteira das mentiras sobre a Festa do Avante, que incluíram uma capa falsa do New York Times em pleno jornal da noite, o grupo Impresa prossegue com a cada vez mais violenta campanha anti-comunista, legitimando o vandalismo.
As mentiras novas não resistem, uma vez mais, a uma breve passagem pelo site do PCP.
Neste mundo do avesso, estes produtores de lixo editorial são subsidiados pelo Estado. Deviam mas é ser taxados.
Chegou a hora de negociar
A Rússia até pode conquistar Kiev e outras cidades à custa de um banho de sangue, mas não vai conseguir instalar na Ucrânia um governo fantoche. Talvez para surpresa de Putin, a feroz resistência que a Rússia está a enfrentar mostra que a Ucrânia não será uma nova Bielorrússia.
A habitação como ativo estratégico nacional
Já aqui e aqui abordamos a crescente centralidade do património imobiliário na reprodução de desigualdades. Esta semana saiu um estudo, patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian, que defende a mobilização do Património das famílias como activo estratégico nacional.
A economia política das sanções à Rússia
Não tinham passado muitas horas desde o início da invasão da Ucrânia pelo exército russo quando os países ocidentais aplicaram as primeiras sanções económicas à Rússia. As sanções têm sido uma das armas mais utilizadas para responder a conflitos nos últimos anos e os países têm-nas usado como forma de tomar uma posição de força. É essa que parece ser, para já, a estratégia dos países do Ocidente na disputa com a Rússia. No entanto, há alguns motivos para termos dúvidas acerca da eficácia das atuais sanções.
domingo, 27 de fevereiro de 2022
Bem-vindas ao Capitaloceno
sábado, 26 de fevereiro de 2022
Todos têm as mãos sujas de sangue
Condenar esta guerra não é incompatível com a simultânea condenação do comportamento dos EUA e da UE desde a queda do muro de Berlim. Nenhuma guerra é inevitável; na realidade social (como de resto em qualquer outra) não há determinismo.
O melhor comentário político que tem passado nas televisões é, quase sempre, os dos militares na reserva, com grande experiência no teatro de operações de guerra e um grande conhecimento da história dos conflitos na Europa, sempre com enquadramento na geo-estratégia das grandes potências.
Pelo que tenho visto, são de uma enorme sensatez e isenção. Põem em causa a actuação das lideranças políticas, incluindo a da UE, e contrastam com a maior parte dos especialistas de relações internacionais (excepção para José Pedro Teixeira Fernandes) que têm associado o conflito à preservação da democracia na Ucrânia e na Europa, omitindo que as acções dos EUA por interpostas ONG, e as milícias nazis, discretamente apoiadas por países da UE, foram decisivas para a queda do regime que dava tranquilidade à Rússia. Chegam a garantir (sem qualquer indício credível) que Putin quer anexar tudo o que foi da URSS.
Adoptando um discurso belicista, não falta na televisão quem defenda a necessidade de uma escalada militar, um braço-de-ferro entre a NATO e a Rússia, ignorando com a maior leviandade o que significaria uma 3ª Guerra Mundial (ver declarações incendiárias após a participação da Finlândia e da Suécia numa reunião da NATO, o que aliás foi uma verdadeira provocação à Rússia). A este propósito, concordo com a posição de Helena Ferro Gouveia na CNN: "Eu acho que neste momento é prudente não estar a alimentar ainda mais estas questões. É determinante manter a condenação firme mas alimentar ainda mais os pretextos de Moscovo é algo que deve ser evitado."
Vejam, por exemplo, o que diz o Major General Raul Cunha (RTP 3 - RTP Play, a partir do minuto 34:00 - 25 Fev 2022):
“Os líderes ocidentais sobretudo, aqueles que incentivaram este governo ucraniano, que lhes venderam 600 milhões de dólares de armamento … demos armas, demos treino, agora vocês aguentem-se contra a Rússia, por amor de Deus! A NATO, o presidente dos EUA, Boris Johnson e a UE tiveram um comportamento nas bordas do criminoso, tão mau como o do Putin. Estão todos muito bem uns para os outros.” (...) “Eu não acredito que seja intenção da Rússia reconstituir o império soviético. O plano final é impor na Ucrânia um governo que lhe seja simpático.”
Está na hora de reconhecermos que a posição geográfica de alguns países exige um compromisso entre dois valores igualmente importantes, a preservação da paz internacional e a autodeterminação de um país soberano. O compromisso passa pela valorização do estatuto de neutralidade da Finlândia e da Suécia, e era isso que devia ter sido aconselhado explicitamente à Ucrânia, pelo menos desde 2007, em vez do caloroso acolhimento à ideia de adesão à NATO e à UE, uma expectativa que foi sendo alimentada e empurrada para um horizonte incerto, tendo plena consciência de que a Rússia entendia isso como uma ameaça à sua segurança. A verdade é que hoje todos têm as mãos sujas de sangue.