sexta-feira, 11 de março de 2022

Só eles ameaçam e ameaçaram a democracia


Cumprem-se hoje 47 anos do 11 de Março de 1975, data em que a direita militar e política pretendeu lançar um contra-golpe de cariz fascizante, antidemocrático e fratricida com base numa calúnia sobre a preparação de um banho de sangue pela mão da esquerda.

Hoje, como ontem, a direita faz da mentira a arma preferencial para justificar as suas ações e manipular o povo a que se dirige. Em tempos conturbados, onde os herdeiros políticos de Março de 1975 se arvoram como grandes defensores da democracia, importa relembrar só deles provieram e provêm as ameaças à ordem democrática . E que, por conseguinte, hoje como há 47 anos, só o seu derrube incondicional deve estar no nosso horizonte.

(Ver aqui uma referência recomendada sobre o tema, pela pena de Ricardo Noronha).

As decisões orçamentais são inevitáveis?


Nos últimos anos, quando o Governo apresentava níveis de investimento público abaixo dos 2% do PIB e subfinanciava áreas como a Saúde, a Educação, a habitação ou os transportes, dizia-se que não havia orçamento para tudo. Agora, fala-se em gastar esse valor - cerca de 4 mil milhões de euros - só na Defesa. E parece que é "inevitável".

Mistério


É um mistério a desvendar: todos os oligarcas são, por definição, russos? Não há por aí nenhum oligarcazinho português, um só que seja, para sabotarmos um dos verbetes do dicionário da idiotice?

É realmente um mistério da russofobia: prefiro falar de capitalistas em geral, mas creio que pode ser desvendado com a ajuda das relações de propriedade da comunicação social dominante. Trata-se de não ofender quem manda, da distribuição à energia cara, passando pelas ideias baratas. A idiotice tem realmente classe.

quinta-feira, 10 de março de 2022

Querido diário - Coisas incompreensíveis?

Jornal Público, 10/3/2002


Há 20 anos, surgia com atraso em Portugal a proposta que Ronald Reagan aplicara com o enorme estardalhado do falhanço nos Estados Unidos. Era a proposta política do PSD para um "choque fiscal", como forma de dinamizar a oferta e, por sua vez e por arrasto, permitir a prazo uma maior distribribuição de rendimento aos trabalhadores das empresas - o famoso e polémico "trickle-down" bem representado em todas estas imagens.

Mas na altura, fosse pelo seu fracassado pedigree, fosse porque não se visse como as verbas libertadas do Estado para os empresários poderiam dinamizar a economia, ninguém lhe via muita eficácia. Nem mesmo os séniors das políticas neoliberais em Portugal, como Cavaco Silva ou António Borges. Nem mesmo os empresários portugueses a quem a proposta se dirigia.

Jornal Público, 10/3/2002

E não é que de repente, passados 20 anos, toda a direita volta a repegar na mesma proposta? Por que razão? Quais são os novos argumentos técnicos? Não se entende. Aquilo que se entende é que: 1) após a pandemia, prefere-se apoios públicos, sejam eles de forma forem; 2) e que a nova velha proposta está a ser esgrimida como um dos argumentos contra o "intervencionismo do Estado".

Vejam-se as declarações recentes e Abel Mateus, apresentado como ex-presidente da Autoridade da Concorrência e presidente do conselho consultivo da SEDES, mas na verdade também ex-administrador do Banco de Portugal, do departamento de estatísticas do banco central ao tempo de Cavaco Silva, responsável - como o disse ao jornal Expresso - por uma alteração das estatísticas apuradas, de forma a demonstrar que a retoma económica em 1994 - após a recessão de 1993 que o Governo negara - fora mais pronunciada.

"Este intervencionismo do Estado tem de ser retirado para que haja um maior dinamismo da iniciativa privada e empresarial. E aí começa um problema que Portugal tem, que é o nível de impostos que todos pagamos: as empresas, as famílias, etc", vinca. Abel Mateus, que é atualmente presidente do conselho consultivo da SEDES - Associação para o Desenvolvimento Económico e Social, explica que a instituição tem feito uma reflexão sobre as reformas necessárias para alavancar o crescimento do país. 'Essas reformas começam, do nosso ponto de vista, por uma redução das taxas de imposto para dar um choque fiscal e permitir que as empresas tenham mais lucros para reinvestir e permitir que as pessoas tenham maiores incentivos para trabalhar, para poupar e investir'".
"Começam por uma redução das taxas dos impostos", mas não se sabe onde acaba. Aliás, o próprio PSD em 2021 - num livro sobre a uma necessária reforma fiscal - mostrou-se muito prudente em baixar impostos sem crescimento económico e revelando um pouco mais da ideia:

É importante que os Portugueses tenham noção que a margem para reduzir impostos nos próximos anos depende sobretudo do crescimento da riqueza gerado pelo país em combinação com uma política de racionalização da despesa pública que possa contribuir para o alívio, merecido e desejado, da carga fiscal na senda da tendência das finanças públicas modernas traduzida na transição da função redistributiva do Estado da vertente da receita para a despesa. 

Na verdade, como vê, a ideia é outra. 

É que quem diz "intervencionismo do Estado" ou "política de racionalização da despesa pública" diz muito mais do que baixar impostos. Diz privatização de 40% do mercado financeiro português detido pela Caixa Geral de Depósitos; diz capturar parte das contribuições sociais para a Segurança Social (através de uma reforma nas pensões de velhice); diz esvaziar a provisão pública da Saúde e da Educação, etc., etc., e transformar esse esvaziamento em área de negócio. 

É todo um programa que ainda está por aplicar, apesar das sucessivas vagas de investidas desde os anos 90 de Cavaco Silva, passando pelo mandato de Guterres (que privatizou mais do que Cavaco Silva) até desembocar na Paf de Passos Coelho e Portas de mãos dadas com a troica do FMI, Comissão Europeia e BCE.

Quando se diz "choque fiscal", a ideia é outra. Mas essa ideia raramente é dita. E deveria sê-lo, em nome da transparência política e da transparência entre políticos e negócios; em nome da verdade e da coragem política de se assumir as ideias junto da população eleitora que, por ora, beneficia do papel do Estado Social.

quarta-feira, 9 de março de 2022

Plana, plano


No seguimento desta intervenção, lembrei-me de Capital e Ideologia, onde Thomas Piketty, em linha com anteriores trabalhos, faz uma detalhada análise da “grande pilhagem de activos públicos” associada à regressiva restauração capitalista da década de noventa na Rússia. Além disso, “nenhum país foi tão longe na demolição da ideia de progressividade fiscal” como a Rússia da taxa plana de 13%. 

Como sublinha Piketty, a “economia mista” chinesa, por contraste, mantendo o controlo público dos sectores estratégicos, da banca à energia, não criou o mesmo tipo de oligarquia rentista no seio de uma sociedade onde a maioria conhece condições de vida duradouramente estagnadas. Na China, os rendimentos dos 50% de baixo crescem realmente há várias décadas pelo menos 7% ao ano.

Se é verdade que em França não é preciso ser marxista para identificar estes padrões, em Portugal pelos vistos é preciso ser marxista-leninista para o fazer...

Hoje: Debate Práxis

«O artigo 54º da Constituição determina que “É direito dos trabalhadores criarem comissões de trabalhadores para defesa dos seus interesses e intervenção democrática na vida da empresa”. As comissões de trabalhadores são um direito e uma conquista da democracia e do 25 de Abril. Têm direitos próprios estabelecidos na Constituição e nas leis laborais; representam todos os trabalhadores da empresa; somam e não subtraem, relativamente às estruturas sindicais, para a conquista de mais democracia nos locais de trabalho.
Propomos uma reflexão colectiva, dirigida principalmente à participação de membros das comissões de trabalhadores, sobre o estado destas organizações, do cumprimento da lei e dos seus direitos nas empresas e sobre os caminhos para o fortalecimento e crescimento desta importante forma de organização dos trabalhadores.
»

Promovido pela Práxis, o debate tem início às 21h00 e realiza-se por videoconferência, podendo ser acompanhado aqui (sem necessidade de inscrição prévia). Com moderação de Rui Moreira (CT da Meo/Altice e Práxis), conta com a participação de Alan Stoleroff (ISCTE), António Monteiro Fernandes (FDUNL), Maximiliano Pereira (CT da Bosch-Braga) e Nuno Ferreira (CT do Turismo do Porto e Norte de Portugal). O encerramento está a cargo de Henrique Sousa (Direção da Práxis).

O que é que tem dado gás aos preços da energia?

 

Nos últimos dias, os preços dos combustíveis e da energia voltaram ao centro do debate público. Depois do aumento significativo registado ao longo do ano passado, os preços dos combustíveis voltaram a subir substancialmente, à semelhança do que aconteceu com o gás natural e a eletricidade.

A invasão russa da Ucrânia e as sanções económicas aplicadas pelos EUA e a União Europeia estão a ter um impacto significativo. Embora a UE ainda não se tenha comprometido a cortar as importações de combustíveis fósseis da Rússia, que representam uma parte substancial do comércio entre os dois blocos, a incerteza em torno destas medidas já tem contribuído para fazer aumentar os preços. Esta 2ª feira, o preço do barril de petróleo (Brent), que serve de referência ao mercado europeu, chegou aos 139,13 dólares, o valor mais alto desde 2008, representando um aumento de 18% face à semana passada.

É preciso olhar para o que determina a evolução dos preços dos combustíveis. O preço da gasolina e do gasóleo nos postos de abastecimento costuma ser atualizado semanalmente e varia de acordo com vários fatores: as cotações internacionais do combustível (denominadas em dólares), a cotação do euro face ao dólar (que determina alterações no poder de compra dos países europeus), a incorporação de biocombustíveis, os custos de logística (transporte, armazenamento, distribuição e comercialização) e os impostos.

A direita encontrou nos impostos o principal motivo para os preços elevados que se praticam neste setor. Além do imposto sobre produtos petrolíferos (ISP), que constitui um valor fixo por litro, paga-se também IVA, que é proporcional (representa 23% do preço global, ou seja, aumenta quando o preço de base aumenta) e ainda uma taxa sobre o carbono, cujo objetivo seria desincentivar o consumo. A redução dos impostos sobre a gasolina e o gasóleo foi uma das bandeiras da IL e do CDS durante a campanha eleitoral e foi o tema escolhido por Luís Montenegro para lançar a sua candidatura à liderança do PSD.

Mas a verdade é que o Governo já tinha aprovado uma redução extraordinária do ISP em outubro de 2021 e os preços continuaram a subir. Se o preço continua a subir bastante num contexto em que os impostos não se alteram, é preciso olhar para outras variáveis. No ano passado, a ENSE – Entidade Nacional para o Setor da Energia – publicou um estudo exaustivo sobre a evolução dos preços dos combustíveis em Portugal e chegou a outra conclusão: o principal fator responsável pela subida acentuada dos preços nos últimos meses tem sido a margem de comercialização das empresas do setor.

Embora os impostos tenham um peso relevante no preço final da gasolina e do gasóleo em Portugal, este não se afasta substancialmente da média da UE. Representam cerca de 60% do preço da gasolina e 55% do gasóleo, face à média europeia de 57% e 52%, respetivamente. Se olharmos para o preço médio de venda de ambos os produtos antes de impostos, Portugal continua a ter um dos mais altos da Europa. E isso está relacionado com as margens das empresas. A ENSE diz que “a margem média anual [em 2020 e 2021] foi superior à média registada em 2019, período anterior à pandemia”. Há todos os indícios da existência de um cartel bastante proveitoso para os seus intervenientes, sobretudo tendo em conta que as quatro maiores empresas detêm uma quota de mercado superior a 80%. A cartelização do setor ficou ainda mais evidente esta semana, quando as três maiores gasolineiras – Galp, Repsol e BP – recusaram explicar porque é que aumentaram os preços dos produtos acima do que estava previsto.

É uma tendência que também se tem verificado a nível global: as sete maiores empresas de energia registaram lucros extraordinários no ano passado. Em vez de os reinvestir na produção ou em aumentos salariais, as empresas têm planos para a recompra das próprias ações em valores recorde, com o objetivo de remunerar os acionistas. Estes resultados reavivaram um debate sobre a possibilidade de se aplicar um imposto sobre lucros extraordinários, que permitisse que uma parte dos ganhos das empresas revertesse para o Estado e pudesse ser utilizada para financiar políticas públicas redistributivas.

O governo português já anunciou medidas de redução da fiscalidade sobre os combustíveis para mitigar os recentes aumentos. No entanto, sem fixar margens máximas de comercialização para as empresas do setor, não há garantia de que a redução de impostos faça baixar os preços. Essa é a medida mais adequada no curto prazo. A médio/longo prazo, torna-se ainda mais clara a necessidade de uma estratégia de investimentos públicos nos transportes coletivos, nas energias renováveis e na eficiência energética dos edifícios, permitindo reduzir o consumo de combustíveis maioritariamente importados e, com isso, melhorar o saldo da balança de pagamentos do país. É difícil descortinar o benefício das privatizações de empresas como a Galp ou a EDP, que deixaram de poder fazer parte de uma estratégia pública de descarbonização e que hoje registam lucros e distribuem dividendos avultados aos acionistas, enquanto propõem pequeníssimos aumentos salariais aos trabalhadores. Depois de termos deixado o setor entregue ao mercado, recuperar o planeamento do Estado é decisivo para a transição energética.
 

terça-feira, 8 de março de 2022

Querido Diário - Há ideias mais velhas que alguns eleitores

Jornal Publico 8/3/2002

Neste dia internacional da Mulher, o jornal Público de 2002 não lhe deu muita importância. 

À excepção de uma chamada de 1ª página para a queixa de uma centena de britânicas sobre os efeitos de uma nova pílula contraceptiva, apenas a secção da Cultura abriu com uma barra sobre o dia, com um artigo sobre maestrinas (Joana Carneiro parecia uma criança). Tudo o resto estava centrado noutro lado. 

Há 20 anos, vivia-se em campanha eleitoral, depois da António Guterres se ter demitido, após a derrota nas eleições autárquicas de 16/12/2001.

"Portugal vive hoje uma situação de pântano político, como foi reconhecido pelo ainda primeiro-ministro António Guterres na noite das eleições autárquicas de 16 de dezembro passado"

Começava assim um artigo de opinião de Miguel Frasquilho - na altura economista-chefe do Grupo Espírito Santo, no qual ingressou em 1996 - em que defendia a necessidade de um "choque fiscal" para fazer aumentar a produtividade do país.

Jornal público 8/3/2002

 

Achava-se que apenas um "choque do lado da oferta poderia tirar o país da situação em que se encontra e retomar a aproximação ao nível de vida médio europeu". Sugeria-se uma descida da tributação e alargamento da base tributária em IRC, incentivos à poupança estável em IRS, a reforma da tributação do sector imobiliário; e a reestruturação dos escalões do IRS. Frasquilho dizia-se - veja-se! - "um adepto do caso irlandês" (!). Onde foi que já se ouviu isso?

Sim, foi há 20 anos, mas parece que estamos a ler um programa do partido IL, como se fosse uma grande novidade. Novidade talvez para quem o elaborou ou para os jovens, mais novos que a idade da ideia, inebriados pela aparente frescura das suas ideias. Mas sim, foi exactamente há 20 anos, que o PSD apresentou esta e outras ideias - como a realização de uma auditoria às contas públicas que reduzisse o "excesso" de despesa pública. Mas nem esta nem a outra política do "choque fiscal" foi levada à prática, dados os seus impactos orçamentais e na vida dos cidadãos, nem nunca a descida fiscal teria a eficácia pretendida, como aliás o mostram diversos estudos, já citados neste blogue. 

Cavaco Silva e António Borges - dois economistas impregnados das ideias neoliberais que de, uma forma ou doutra, marcaram estruturalmente o país com a aplicação dessas ideias, sendo em grande parte responsáveis por estarmos onde estamos  (um pântano, não é o que se diz?) - torciam-se então com essa ideia do "choque fiscal". Talvez fossem um pouco mais sensatos do que alguns novos actores que repetem agora esta velha ideia.

 

Dia Internacional das Mulheres


Neste 8 de Março, recuperemos o espírito de militância que este dia encerra e recordemos as teses do indispensável Feminismo para os 99%: Um Manifesto, de Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser: 

Tese 1 – Uma nova onda feminista está a reinventar a greve.

Tese 2 – O feminismo liberal está falido. Está na altura de virar a página. 

Tese 3 – Precisamos de um feminismo anticapitalista – um feminismo para os 99%.

Tese 4 – Estamos a viver uma crise social em todas as suas vertentes cuja origem é o capitalismo.

Tese 5 – Nas sociedades capitalistas, a opressão de género está alicerçada na subordinação da reprodução social à produção pelo lucro. Queremos inverter esta situação. 

Tese 6 – A violência de género assume muitas formas, todas elas enredadas nas relações sociais capitalistas. É nossa prerrogativa combatê-las a todas. 

Tese 7 – O capitalismo tenta estruturar a sexualidade. Nós queremos libertá-la. 

Tese 8 – O capitalismo nasceu da violência racista e colonial. O feminismo para os 99% é anti-racista e anti-imperialista. 

Tese 9 – Lutando pela reversão da destruição capitalista da Terra, o feminismo para os 99% é ecossocialista. 

Tese 10 – O capitalismo é incompatível com a verdadeira democracia ou com a paz. A nossa resposta é o internacionalismo feminista. 

Tese 11 – O feminismo para os 99% desafia os movimentos radicais a unirem-se numa sublevação anticapitalista conjunta.

Submissas nos querem, rebeldes nos terão.

Entretanto, no país da democracia "liberal"...

Jornal Público, 7/3/2022

Torna-se uma crítica recorrente. 

Magistrados de Direito Laboral - antes mais cientes da desigualdade natural da relação laboral entre trabalhadores e entidades patronais que está na base da protecção legal do lado mais fraco - tornam-se mais sensíveis aos argumentos patronais, assentes na salvaguarda da produtividade da empresa e do bem nacional que daí poderá advir. Os trabalhadores e as condições laborais tornam-se - assim - a variável de ajustamento. E para esse fim, organizações sindicais são tidos como organização de "interesses corporativos", criadores de atrito, um obstáculo ao necessariamente fluido e flexível processo organizativo da empresa, tida como a célula sacrossanta da sociedade.

Como se lê da notícia, a empresa Groundforce - na sequência de um acordo de revisão das tabelas salariais para 2017 - decidiu estabelecer como critério de atribuição de prémios o de o trabalhador ter ou não ter filiação sindical.  Os sindicatos STHA (técnicos de handling), SINTAC (trabalhadores da aviação civil), SQAC (quadros da aviação comercial) e SIMA (indústrias metalúrgicas e afins) queixaram-se à Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), que lhes deu razão e enviou o processo para o Ministério Público que lhes deu razão igualmente. Mas nem tudo correu bem.

segunda-feira, 7 de março de 2022

Trio histórico-ideológico

1. Se é verdade que o historiador Francisco Bethencourt, com quem já polemizei por duas ou três vezes, reconhece o contributo de Lénine para a questão das nacionalidades no período pós-imperial, também é verdade que é demasiado generoso para Woodrow Wilson, quando o compara com Lénine na defesa da autodeterminação dos povos. Sim, tropeça-se logo no início do seu último artigo. No célebre discurso dos 14 pontos, em 1918, o Presidente norte-americano circunscreveu o princípio da autodeterminação basicamente à Europa. O seu racismo segregacionista e o colonialismo dos seus aliados levaram-no a tal, ao contrário de Lénine, sempre muito mais universalista, até porque anti-colonialista e anti-racista. Posições destas levaram precisamente o futuro Ho Chi Minh (nasceu Nguyễn Sinh Cun) a passar de Wilson para Lénine. E pensar que historiadores liberais, como Rui Tavares, preferem Wilson… 

2. Já que estamos na tradição leninista, tive ontem a felicidade de ser um dos milhares e milhares de cidadãos e de cidadãs no Campo Pequeno. Jerónimo de Sousa reafirmou, sublinho a palavra reafirmou, aí: “O PCP não apoia a guerra. Dizer o contrário é uma vergonhosa calúnia. O PCP tem um património inigualável na luta pela paz. O PCP não tem nada a ver com o governo russo e o seu presidente. A opção de classe do PCP é oposta à das forças políticas que governam a Rússia capitalista e dos seus grupos económicos (…) Em nome da guerra está em curso a mais desbragada intolerância e difusão de ódio fascizante, a criminalização do pensamento e de toda e qualquer opinião que questione a ditadura do pensamento único, a instituição da censura, o condicionamento do acesso à informação a limitação de liberdades, direitos e garantias”...

3. Carmo Afonso continua com a coragem de sempre: “É preciso atender às vozes que dizem que os recentes avanços da NATO, em direção à Rússia, concretizados na adesão de novos países vizinhos, contrariaram entendimentos vigentes e que seguravam a paz”. Desde que muito recentemente deixei de comprar o jornal em papel, rompendo com um hábito de mais de trinta anos, que tenho reparado mais no sítio: as crónicas de Carmo Afonso não têm sido lá muito destacadas…

 

domingo, 6 de março de 2022

A nossa energia


Reconhecemos na rede de distribuição uma estrutura essencial para a democratização do sector energético e para a soberania energética. O seu pleno exercício pressupõe a existência de uma potência instalada de energias renováveis que assegure o abastecimento do sistema eléctrico nacional, bem como a incorporação, no domínio público, dos grandes centros electroprodutores e das redes de transporte e distribuição de energia. Entendemos que só uma gestão pública do sistema elétrico nacional, salvaguardando a articulação entre municípios e Estado central, permitirá lançar as bases para uma transição energética justa, encetando a luta por um direito universal à energia.

Excerto final do artigo Distribuição de energia eléctrica em Portugal: que papel para os municípios?, escrito em coautoria com Carla Prino. O resto pode ser lido no Le Monde diplomatique - edição portuguesa em papel ou no sítio do jornal, se forem assinantes. Sejam assinantes.

sábado, 5 de março de 2022

Interpretar para transformar


Compreender as origens deste ataque implica acompanhar as relações internacionais, a política externa dos países, os movimentos geopolíticos, geoeconómicos e geoestratégicos. Exige acesso a fontes plurais e o seu confronto, e é incompatível com visões do mundo a preto e branco, povoadas por agentes do bem e agentes do mal. Sem esse esforço não se esclarecem nem os mecanismos dos poderes, dos interesses, das relações de forças e das alianças, nem as suas hesitações e disputas internas. Mas o jornalismo internacional, considerado caro e que «não vende», é há muito desvalorizado pela generalidade dos media em Portugal, tendo perdido qualidade, profundidade e pluralidade. E a actualidade política nacional quase não trata, nem questiona, governos e partidos sobre política externa e relações internacionais. É por isso que as relações internacionais não são algo que «acontece lá longe». 

A generalidade dos media portugueses, apanhados de surpresa, passaram do silêncio habitual sobre estes temas para o metralhar de certezas absolutas, intolerantes à divergência. Tão superficiais quanto unilaterais, trocaram a crítica pela manipulação emocional e esconderam ignorância com arrogância. Pode ser cómodo para os poderes, que não se vêem questionados, mas cria comunidades sem memória e sem informação, manipuláveis por qualquer poder.

Excertos do editorial de Sandra Monteiro no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Março. Pode ser lido na íntegra no sítio do jornal. Um número com muito para ler e pensar, em contraste com o declínio editorial da imprensa dominante que aqui temos assinalado. 


Como se estivéssemos nos anos noventa do século passado


«"Está na altura de entrar em modo emergência" escreveu António Guterres numa mensagem, conhecida esta segunda-feira numa conferência organizada em Lisboa, sobre a necessidade de reduzir as emissões carbónicas. O secretário-geral das Nações Unidas sublinhou estar previsto que as emissões globais aumentem 14% durante a década e apelou a "uma avalanche de ação".
A notícia que li não refere se o presidente da autarquia da capital estava presente na conferência do Clube de Lisboa, onde a mensagem foi ouvida, mas seria interessante saber, ao fim de quatro meses em funções, que tem a dizer sobre a matéria - já que não se lhe conhece qualquer plano nesse sentido.
Aliás, minto: os planos que conhecemos, anunciados no seu programa eleitoral e dos quais não há notícia de ter desistido, vão despudoradamente no sentido de contribuir para que se use mais o transporte individual: cortar para metade o preço do estacionamento para os residentes, tornando-o inclusive grátis nos primeiros 20 minutos, e encher a cidade de silos automóveis. Tudo medidas que incentivam não só a circulação automóvel como até a aquisição dos mesmos (estacionamento fácil é um óbvio incentivo).
Para além disso, como tornou claro há meia dúzia de dias, em discurso na Câmara do Comércio Americana, um dos seus principais objetivos é, tal qual como se estivéssemos nos anos noventa do século passado, "escoar trânsito" - nomeadamente no centro da cidade e num local no qual o seu antecessor tinha planeado situar uma das fronteiras de uma zona de emissões reduzidas (ZER).
(...) Tudo ao contrário do que era suposto. E a demonstrar que a cidade dos 15 minutos de Carlos Moedas se refere afinal ao tempo que levou a pensar nela
».

Fernanda Câncio, A Câmara dos 15 minutos

Adenda: Confirma-se entretanto que Moedas vai mesmo pôr na gaveta o plano do seu antecessor, Fernando Medina, para tirar carros da Baixa de Lisboa. E como se não bastasse, o atual presidente conseguiu ainda ver aprovada a promessa eleitoral de reduzir o preço do estacionamento para os residentes na capital, suscitando fortes críticas dos especialistas em mobilidade. «Não conheço nenhuma cidade europeia que tenha uma medida deste género», declarou um urbanista ao Expresso.

sexta-feira, 4 de março de 2022

Condenar a invasão e contextualizar o passado e o futuro


«A invasão da Ucrânia é ilegal e deve ser condenada. (...) Como e porquê chegámos aqui? Há 30 anos a Rússia (então União Soviética) saía derrotada da Guerra Fria, desmembrava-se, abria as suas portas ao investimento ocidental, desmantelava o Pacto de Varsóvia, o correspondente soviético da NATO, os países do Leste Europeu emergiam da subordinação soviética e prometiam democracias liberais numa vasta área da Europa. (…) Com o fim da Guerra Fria, os EUA sentiram-se donos do mundo, um mundo finalmente unipolar. (…) As ideias de correlação de forças e de equilíbrio de poderes desapareceram do seu vocabulário.»

Boaventura de Sousa Santos, Como chegámos aqui?

«Não é admissível o silêncio sobre a invasão militar da Ucrânia pela Rússia, a maior operação bélica na Europa desde a II Guerra Mundial. Por mais previsível que fosse, não deixa de ser uma agressão, em grosseira violação do direito internacional e da Carta das Nações Unidas, que só pode merecer condenação geral.
Só é de lamentar que a Ucrânia e a Nato tenham fornecido pretextos à Rússia para esta ofensiva, desde o abandono do estatuto de neutralidade ucraniana (que tinha sido condição explícita do reconhecimento da independência ucraniana por Moscovo), logo substituída pelo pedido de adesão à Nato (uma óbvia provocação à Rússia), até ao incumprimento do acordo de Minsk de 2015 sobre a autonomia dos territórios russófonos do leste da Ucrânia (que Kiev manteve sob constante assédio militar). Quando se mora ao lado de um gigante ressentido, convém não lhe dar pretextos para a agressão.
»

Vital Moreira, Contra a invasão da Ucrânia

«Do lado ocidental, depois da simpatia inicial por Gorby, ganhou a tese de que a Rússia tinha perdido a guerra-fria, podendo doravante ser ignorada. Apesar das promessas de que a reunificação da Alemanha não implicaria o alargamento para leste da NATO, a verdade é que esta se efectuou em duas fases principais (1999 e 2004), integrando uma dezena de aliados do ex-Pacto de Varsóvia, e mesmo ex-repúblicas soviéticas, como foi o caso dos Estados bálticos. (...) A breve guerra desse ano [2008] na Geórgia, e a anexação da Crimeia em 2014, mostraram que Putin tinha falado a sério em 2007: a Rússia traçou uma linha vermelha à expansão de uma aliança militar, que considerava fazer perigar a sua segurança nacional. O desastrado ativismo bélico da NATO e dos EUA nos últimos 20 anos, num proselitismo democrático coberto de sangue e ruínas, no Afeganistão, Iraque ou Líbia, ajudou a consolidar as reservas de Moscovo.»

Viriato Soromenho Marques, Derrota mútua assegurada

«Que fique bem claro, antes de começarem os disparates nas “redes sociais”, que eu condeno sem ambiguidades a invasão da Ucrânia, por razões que são mais do que evidentes. Putin e a nostalgia imperial são muito perigosos numa Europa sem defesa a não ser os americanos. Acresce que, por muito dividida que esteja a Ucrânia, a sua independência é fundamental para conter a Rússia e manter a face do direito internacional, que, mesmo que seja apenas a face, é importante para as democracias.
Mas a obrigação para quem tem uma escrita pública é perceber que a complexidade da história pode e deve ser compreendida, e que não olhar para as coisas a preto e branco não impede que se tenha posição, bem pelo contrário. Nestes tempos de enorme simplificação, em que o conforto do preto e branco domina as posições e induz ao clubismo político, nunca quis deixar de ver as cores, ou seja, tentar perceber a complexidade de qualquer humano assunto. Isso não ajuda a legitimar Putin, mas combate-lo com mais eficácia.
»

José Pacheco Pereira, Olhar as cores, decidir a preto e branco

«É preciso condenar a invasão desencadeada por Putin e é preciso contextualizar o passado e o futuro da presente situação. As duas coisas não são incompatíveis e a segunda não é menos necessária do que a primeira. De outro modo a escalada arrisca-se a ser imparável. (...) A paz não é a única via para acabar com uma guerra, mas é a menos dolorosa e mais segura das vias. Precisamos de indignação ética e de racionalidade política. É preciso interromper a espiral de parada e resposta, o que exige imaginação e energia diplomática. É demasiado cedo para desistir da paz e quero apenas recordar que o potencial de destruição em jogo é incomparavelmente maior ao de vésperas da II Guerra Mundial. A União Europeia não deve confundir-se com a Nato.»

Zé Neves (facebook)

Ironias da história


Uma ironia política pouco sublinhada deste momento histórico é a aliança dos apoiantes do PCP com destacados militares afetos ao Grupo dos Nove e/ou hoje conotados como próximos do Partido Socialista. 

É notável o número de partilhas que apoiantes do PCP fazem das posições de militares como Carlos Matos Gomes e Rodrigo Sousa e Castro. 

Estão juntos na necessidade de contextualização histórica da guerra e na necessidade do diálogo para a sua superação. É que neste conflito são os militares, de quase todas as afinidades políticas, a sublinhar que defender uma guerra aberta com uma potência nuclear só pode resultar de impulsividade emocional por oposição à frieza estratégica. 

Uns como outros têm sido vítimas das mais rasteiras infâmias. Dizer "condenamos mas é preciso ver que (...)" ainda não significa o mesmo que dizer "apoiamos (...)". A política baseada em processos de intenção é desinformação. Mesmo que discordemos profundamente, como eu discordo, da forma como o PCP coloca a expansão da NATO como o elo primeiro de uma cadeia causal que desemboca na invasão russa. Nunca a justificando ou apoiando, é preciso sublinhar. 

São ironias da história que eu não esperava viver para contar. Mas que ilustram bem que a rejeição de uma investida bélica para resolver o problema está longe de ser o resultado imediato de uma visão geopolítica desculpabilizadora de Putin - como alguns têm o atrevimento de insinuar - mas antes de uma análise fria do problema que, em última análise, nos poupará sempre muitas vidas civis e sofrimento humano.


Da responsabilidade dos EUA na crise na Ucrânia

Penso que todos os problemas neste caso começaram realmente em Abril de 2008, na Cimeira da NATO em Bucareste, onde foi emitida uma declaração que dizia que a Ucrânia e a Geórgia passariam a fazer parte da NATO. Os russos deixaram inequivocamente claro na altura que encaravam isto como uma ameaça existencial e traçaram uma linha na areia. No entanto, o que aconteceu com o passar do tempo é que avançámos no sentido de incluir a Ucrânia no Ocidente para fazer da Ucrânia um baluarte ocidental na fronteira da Rússia. Claro que isto inclui mais do que apenas a expansão da NATO. A expansão da NATO é o coração da estratégia, mas inclui também a expansão da UE, e inclui transformar a Ucrânia numa democracia liberal pró-americana, e, de uma perspetiva russa, esta é uma ameaça existencial. (...) Quando se é um país como a Ucrânia e se vive ao lado de uma grande potência como a Rússia, é preciso prestar muita atenção ao que os russos pensam, porque se pegarmos num pau e lho espetarmos nos olhos, eles vão retaliar. Os Estados do hemisfério ocidental compreendem isto muito bem no que diz respeito aos Estados Unidos.

Excerto da entrevista “Porque é que John Mearsheimer culpa os EUA pela crise na Ucrânia?” de Isaac Chotiner a John Mearsheimer.

A Rússia quer guerra: vejam como colocam o seu país tão próximo das nossas bases militares.

Para o sucessor de Trump, Biden, como para Obama-Clinton, a Rússia ofereceu-se, domestica e internacionalmente, como um conveniente arqui-inimigo: pequeno economicamente, mas fácil de retratar como grande por causa das suas armas nucleares. Após o desastre mediático da retirada de Biden do Afeganistão, mostrar força em relação à Rússia parecia uma forma segura de mostrar o músculo americano, forçando os republicanos, durante o período que antecedeu as críticas eleições intercalares, a unirem-se atrás de Biden como o líder de um "Mundo Livre" ressuscitado. Washington voltou-se como era de se esperar para a diplomacia do megafone e recusou categoricamente qualquer negociação sobre a expansão da Nato. Para Putin, tendo ido tão longe como tinha ido, a escolha foi fortemente colocada entre a escalada e a capitulação. Foi nesta altura que o método se transformou em loucura e que começou a assassina e estrategicamente desastrosa invasão russa de terras da Ucrânia. (...)
Assim, a unidade ocidental estava de volta, saudada pelos aplausos jubilosos dos comentadores locais, gratos pelo regresso das certezas transatlânticas da Guerra Fria. A perspetiva de entrar em batalha em aliança com o aparelho militar mais formidável da história mundial apagou instantaneamente as memórias de alguns meses antes, quando os EUA abandonaram com poucos avisos, não só o Afeganistão, mas também as tropas auxiliares fornecidas pelos seus aliados da NATO em apoio àquela, outrora favorecida, atividade americana, "construção de nação". Não importa também a apropriação por Biden do grosso das reservas do banco central afegão, no valor de 7,5 mil milhões de dólares, para distribuição às pessoas afetadas pelo 11 de Setembro (e seus advogados), enquanto o Afeganistão sofre uma fome a nível nacional. Também se esquecem os destroços deixados pelas recentes intervenções americanas na Somália, Iraque, Síria, Líbia - a destruição total, seguida de um abandono apressado, de países e regiões inteiras.
(...) Neste contexto, o orçamento especial de 100 mil milhões de euros, anunciado alguns dias após a guerra pelo governo Scholz e dedicado ao cumprimento da promessa, que remonta a 2001, de gastar 2% do PIB da Alemanha em armas, parece um sacrifício ritual para apaziguar um Deus zangado que se teme que possa abandonar os seus crentes menos verdadeiros. Além disso, todo o exército alemão está sob o comando da NATO, ou seja, do Pentágono, pelo que as novas armas irão aumentar o poder de fogo da NATO, e não da Alemanha. Tecnologicamente, serão concebidas para serem utilizadas em todo o mundo, em "missões" como o Afeganistão - ou, muito provavelmente, nos arredores da China, para ajudar os EUA no seu confronto emergente no Mar do Sul da China. Não houve qualquer debate no Bundestag sobre exactamente que novas "capacidades" seriam necessárias, ou para que serão utilizadas.

Excertos do texto, “Nevoeiro de guerra”, de Wolfgang Streeck.

Ao contrário do que parece ser o credo generalizado da imprensa indígena, a invasão da Ucrânia pode mesmo ser condenada sem legitimar o imperialismo dos EUA e da UE.

Entretanto, a União Europeia, fornecendo armas à Ucrânia e impedindo o banco central da Rússia, num ato sem precedentes históricos, de aceder às suas reservas confiadas a bancos europeus, tornou-se parte do conflito e envolveu todos os Estados membros na guerra.

Portugal está em guerra com a Rússia, um país armado com um arsenal nuclear.

Governo e Presidente da República foram consultados? O país foi ouvido? Ou já não somos um país? A última vez que passei os olhos pela Constituição da República Portuguesa a declaração de guerra a um país estrangeiro não era atributo de Josep Borrell.

E a imprensa? Porque não faz estas perguntas? Está demasiado ocupada a cercar o PC e o BE por, cada um à sua maneira (o outro, aqui), se recusar a engrossar a claque de apoio à Nato e à sua sucursal europeia? Tempos perigosos.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Começou

Jornal Público, 3/3/2022

Manuel Carvalho, director do jornal Público, assinou um editorial que, creio, mais tarde achará excessivo. Todos andamos nervosos com a guerra e com as suas implicações, mas, de repente, acabamos por participar nessas consequências.

O primeiro parágrafo parece zangado: 

"A invasão da Ucrânia expôs com crueza a dificuldade de o PCP fazer parte de qualquer solução governativa numa democracia europeia". Mais adiante continua: "Os comunistas nunca esconderam a sua aversão à democracia liberal [muito se gosta de usar palavras na moda!], à União Europeia e, claro está à NATO. Como nunca esconderam a sua admiração velada por ditadores, como Nicolas Maduro, ou regimes autoritários como a China".(...) Quando, como agora, é preciso escolher [!] entre autocratas e democracias [!] o verniz do PCP estala e a sua essência emerge". "O PCP estava e continua na margem dos valores ou da história".

Tudo isto é dito sobre a votação no Parlamento Europeu da resolução sobre a invasão da Ucrânia. Ora, o Manuel deveria ter lido com atenção a dita resolução que tem 20 (!) considerandos e 46 (!) pontos de resolução. Quando se quer unir, reduz-se as arestas; quando se quer demarcar, acentuam-se as diferenças. Qualquer esforço sério, teria separado as propostas a aprovar. Uma declaração de princípios, uma proposta de acção. Mas não. Tudo parece ter sido embruhado com uma intenção clara: à pala de uma condenação consensual à invasão - sim, o PCP condena a invasão! - embrulhar e fazer passar uma "declaração de guerra" nada consensual, ao fortalecer-se militarmente a própria NATO, numa iniciativa belicista que, a fazer o seu caminho face a uma invasão militar, conduzirá tudo à desgraça.

Ora, em vez de discutir isso, o Manuel retirou a conclusão primária - o PCP não condena a invasão! Talvez o PCP devesse dar mais atenção à forma como se afirma publicamente. Mas nada permite ao Manuel Carvalho extrapolar daquela forma. E assim deixou-se rebolar por essa rampa inclinada, no desvario assente numa base errada, embrulhando-se com toda a direita em ebulição.

Amizade


Em circunstâncias normais não iria de Coimbra a Lisboa para assistir a este comício num Domingo, mas as circunstâncias não são normais e os amigos são para as ocasiões. E a ocasião é uma campanha anti-comunista particularmente viciosa, com muita mentira à mistura. Atacam sempre os comunistas em primeiro lugar.

Atentem, só para dar um exemplo entre mil, no perdócio da Sonae (os lucros medem-se em influência político-ideológica no que a este tipo de jornal diz respeito): o editorial do inefável Manuel Carvalho no Público de hoje é a versão resumida em papel da série Glória: ficção anti-comunista, com mentiras à mistura.  

Num ponto, no entanto, posso estar de acordo com Carvalho, defensor da democracia dita liberal: tal contradição é coisa que não deve assistir a quem é democrata, sem o liberal, que nem sequer está na nossa Constituição, e luta pela igualdade cidadã na economia, seja comunista ou socialista. Democracia liberal é a democracia limitada pelo capitalismo cada vez mais brutal. A comunicação social dominante, controlada por guerreiros de sofá neste rectângulo, é uma das mais decadentes expressões do sistema realmente existente.

O liberalismo, relembremo-lo, só muito tardia e relutantemente na sua história se tornou democrata e mesmo assim procurou sempre institucionalizar constrangimentos internacionais para esvaziar na teoria e na prática a democracia. A UE é um poderoso exemplo desse esforço bem-sucedido. Além disso, retórica à parte, o liberalismo sempre foi perigosamente armado e imperialista. Olhem para a história internacional dos EUA e da sua OTAN.

   

quarta-feira, 2 de março de 2022

Notícias sobre o fim do mundo


A contribuição do Grupo de Trabalho II para o 6º Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) foi certeiramente descrita por António Guterres como “um atlas do sofrimento humano”. 

Note-se que o IPCC tem sido amplamente criticado pela sua cautela e pelo conservadorismo das suas projeções. Portanto, quando lemos, no sumário executivo, que "a evidência científica cumulativa é inequívoca: as alterações climáticas são uma ameaça ao bem-estar humano e à saúde planetária", somos levados a acreditar que a realidade pode ser bem pior.

Tem de ser possível superar o capitalismo, uma vez que o fim do mundo já é perfeitamente imaginável, parafraseando, com mais otimismo, Fredric Jameson.

Leituras relativistas e absolutas

JN, 28/2/2022


Frise-se as opiniões de Mário Soares em 2008. Ao longo da sua vida política, Soares começou por considerar o "Atlântico" como um "lago americano (da América de Foster Dulles e de McCarthy, é bom não esquecer!)" (Portugal Amordaçado, 1972, pag.200) e desde o eclodir da Revolução elogiou o papel da NATO no "mundo ocidental", por a considerar uma "aliança defensiva", com cujos membros Portugal "comunga (e concorda) dos valores políticos e morais de liberdade e da defesa dos Direitos do Homem que são valores ocidentais" (DN, 11/5/1984). A sua opinião em 2008 é, por isso, ainda mais sintomática.

Já Rui Sá, como é sabido, é dirigente comunista e o líder municipal da CDU na Assembleia Municipal do Porto.

terça-feira, 1 de março de 2022

Trio polémico


1. Tendo em conta os hábitos do Público, se Carmo Afonso continua a escrever assim arrisca-se a deixar de ser colunista mais cedo do que tarde: “As posições assumidas pelo PCP foram o pretexto para uma manifestação de anticomunismo digna da Guerra Fria, período em que os anticomunistas afirmam que o partido está. O regresso à história está ao virar da esquina”. Carmo Afonso continuará a escrever assim, estou certo. Do que já não estou certo é da necessidade de reinvenção da esquerda: soberanismo anti-imperialista, centrado na economia política, chega e sobra, cuidando de não reduzir a política externa à política interna.

2. Por contraste, Rui Tavares regressa ao Público com a mesma conversa equivocada de sempre: a UE, uma expressão do imperialismo, onde a lógica de classe do capital financeiro do centro europeu e a lógica geopolítica das grandes potências se articulam, seria afinal um obstáculo a um neoimperialismo que iria da Rússia à China. A posição razoável da República Popular deve ser sublinhada neste contexto. A propaganda europeísta está objectivamente ao serviço do ordoliberalismo armado.

3. Destacados académicos, como Rui Bebiano, continuam a insistir na mentira sobre o apoio do PCP à invasão de Putin. O historiador Bebiano, em linha com a falta de rigor sobre Lénine, insiste desta feita numa imaginária grande influência do PCP nas redes sociais, talvez para dar dignidade ao seu anti-comunismo nada frontal, até porque sempre sem nomes.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Declínio editorial violento


Na esteira das mentiras sobre a Festa do Avante, que incluíram uma capa falsa do New York Times em pleno jornal da noite, o grupo Impresa prossegue com a cada vez mais violenta campanha anti-comunista, legitimando o vandalismo. 

As mentiras novas não resistem, uma vez mais, a uma breve passagem pelo site do PCP. 

Neste mundo do avesso, estes produtores de lixo editorial são subsidiados pelo Estado. Deviam mas é ser taxados.


Chegou a hora de negociar


A Rússia até pode conquistar Kiev e outras cidades à custa de um banho de sangue, mas não vai conseguir instalar na Ucrânia um governo fantoche. Talvez para surpresa de Putin, a feroz resistência que a Rússia está a enfrentar mostra que a Ucrânia não será uma nova Bielorrússia. 

 Chegou a hora de negociar. Se a Ucrânia admitir o estatuto da Finlândia, o da neutralidade militar fora da NATO, a Rússia terá conseguido o que sempre quis. 

Numa negociação que pare esta tragédia, as partes terão de ceder em alguma coisa importante para que o acordo seja duradouro. O ressentimento anti-Rússia, esse ficará para sempre, será transmitido de geração em geração e será o cimento do patriotismo dos ucranianos democratas, qualquer que seja a sua língua. 

Oxalá não demorem muito a entender-se porque uma guerra atómica é um risco que não podemos admitir.

A habitação como ativo estratégico nacional


aqui e aqui abordamos a crescente centralidade do património imobiliário na reprodução de desigualdades. Esta semana saiu um estudo, patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian, que defende a mobilização do Património das famílias como activo estratégico nacional

A proposta consiste em “[o]lhar para a economia com o foco no património”, o que implica, por um lado, “valorizar a poupança das famílias portuguesas a médio e longo prazo”, e por outro, “rentabilizar e utilizar de forma eficaz a poupança interna como alavanca do crescimento”.

Com três quartos das famílias proprietárias da residência familiar, que é o principal e mais valioso ativo que detêm, não é de estranhar que o património das famílias portuguesas esteja no centro das atenções. Em 2019, em termos líquidos (isto é, deduzida a dívida), a riqueza das famílias ascendia a 686 000 milhões de euros, dos quais 413 000 milhões em ativos imobiliários. Este montante corresponde a 60% do seu património total, a 283% do rendimento disponível e 205% do PIB. Um montante muito significativo. 

Num contexto de austeridade orçamental permanente, o património imobiliário das famílias adquire enorme relevância do ponto de vista económico e social. Como o estudo reconhece, “quando os preços das casas desvalorizam, 3⁄4 dos portugueses empobrecem, ao invés, quando se valorizam, toda a economia nacional beneficia”. 

Resultado de uma política de habitação centrada no apoio à compra de casa própria a crédito, o relevante peso da riqueza patrimonial das famílias adquire importância estratégica, quer pelo seu efeito amortecedor em contexto de crise, quer pelo seu papel de estímulo económico. Como o estudo esclarece: 

“Em situações de crise, a poupança imobiliária pode funcionar como ‘amortecedor de último recurso’, como ‘almofada de reserva’, que se pode hipotecar ou transacionar, mitigando as consequências económicas, sociais e políticas das crises. Ao invés, em períodos de expansão, atua como ‘alavanca’ do crescimento, financiando directamente o investimento das famílias ou, indirectamente, como colateral para potenciar a expansão do crédito.” 

Se a propriedade imobiliária sempre desempenhou estas funções, há agora uma mudança estrutural que importa sublinhar. Se, até à crise financeira, o crédito à habitação sustentou um modelo de keynesianismo privatizado, estimulando a economia por via dos efeitos sobre os setores da construção e imobiliário, o crescimento da propriedade residencial ao longo de décadas permite agora instituir um brutalmente desigual regime de bem-estar patrimonial privado, segundo o qual as famílias recorrem ao seu património para lidarem com o desemprego, a quebra de rendimentos e outras contingências pessoais e sociais perante a retração do Estado Providência. 

Mas não haja ilusões. Tal não significa a demissão do Estado. Este é convocado para garantir a rentabilização e valorização do património imobiliário, como a sua ‘monetarização’, isto é, a possibilidade de este gerar “um aumento efetivo e sustentado de rendimento das famílias proprietárias sem implicar a venda do ativo”. Como tudo isto se poderá operacionalizar não é explicitado no estudo, mas certamente passará por novos e mais engenhosos produtos financeiros. Aposto que não tardará que outro estudo nos venha esclarecer a este respeito. 

Já não será tão expectável que venhamos saber o que fazer quando, de crise em crise, a ‘almofada patrimonial’ das famílias mais vulneráveis for encolhendo. Tão pouco se poderá esperar que venhamos saber que ‘almofada’ caberá ao quarto das famílias que não dispõe de património imobiliário para se proteger neste regime de bem-estar patrimonial em construção ao mesmo tempo que enfrenta custos habitacionais acrescidos.

A economia política das sanções à Rússia

 

Não tinham passado muitas horas desde o início da invasão da Ucrânia pelo exército russo quando os países ocidentais aplicaram as primeiras sanções económicas à Rússia. As sanções têm sido uma das armas mais utilizadas para responder a conflitos nos últimos anos e os países têm-nas usado como forma de tomar uma posição de força. É essa que parece ser, para já, a estratégia dos países do Ocidente na disputa com a Rússia. No entanto, há alguns motivos para termos dúvidas acerca da eficácia das atuais sanções.

O primeiro motivo prende-se com a possível resistência da economia russa. Nos últimos anos, as autoridades russas parecem ter levado a cabo uma estratégia de diversificação das suas reservas financeiras. Além de terem reduzido a dependência de reservas em dólares norte-americanos, acumularam reservas consideráveis de ouro durante este período e parecem ter-se preparado para aguentar a pressão, pelo menos de forma temporária. Teremos de aguardar para ver a eficácia das últimas medidas anunciadas, como a exclusão de alguns bancos russos do sistema SWIFT, que permite efetuar transações rápidas e eficientes entre instituições financeiras de todo o mundo. As medidas deste tipo arriscam-se a afetar mais a generalidade da população russa do que a sua elite.

O segundo motivo está relacionado com as dificuldades que os países ocidentais – e a União Europeia em particular – têm sentido para cortar relações económicas com a Rússia. A economia russa é fornecedora de 47% das importações de carvão da UE, 41% das de gás natural e 27% das de petróleo. A dependência energética dos países da UE face à Rússia, em parte resultante das limitações à política industrial impostas pela própria União aos Estados-Membros, torna difícil aplicar sanções que afetem os mercados da energia, que correspondem a uma parte importante das exportações russas. Há uma certa ironia nesta situação: as regras de concorrência europeias que retiram (ou restringem fortemente) a maioria dos instrumentos de política industrial, como a definição de tarifas aduaneiras, o controlo público de empresas estratégicas ou as compras públicas, impedem a promoção das indústrias domésticas e acabam por deixar os países dependentes de cadeias de distribuição globais, com as consequências que se conhecem.

O último motivo é também o mais revelador. A aplicação de sanções às elites de um determinado país passa, entre outras medidas, pelo congelamento dos ativos que estes detêm no estrangeiro. Os países do Ocidente anunciaram rapidamente que aplicariam este tipo de sanções a Vladimir Putin e ao ministro dos assuntos estrangeiros, Sergei Lavrov. Só que a implementação desta medida pode ser mais difícil do que parece, sobretudo se tivermos em conta a distribuição geográfica dos ativos detidos pela elite russa. Um estudo de Gabriel Zucman, diretor do Observatório Fiscal da UE, e de dois co-autores conclui que a Rússia é o 4º país do mundo com maior percentagem da sua riqueza em offshores. Sem grande surpresa, estes movimentos ocorrem sobretudo entre os mais ricos do país: mais de metade do rendimento dos 0,01% mais ricos do país está em paraísos fiscais.

A identificação do paradeiro da riqueza implicaria a implementação de um sistema de registo financeiro internacional que permitisse saber quem detém que ativos em cada território, como defende o economista Thomas Piketty. De acordo com esta proposta, as autoridades públicas passariam a controlar as centrais de depósitos que registam os ativos e os seus proprietários e que hoje são privadas. Seria uma forma de garantir a eficácia de sanções direcionadas para as oligarquias e, acima de tudo, de permitir um combate sério à lavagem de dinheiro e à evasão e elisão fiscais.

O problema é que esta medida choca com os interesses dos mais ricos nos países ocidentais. Porquê? Porque as elites russas não são as únicas a desviar boa parte da sua riqueza para offshores para escapar aos impostos e ao escrutínio das autoridades. Piketty explica-o de forma sucinta: “As elites ocidentais temem que a transparência acabe por prejudicá-las. É uma das principais contradições dos nossos tempos.” O economista diz que tanto a Rússia como a União Europeia ou os EUA “têm um sistema legal, fiscal e político cada vez mais favorável às grandes fortunas” e que a origem da riqueza do 1% do topo nestes países não é assim tão diferente. Zucman é ainda mais claro: "O problema dos mega-iates e das contas na Suíça dos bilionários russos é que são incrivelmente parecidos com os mega-iates e as contas na Suíça dos nossos bilionários". E é isso que explica a relutância em tomar medidas que, no fim do dia, colocariam em causa esse sistema.

Os sucessivos escândalos mediáticos em torno dos paraísos fiscais não foram suficientes para que os governos questionassem o regime de livre circulação de capitais. Desta vez, é uma guerra que o traz de volta ao debate. Será suficiente?

P.S.: A defesa da paz e da autodeterminação faz-se sem transigências. Solidariedade com o povo ucraniano. Não à guerra e aos complexos militares que a promovem.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Bem-vindas ao Capitaloceno



Em 2011, a revista The Economist afirmava, em título de capa: «Welcome to the Anthropocene» (“Bem-vindos ao Antropoceno”). O termo “Antropoceno”, já aqui oportunamente introduzido e problematizado, foi cunhado por Paul Crutzen e Eugene Stoermer, em 2000, e procurava traduzir o papel central da espécie humana na geologia e na ecologia, particularmente desde o final do século XVIII – momento a partir do qual, segundo os autores, os efeitos das atividades humanas no sistema terrestre se tornaram por demais evidentes, o que justificaria a inauguração de uma nova época geológica. 

O conceito popularizou-se nas décadas seguintes – acompanhando o aceleramento e a intensificação das alterações climáticas – e extravasou, por completo, o foro restrito da Geologia. Embora seja muitas vezes apresentado como tal, o Antropoceno não delimita, oficialmente, a presente época geológica. Porém, mais importante do que a escala de tempo geológico, são as escalas do tempo (e do espaço) políticos. E, no que à política diz respeito, o Antropoceno é uma ideologia de pleno direito, particularmente no atual contexto de crise climática. 

A declaração do início do Antropoceno, entusiasticamente reproduzida pela The Economist, fixa um determinado curso da história, impulsionando e legitimando certas trajetórias políticas e económicas. Senão, vejamos: a humanidade é colocada no centro do problema e da solução, sendo entendida e, sobretudo, socialmente construída (qual profecia autorrealizável) enquanto ator coletivo, uno e indivisível. Fabrica-se, assim, uma narrativa simplista, mas linear e de fácil adesão: “A humanidade é responsável pelas alterações climáticas, logo, cada pessoa tem de fazer a sua parte para as combater”. 

Esta diluição das responsabilidades pelo conjunto da humanidade funde-se com uma culpabilização individual que se deve traduzir em ação, também ela individual, com uma especial predileção pela escala local. Este vaivém de escalas, contido no slogan desgastado “pensar global, agir local”, serve, com grande eficácia, um capitalismo que começa a maquilhar-se em tons de verde. A atomização dos indivíduos – distraídos pelo logro do consumo “verde” –, o consequente desencorajamento da ação coletiva, ou ainda a (conveniente) ocultação do papel do Estado, retiram as alterações climáticas da esfera política. E as alterações climáticas são, acima de tudo, uma questão política. 

A “humanidade”, interpretada como um todo monolítico e a-histórico, constitui uma noção perigosamente difusa e abstrata, que naturaliza as desigualdades inscritas nas relações de poder e de produção em que assenta o sistema capitalista. Com efeito, o intervalo geológico correspondente ao Antropoceno, principalmente desde o final da 2ª Guerra Mundial, coincide com o período de maior expansão do capitalismo. Para lá da relação da espécie humana com o sistema terrestre, o Antropoceno oculta a relação insustentável (e, sublinhe-se, imoral) que algumas classes sociais (em diferentes geografias) estabeleceram com o sistema terrestre através do capitalismo. Revela-se imprescindível, por isso, recuperar a interpelação de Jason Moore: estaremos mesmo a viver no Antropoceno – a “idade do Homem” –, ou no Capitaloceno – a “idade do capital”? 

A utilização da expressão “Antropoceno” para designar a atual época geológica gera uma dinâmica perversa: os impactos provocados por (e em benefício de) uma minoria são atribuídos a uma entidade homogénea e sem rosto – a humanidade –, negligenciando contextos históricos, políticos, socioeconómicos e ambientais. Este entendimento hegemónico do Antropoceno torna-se apelativo porque remove o capitalismo (mas também o imperialismo e o patriarcado) da equação, mantendo as causas estruturais da crise climática e ambiental completamente inquestionadas. O sistema capitalista adquire, portanto, um novo fôlego, desta feita sob a forma de “capitalismo verde”.

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Todos têm as mãos sujas de sangue


Condenar esta guerra não é incompatível com a simultânea condenação do comportamento dos EUA e da UE desde a queda do muro de Berlim. Nenhuma guerra é inevitável; na realidade social (como de resto em qualquer outra) não há determinismo.

O melhor comentário político que tem passado nas televisões é, quase sempre, os dos militares na reserva, com grande experiência no teatro de operações de guerra e um grande conhecimento da história dos conflitos na Europa, sempre com enquadramento na geo-estratégia das grandes potências.

Pelo que tenho visto, são de uma enorme sensatez e isenção. Põem em causa a actuação das lideranças políticas, incluindo a da UE, e contrastam com a maior parte dos especialistas de relações internacionais (excepção para José Pedro Teixeira Fernandes) que têm associado o conflito à preservação da democracia na Ucrânia e na Europa, omitindo que as acções dos EUA por interpostas ONG, e as milícias nazis, discretamente apoiadas por países da UE, foram decisivas para a queda do regime que dava tranquilidade à Rússia. Chegam a garantir (sem qualquer indício credível) que Putin quer anexar tudo o que foi da URSS.

Adoptando um discurso belicista, não falta na televisão quem defenda a necessidade de uma escalada militar, um braço-de-ferro entre a NATO e a Rússia, ignorando com a maior leviandade o que significaria uma 3ª Guerra Mundial (ver declarações incendiárias após a participação da Finlândia e da Suécia numa reunião da NATO, o que aliás foi uma verdadeira provocação à Rússia). A este propósito, concordo com a posição de Helena Ferro Gouveia na CNN: "Eu acho que neste momento é prudente não estar a alimentar ainda mais estas questões. É determinante manter a condenação firme mas alimentar ainda mais os pretextos de Moscovo é algo que deve ser evitado."

Vejam, por exemplo, o que diz o Major General Raul Cunha (RTP 3 - RTP Play, a partir do minuto 34:00 - 25 Fev 2022):
“Os líderes ocidentais sobretudo, aqueles que incentivaram este governo ucraniano, que lhes venderam 600 milhões de dólares de armamento … demos armas, demos treino, agora vocês aguentem-se contra a Rússia, por amor de Deus! A NATO, o presidente dos EUA, Boris Johnson e a UE tiveram um comportamento nas bordas do criminoso, tão mau como o do Putin. Estão todos muito bem uns para os outros.” (...) “Eu não acredito que seja intenção da Rússia reconstituir o império soviético. O plano final é impor na Ucrânia um governo que lhe seja simpático.”

Está na hora de reconhecermos que a posição geográfica de alguns países exige um compromisso entre dois valores igualmente importantes, a preservação da paz internacional e a autodeterminação de um país soberano. O compromisso passa pela valorização do estatuto de neutralidade da Finlândia e da Suécia, e era isso que devia ter sido aconselhado explicitamente à Ucrânia, pelo menos desde 2007, em vez do caloroso acolhimento à ideia de adesão à NATO e à UE, uma expectativa que foi sendo alimentada e empurrada para um horizonte incerto, tendo plena consciência de que a Rússia entendia isso como uma ameaça à sua segurança. A verdade é que hoje todos têm as mãos sujas de sangue.