terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Espíritos

«O que é bom para nós nos desenvolvermos e tornarmos ricos não serve para vocês. Nós temos a receita. É o liberalismo assimétrico no seu esplendor». Por debaixo do manto diáfano do «Espírito de Lisboa» a realidade do egoísmo comercial dos mais fortes muito bem exposta pelo Pedro Sales. Como o Ricardo já assinalou, a UE aproveita a boleia da Organização Mundial do Comércio para tentar impor «acordos de parceria económica» que representam apenas mais uma peça do esforço para «encolher o espaço de desenvolvimento» dos países mais pobres (Robert Wade). Aqui a UE e os EUA não se distinguem. Procura-se desta forma abrir os mercados africanos nas áreas da indústria e dos serviços, em que os europeus já têm a dianteira, acentuando a destruição da incipiente indústria africana (processo que já vem dos anos oitenta com os desastrosos programas de «ajustamento estrutural» do FMI e do Banco Mundial). «O nosso objectivo é ir para o mercado, mas sem perturbar as indústrias locais africanas» diz de forma inocente Romano Prodi que já se esqueceu dos instrumentos políticos usados na recuperação industrial da Itália do pós-guerra.

Razão tem a jornalista Teresa de Sousa, que nestas alturas costuma ter o distanciamento de um porta-voz da Comissão, quando inadvertidamente fala de Africa como uma «nova fronteira» para a Europa. Nova fronteira para os negócios europeus temerosos em relação ao avanço chinês. Felizmente que os responsáveis políticos de alguns países africanos não se renderam ao «Espírito de Lisboa», uma forma de «falsa consciência» que parece contagiar agora muitos jornalistas e intelectuais públicos portugueses. Vital Moreira, por exemplo, sem um único argumento (a inócua declaração da cimeira não conta), declara que quem não alinha com a propaganda do governo só pode ser sectário e/ou preconceituoso. Felizmente que assim que se passa a fronteira, com o clique de um rato, regressa o princípio da realidade como bem mostra a útil revista de imprensa internacional feita por Miguel Vale de Almeida. O esforço político para abrir mercados continua dentro de momentos. O «Espírito de Lisboa» esse regressa para a assinatura do Tratado Europeu. Habituem-se.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

As lições de Chang VIII - Porque é que o comércio livre só é bom para alguns

Os economistas neoliberais afirmam que os todos países ganham com a especialização internacional associada à liberalização do comércio. Segundo a linha habitual de argumentação, a liberalização leva as economias a empregar os recursos produtivos disponíveis nas actividades em que podem ser mais eficientemente utilizados. Para além disso, defende-se que a maior exposição à concorrência cria o incentivo a aumentos de produtividade. Como resultado da maior eficiência assim obtida e da redução das taxas alfandegárias, os consumidores têm acesso a produtos a preços mais baixos.

Esta linha de argumentação possui três problemas fundamentais. Primeiro, exclui por hipótese quaisquer dificuldades que possam existir no ajustamento das economias às novas condições. Uma vez que, na prática, não é possível reafectar trabalhadores, máquinas e equipamentos de umas actividades (aquelas que não resistem à concorrência internacional) para as outras, o resultado da liberalização é muitas vezes o desemprego prolongado e a inutilização da capacidade produtiva existente.

Segundo, subvalorizam-se os efeitos da liberalização do comércio internacional ao nível da distribuição dos rendimentos. Mesmo que o resultado global fosse positivo, nada garante que os benefícios seriam repartidos por toda a população - o que é ainda menos provável em países onde não existem mecanismos de repartição do rendimento, como é o caso de muitos países em desenvolvimento. Daí que a globalização neoliberal tenha no aumento das desigualdades sociais e, muito frequentemente, no aumento da pobreza um dos seus traços característicos.

Finalmente, ignoram-se os efeitos de longo prazo resultantes da liberalização. Mesmo que no curto-prazo os seus resultados sejam positivos, a liberalização total condena muitos países a uma especialização em sectores de actividade caracterizados por reduzidos aumentos de produtividade e, logo, a um crescimento lento das condições de vida das populações.

O comércio internacional é fonte de vários tipos de benefícios, a começar pela difusão de conhecimentos e de tecnologias. Mas existe uma diferença entre aceitar que o comércio internacional é importante para o desenvolvimento económico e dizer que o comércio livre de qualquer restrição ou interferência pública é o melhor remédio para o desenvolvimento.

As postas anteriores desta série mostram que os países que são hoje desenvolvidos sabiam bem a lição.

Keynes na Europa

Jean-Paul Fitoussi é um dos mais importantes economistas europeus a assumir a herança de Keynes. O artigo publicado na sexta-feira no suplemento de economia do Público, com Éloi Laurent, é um exemplo disso mesmo. E é sem dúvida uma das melhores denúncias do BCE e da «sua propensão para o conservadorismo» no actual contexto de instabilidade e de incerteza («o nevoeiro») criado pela estruturas da finança de mercado. O diagnóstico é rigoroso. Ao contrário do que afirmam muitos liberais (sempre prontos a culparem de forma ad-hoc os «políticos» pelos desastres do mercado), a actual situação não é o resultado de políticas monetárias laxistas, mas sim de um processo endógeno à actual economia capitalista financeirizada que tem gerado poupanças excessivas: «isto reflecte-se no aumento da desigualdade de rendimentos em grande parte do mundo desenvolvido, e nos vertiginosos excedentes dos países produtores de petróleo e dos países asiáticos». A obsessão do BCE com a inflação e a sua negligência face à desastrosa valorização do euro e face ao desemprego reflectem uma situação em que «o BCE acaba por esperar pelo pior em vez de o tentar evitar». A situação da Europa seria outra se estas posições keynesianas tivessem mais influência na condução da política.

Keynes Radical

«Os empresários produzem o que esperam vender e não há nenhuma razão para esperar que a soma dessas decisões individuais seja consistente com uma situação de pleno-emprego no curto ou no longo prazo». Este excelente artigo de Randall Wray, publicado no Levy Institute, sintetiza os elementos mais importante do legado heterodoxo de Keynes e mostra a actualidade da Teoria Geral. É que o que passa muitas vezes por keynesianismo não é mais do que uma apropriação «abastardada» que elimina os elementos mais radicais do seu pensamento, nomeadamente a sua crítica poderosa aos efeitos desestabilizadores da finança de mercado (a Taxa de James Tobin, por exemplo, limita-se a transpor para a esfera internacional propostas feitas por Keynes para desencorajar a especulação financeira à escala nacional). Hyman Minsky afirmou um dia que «só uma teoria crítica do capitalismo pode guiar uma política económica bem sucedida no quadro do capitalismo». A instabilidade recorrente do capitalismo sob hegemonia da finança de mercado, a sua tendência para a polarização social ou o fracasso da política económica neoliberal na Europa mostram bem como as ideias desta tradição são importantes para toda a esquerda. É que não há estado social que resista a uma política económica errada que alimenta o desemprego e aumenta as desigualdades.

domingo, 9 de dezembro de 2007

O que é que passa pela cabeça dos dirigentes africanos que abandonam as conferências a meio?

Abdoulaye Wade, presidente de um dos países africanos que insistem em acreditar que a democracia e o desenvolvimento económico são possíveis em África, abandonou há pouco a cimeira UE-África, antes do seu encerramento. Ao bater a porta, Wade apelou ao boicote dos acordos de "parceria económica" que estiveram em discussão na conferência (estes acordos visam, fundamentalmente, aplicar os princípios da Organização Mundial de Comércio - a liberalização do comércio e do investimento, o respeito pela propriedade intelectual, as limitações à intervenção estatal no apoio à indústria nacional, etc. - às relações económicas entre os dois continentes) .

Esta posta, esta, esta e esta ajudam a perceber esta decisão de Wade.

PS: seria bom que Manuel Carvalho se questionasse porque é que foi este - e não um dos «déspotas africanos» que «não tem sede de democracia, nem de desenvolvimento nem de direitos humanos» - que deixou esta mancha na cimeira.

As lições de Chang VII - EUA, campeões da via intervencionista e proteccionista para o desenvolvimento

Em 1791, Alexander Hamilton, o primeiro Secretário do Tesouro dos EUA, apresentou ao Congresso o Report on the Subject of Manufactures, onde apresentava o seu programa para o desenvolvimento da indústria americana. Esta foi a primeira vez que a expressão ‘indústria nascente’ foi utilizada, para defender a necessidade de recorrer a medidas proteccionistas com vista à promoção da indústria nacional (opondo-se assim às posições do recentemente falecido Adam Smith, à época o mais famoso economista do mundo).

No seu relatório, Hamilton defendia medidas como: taxas aduaneiras proteccionistas, proibição de importações, subsídios, proibição de exportação de matérias-primas cruciais, liberalização da importação e redução de taxas alfandegárias sobre inputs, prémios e patentes para as invenções, regulação de standards, desenvolvimento de infraestruturas de transportes.

O relatório de Hamilton constituiu a principal referência da política económica americana até ao fim da 2ª Guerra Mundial. Só no pós-guerra, quando a sua supremacia industrial estava estabelecida, é que os EUA liberalizaram o comércio e se tornaram grandes defensores do comércio livre. Mesmo assim, os EUA nunca praticaram o comércio livre ao nível da Inglaterra de finais do século XIX (e.g., 50 a 70% das despesas com I&D realizadas nos EUA entre meados da década de 1950 e meados da década de 1990 foram subsidiadas pelo governo federal - o que se revelou crucial para a liderança americana em sectores como os computadores, os semi-condutores, as biotecnologias, a Internet e a indústria aeroespacial).

Como é que o neoliberalismo pode argumentar que o comércio livre está na origem do sucesso dos países ricos, quando a adesão destes aos princípios do livre-câmbio só aconteceu depois de eles serem ricos?

sábado, 8 de dezembro de 2007

As lições de Chang VI - O desenvolvimento económico da liberal Inglaterra não dispensou o Estado

Quando a dinastia Tudor, que governou a Inglaterra ao longo do século XVI, chegou ao poder, a Inglaterra não era ainda a potência imperial que viria a ser. Os principais focos de industrialização encontravam-se então nos Países Baixos, que dominavam a produção têxtil na Europa. No entanto, no final da era Tudor (em inícios do século XVII) a Inglaterra encontrava-se já a caminho de uma industrialização acelerada.

Tal transformação é indissociável da estratégia de promoção da indústria nacional prosseguida pelos Tudor. Uma estratégia baseada na atribuição de subsídios à produção, na distribuição de direitos de monopólio, no apoio à espionagem industrial, em impostos alfandegários e noutras políticas do reino. Estas e outras formas de intevencionismo (taxas reduzidas para a importação de matérias-primas, estímulo à produção primária nas colónias, etc.) seriam uma constante ao longo dos séculos seguintes, contribuindo de forma determinante para o advento da 1ª Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII.

O comércio livre só veio a ser uma realidade em Inglaterra 8 décadas após a publicação em 1776 da Riqueza das Nações de Adam Smith - respectivamente, a bíblia e o profeta do liberalismo económico. Ou seja, tal como noutros casos posteriores, a adesão ao livre-câmbio só se deu quando a superioridade industrial inglesa era já indiscutível. Para mais, a abolição das Corn Laws em 1846 (que marca adesão da potência imperial aos princípios do comércio livre) não foi apenas uma forma de reduzir o preço dos alimentos em Inglaterra - foi também um modo de incentivar os países do continente europeu a empregarem os seus recursos na produção de matéria-primas (procurando adiar assim a aposta destes países na indústria).

Foi, então, a adesão ao liberalismo que tornou a Inglaterra próspera ou terá sido o inverso?

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Jornalismo económico

Depois da saída de Sérgio Figueiredo do Jornal de Negócios para a EDP, é agora a vez de Martim Avillez sair do Diário Ecónomico para a SONAE.


Clarificações, mas agora com ligações...


Acho que eu e o Daniel não temos grandes divergências neste debate. As que poderíamos ter resultam apenas de leituras equivocadas das minhas posições (talvez explicáveis por uma questão de ênfase porque eu venho dos debates na Economia e aqui as coisas são muito mais desequilibradas). A partir do que já escrevi no blogue: (1) nunca disse que o Estado deve ser o único a provisionar o que quer que seja (defendo a ideia da economia impura); (2) isto não significa que, em certas áreas, não defenda que o papel do sector privado, mercantil ou solidário, não deva ser supletivo (o que resulta do meu igualitarismo); (3) nunca disse que o proteccionismo era a solução para tudo e muito menos que a Europa o deveria adoptar nas suas relações com Africa (o que não significa, em geral, que deva ser banido do menu das políticas como os liberais pretendem); (4) a minha (a nossa) posição é ao contrário: se os países africanos se querem desenvolver têm é que se concentrar em políticas de desenvolvimento que usem o proteccionismo selectivo (para o desenvolvimento industrial) como fizeram e ainda fazem os países asiáticos; (5) assim é errado pensar que o desenvolvimento africano se faz pelo «comércio livre» com a Europa (basta ver as contrapartidas que são exigidas); (6) se há posição que se defende no blogue é a posição europeísta de esquerda (são às dezenas as postas); (7) a minha relação política com o estado-nação é idêntica a que li num artigo do Eric Hobsbawn (uma «relação instrumental») - serve ou não serve para certas políticas de esquerda? (8) eu acho que ainda serve para muitas e não estou disposto a abdicar dessa ideia a não ser que me mostrem que existem espaços subnacionais ou supranacionais mais adequados (o caso da UE para algumas políticas); (9) não confundo internacionalismo com «comércio livre» ou relações económicas liberais; (10) não sou hegeliano: não acredito em visões teleológicas da história (foi por isso que comentei criticamente o que julguei ser a adesão do Daniel ao cosmopolitismo comercial que se pode ler em certas posições do Marx e que são contraditórias com outras passagens); (11) acho que o libertarianismo nos conduz a becos e combaterei sempre a ideia ingénua de que a esquerda deve hoje pugnar pelo fim do Estado; (12) aqui chegado, prefiro ler e aprender com os contributos do liberalismo político de matriz social-democrata.

Já nas bancas...

...o Le Monde Diplomatique deste mês. Para além da refrescante reflexão sobre a actualidade internacional, destaque para o dossiê sobre o desemprego em Portugal. Boas leituras.

Cimeira UE/África

A cimeira UE/África vem realçar a forma selectiva e hipócrita como os países europeus se relacionam com os diferentes países africanos. Os problemas de África parecem resumidos ao Zimbabwe e ao Sudão. Países, como Guiné Equatorial, onde nunca houve uma eleição, são apontados como «exemplos de boas prestações políticas». Veja-se aqui a verdadeira face do regime de Obiang.
O facto da Guiné Equatorial ser um país sentado num barril de petróleo, com estatuto de observador na Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), não tem obviamente qualquer influência nesta apreciação política do regime...

Coisas que me preocupam

Não quero, nem vou, entrar no debate em curso entre a esquerda sobre o papel do Estado na luta política. Contudo, fico muito preocupado quando vejo gente à esquerda a render-se à vulgata liberal sobre política comercial, que a entende como ineficaz, injusta e inviável no actual contexto de integração económica mundial .

O proteccionismo não é solução universal para nenhum problema, mas, como os excelentes recentes posts do Ricardo mostram, este deve ser um instrumento de política económica disponível, a ser utilizado de forma selectiva. A protecção comercial, ao contrário do que os mercantilistas defendiam no século XVIII, não resulta necessariamente num jogo de soma nula - dificilmente se pode entender o desenvolvimento conseguido por certos países (Taiwan ou a Coreia do Sul, por exemplo) como tendo sido feito «à custa» de outros. Não faz, por isso, sentido afirmar que «o proteccionismo seria sempre assimétrico». O que é, sem dúvida, assimétrico é a liberalização do comércio internacional, que coloca países com estruturas económicas muito diferentes em concorrência directa. Veja-se o triste caso do México desde a sua adesão à NAFTA. Só a ignorância do que foi a história económica dos últimos duzentos anos pode, pois, resultar na defesa da liberalização comercial internacional à esquerda.

Finalmente, quanto à inviabilidade de uma política comercial activa, ela parece ser hoje um facto, não devido a qualquer dinâmica da economia global, mas sim como resultado da imposição política dos acordos internacionais realizados no âmbito da Organização Mundial do Comércio. Países como a Índia, China ou o Vietnam, cuja adesão à OMC é muito recente ou ainda não aconteceu (caso do Vietnam), recorreram a uma política comercial activa até há bem pouco tempo. Os resultados estão à vista.

As lições de Chang V - O mito da adesão dos países asiáticos à globalização neoliberal

O sucesso do crescimento económico em vários países asiáticos - numa primeira fase, a Coreia do Sul, Taiwan, Singapura e Hong Kong; numa segunda fase, a Malásia, a Indonésia, a Tailândia e Filipinas; mais recentemente a China e a Índia - constitui uma das maiores esperanças para aqueles países que vivem desde há décadas presos em círculos viciosos de pobreza e sub-desenvolvimento.

Durante vários anos, os defensores da globalização neoliberal procuraram apresentar estes casos de sucesso como demonstrações da superioridade da abertura ao comércio e ao investimento internacionais enquanto estratégias de desenvolvimento - em contraste com a tentativa de promover o desenvolvimento com base na substituição de importações e na tentativa de criação ‘artificial’ de uma indústria nacional (seguida em vários países da América Latina e de África).

Nascido e crescido na Coreia do Sul, Ha-Joon Chang sabe como poucos que o sucesso económico do seu país não se explica por uma suposta adesão a estratégias neoliberais de desenvolvimento. Pelo contrário, o crescimento da Coreia do Sul é indissociável de um conjunto de medidas de natureza intervencionista, que incluem: o apoio ao desenvolvimento de certos sectores (seleccionados pelo governo, com ou sem a colaboração do sector privado) através da protecção aduaneira, de subsídios e de outros apoios estatais às empresas nacionais (e.g., informação sobre mercados externos), até que estas estivessem em condições de competir no mercado internacional; o controlo total do sistema bancário (e, através dele, do sistema de crédito) pelo Estado; a condução de grandes projectos por empresas públicas; a nacionalização de empresas privadas sempre que estas se revelavam incapazes de boa gestão (tipicamente seguida de reprivatização, mas nem sempre); o controlo cambial (com vista a gerir as divisas necessárias à importação de bens intermédios); forte controlo do investimento estrangeiro, com grande selectividade dos investimentos aprovados; uma atitude laxista face à propriedade intelectual; o investimento público generalizado em educação.

Esta mistura de incentivos de mercado e de direcção estatal está longe de ser uma excepção coreana. Com maior ênfase nuns elementos e menor noutros, todos os países asiáticos acima referidos (com a excepção de Hong Kong - a ex-colónia inglesa manteve-se impecavelmente liberal até ao fim) adoptaram o tipo estratégias listadas para o caso Coreano.

Em suma, a tentativa de apresentar o desenvolvimento asiático como exemplo da superioridade da via neoliberal para o desenvolvimento simplesmente não pega.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

As lições de Chang IV - O mito do falhanço das estratégias desenvolvimentistas no 3º Mundo

Na retórica habitual das organizações internacionais que assumem o papel de guardiãs da globalização neoliberal - FMI, Banco Mundial e OMC - e de muitos manuais de Economia, a adesão dos países em desenvolvimento ao processo de globalização contemporâneo é uma consequência do insucesso das estratégias de desenvolvimento nacionalistas adoptadas durante as décadas de 1960 e 1970 em vários países (principalmente da América Latina e de África).

No entanto, esta ideia é dificilmente suportada pela história. Mais do que uma opção nacional, a adesão às receitas neoliberais pelos países em desenvolvimento resultou da imposição do FMI e do Banco Mundial, cuja interferência na condução das políticas públicas se intensificou após a Crise da Dívida de 1982.

Confrontados com a necessidade de financiar as suas dívidas (num contexto de crise económica mundial e de subida das taxas de juro), os países em desenvolvimento tiveram de aceitar as várias condições impostas pelo FMI e pelo BM para a concessão de empréstimos - condições essas que foram muito além do que seria estritamente necessário para a gestão da balança de pagamentos. Tais condições incluíam: fortes restrições aos deficits orçamentais, privatização de empresas públicas, redução da administração pública, liberalização do comércio, desregulamentação do investimento estrangeiro, desregulamentação dos mercados de capitais, convertibilidade total das moedas, etc.

A adopção de tais políticas de cariz neoliberal teve como consequência um aumento da desigualdade e da instabilidade, mas o crescimento económico reduziu-se significativamente. Nas décadas de 1960 e 1970, quando as estratégias proteccionistas e intervencionistas foram largamente prosseguidas nos países em desenvolvimento, o crescimento destas economias foi em média de 3% por ano, muito superior aos 1-1,5% verificados desde então.

Contrariamente ao que é sugerido, não foi o mau desempenho das estratégias nacionalistas de desenvolvimento que conduziu à adesão dos países do 3º Mundo à globalização neoliberal. A liberalização foi (e ainda é) imposta a partir de fora - e os bons resultados estão longe de estar garantidos. Pelo contrário, segundo Chang, as regras impostas aos países do Sul são a receita para a persistência do sub-desenvolvimento em vastas regiões do mundo.

Os próximos capítulos da série «As lições de Chang» ajudarão a perceber porquê.

Reconhecimento e distribuição

Um governo de esquerda deve ser avaliado pela capacidade que revela em ajudar, através de alterações na lei, a luta pelo reconhecimento que combate todas as formas de opressão e de discriminação (baseadas, por exemplo, na orientação sexual). Mas também tem que ser avaliado pela capacidade em garantir uma distribuição justa dos recursos para que todos possam ter acesso a uma vida digna. Estes dois planos (definidos por Nancy Fraser) são incomensuráveis e nenhum deve ter prioridade sobre o outro. Por isso valorizamos o governo socialista de Zapatero por ter colocado a Espanha entre os países mais avançados na primeira dimensão (avançados é o termo certo porque aqui, como em tantas outras coisas, devemos combater o relativismo moral que tolda tantos à esquerda) e por isso criticamos agora Zapatero por ter eliminado de forma «oportunista» o imposto sobre a fortuna.

É ainda de mencionar, neste contexto, a pertinente observação de Vital Moreira: «De resto, em Espanha, além desde imposto e da contribuição imobiliária local, o património é ainda objecto do imposto sobre sucessões e doações - porventura o mais justo dos impostos, que todavia foi extinto entre nós pelo Governo Barroso-Portas». Bem visto. Só é pena que isto se tenha passado sem que o PS se tivesse mexido, pelo menos que eu me lembre, o que só mostra como a distribuição continua a ser tão pouco reconhecida em Portugal. Que tal avançar com uma nova proposta nesta área? O reconhecimento, por sua vez, também tem avançado com demasiada lentidão. É urgente mais arrojo. É que vivemos num país desigual (crescentemente?) e com tantas mecanismos evitáveis de geração de infelicidade.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Resposta atrasada

Respondendo ao desafio do zèd, aqui vão as cinco sugestões. Porque escrevo neste blogue, escolhi cinco grandes filmes que têm o trabalho (ou a falta dele) como tema central:

- Ladrões de Bicicletas, Vittorio de Sica (It)












- As Segundas ao Sol, Fernando Léon de Aranoa (Es)

















- Os Virtuosos, Mark Herman (Uk)












- Recursos Humanos, Laurent Cantet (Fr)












- O Sal da Terra, Herbert J. Biberman (Us)

As lições de Chang III - O mito do glorioso 'laissez-faire' vitoriano

Os defensores da globalização neoliberal gostam de transmitir a ideia de que a adesão aos princípios da liberalização do comércio e do investimento internacionais resultam da demonstração histórica da superioridade desta via para o desenvolvimento.

No imaginário neoliberal a Inglaterra teria adoptado desde o século XVII uma política de comércio livre, sendo essa decisão a fonte da sua ascensão a grande potência económica mundial. A superioridade da opção inglesa ter-se-ia tornado tão óbvia que outros países teriam seguido as suas pegadas no século XIX, dando origem a um período de grande prosperidade baseado no laissez-faire, que perdurou até à 1ª Guerra Mundial. Depois da guerra, muitos países caíram na tentação do proteccionismo, conduzindo à contracção e à instabilidade da economia mundial, as quais estão na origem do desastre que foi a 2ª Guerra Mundial. Assim reza a história neoliberal da globalização.

Na verdade, o livre comércio só foi adoptado em Inglaterra em meados do século XIX (quando esta era já a nação mais industrializada do mundo) e a hegemonia britânica entre 1870 e 1913 foi conseguida mais à custa da força militar e do que das forças de mercado. Exemplo máximo disto são as Guerra do Ópio, a forma encontrada pela potência imperial para combater o deficit comercial com a China (associado, nomeadamente, à importação de chá).

Neste período, tirando a Grã-Bretanha, a generalidade dos países que aderiram ao comércio livre eram países mais fracos (as únicas excepções são a Holanda e a Suiça), os quais foram forçados a prosseguir tais políticas através de regras coloniais ou de tratados desiguais. E o desempenho económico destes países no período em causa foi tudo menos brilhante.

Ao mesmo tempo que impunham o comércio livre às nações mais fracas, os países ricos mantinham elevadas taxas aduaneiras. À custa disto, países como os EUA e a Alemanha conseguiram desenvolver as suas indústrias, acabando por ultrapassar a Grã-Bretanha em poder económico. O que leva este último país a abandonar o comércio livre em 1932 é precisamente a constatação do sucesso do recurso ao proteccionismo por outros países industrializados.

Será então o liberalismo a via superior para o desenvolvimento? Terá sido a adesão a esta via uma opção para a generalidade dos países do mundo?

Bali III - plano inclinado?

Na realidade, estou convencido que a coisa poderá ser ainda pior para a posição liberal. Enfrentar as alterações climáticas vai ter de passar por muito mais do que manipular incentivos. Vai ter de passar, por exemplo, pela modificação deliberada de certos padrões de consumo gerados pelo mercado através da restrição e da proibição de certas actividades, em circunstâncias a definir politicamente, e que deverão multiplicar-se, por forma a libertar os cidadãos da «tirania das pequenas decisões» que produzem resultados colectivos irracionais que ninguém consegue controlar ou prever individualmente. A luta contra as alterações climáticas pode (sublinho o pode) criar um quadro de discussão que abre um plano inclinado que favorece, e bem, a restrição do alcance da ideologia da «soberania do consumidor» e reabilita o investimento público e a sua correspondente planificação como meios para a promoção de certos desenvolvimentos tecnológicos ou certos padrões de produção e de consumo que as formas descentralizadas de coordenação mercantil não só não conseguem alcançar, ou pelo menos não o conseguem fazer com a rapidez necessária, como podem mesmo bloquear.

«Socialismo ou barbárie», a célebre alternativa de Rosa Luxemburgo, ganhará novas e interessantes conotações. Mesmo que possamos estar só a falar de dar mais peso, no quadro do sistema capitalista, a formas de coordenação, de regulação e de planificação que o tornarão ainda mais impuro. A questão que estamos destinados a discutir, como sempre, é qual o grau de plasticidade do sistema e qual a sua capacidade para acomodar as medidas que terão de ser adoptadas num futuro mais ou menos próximo. Pelos Estados. Por muito que custe aos libertários de todos os partidos.

Bali II - «New Deal»

A maioria dos economistas, por seu lado, acha que é possível e desejável minorar os impactos ecológicos do capitalismo através do desenho de incentivos adequados, o que passa por usar um conjunto de taxas e de mercados de direitos de poluição que façam com que as empresas, os consumidores e os países «internalizem» os custos sociais das suas actividades poluidoras e modifiquem assim o seu comportamento. Trata-se de criar preços para aquilo que ainda não tem preço, assumindo-se que o que não tem um preço não é tido em consideração nas tomadas de decisão individuais e colectivas (hipótese discutível, pelo menos em certos contextos, e que este livro desmonta bem).

Esta é, em certa medida, a abordagem defendida pelo economista Nicholas Stern, o autor do célebre relatório Stern sobre os custos económicos das alterações climáticas, encomendado recentemente pelo governo britânico. Stern considera que estas constituem a maior «falha de mercado» da história da humanidade. Sendo assim, desenhemos «mecanismos» em que o direito dos países a poluir passe a ter um preço. Embora estes mecanismos procurem mimetizar as propriedades dos mercados, a verdade é que a fixação das quotas de poluição permissíveis e sua afectação (elemento indispensável para que se construam «mercados»), os objectivos de redução das emissões, o apoio e incentivo ao desenvolvimento de novas soluções tecnológicas mais limpas ou os apoios aos países mais pobres (para combater as desflorestação em curso por exemplo), exigem um colossal esforço político de coordenação e de planeamento que são claramente não-mercantis. É de Stern a expressão «New Deal global». E falar de New Deal assusta e muito os nossos liberais intransigentes e explica grande parte do seu «negacionismo ambiental» e da sua irracional recusa em aceitar o consenso científico na área das alterações climáticas.

Bali I - Se até o Príncipe Carlos já percebeu...

Na passada sexta-feira, o herdeiro do trono britânico publicou um artigo dirigido aos representantes dos governos, reunidos em Bali para debater a questão das alterações climáticas, onde nos informa da sua real preocupação com o problema e do seu patrocínio a uma carta aberta subscrita por 150 presidentes de grandes empresas multinacionais. Para além do reconhecimento da gravidade do problema e dos seus impactos assimétricos, a carta aberta expõe a confiança destas empresas na capacidade e vantagens de se criarem novos e lucrativos mercados na área do ambiente. O mercado destruiu, o mercado recuperará. A fé e o interesse não conhecem limites.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Radiohead - Reckoner webcast

Webcast da música "Reckoner" do último trabalho dos Radiohead "In Rainbows". Um dos álbuns do ano.

Taxa desemprego IV

Vale a pena ler este trabalho, das jornalistas Elisabete Miranda e Raquel Martins, no Jornal de Negócios (infelizmente sem link para o artigo completo), sobre a ineficácia das novas regras no acesso ao subsídio de desemprego.

Taxa de desemprego III

A minha perplexidade perante este anúncio desviou-me a atenção da, talvez mais grave, associação feita por Vital Moreira entre o recente aumento do desemprego e uma pretensa restruturação económica em curso. Primeiro, como aqui já se explicou, dificilmente a mudança tecnológica pode ser responsabilizada pelo crescimento do desemprego de forma prolongada no tempo. Segundo, não vejo quaisquer sinais de restruturação económica. Quais são os novos sectores dinâmicos e tecnologicamente avançados da economia portuguesa? Parece-me mais que são os constragimentos orçamentais - feitos sobretudo através da redução do investimento público, como, aliás, aponta Vital Moreira - os responsáveis pela actual estagnação económica e consequente crescimento do desemprego.

Taxa de desemprego II

Vital Moreira, perante os últimos dados do Eurostat, afirma triunfalmente que "a taxa de desemprego deixou mesmo de crescer". Sinceramente, não percebo. As duas comparações possíveis não permitem chegar a esta conclusão. A comparação mais razoável, como aqui é apontado, será comparar a taxa de desemprego no mesmo período do ano passado - 7,9% em 2006, face a 8,2% em 2007. Se acreditarmos que a sazonalidade do desemprego foi completamente expurgada dos dados do Eurostat, continuamos a ter uma taxa inferior no mês de Setembro, 8%. Onde está o fim do crescimento do desemprego? Talvez seja, como expliquei no post abaixo, devido à confusão nas fontes de dados. Vejamos qual a tendência nas diferentes fontes:

Eurostat (servi-me dos dados agora publicados para preencher 2007):


IEFP:


INE:


Quando olhamos para o comportamento do desemprego nos últimos anos, parece um pouco abusivo proclamar o fim da tendência de crescimento, não?

Taxa(s) de Desemprego

Ontem ficámos a saber que, segundo dados do Eurostat, Portugal é, actualmente, o país da zona euro com a mais alta taxa de desemprego. No entanto, os diferentes números existentes à volta do (des)emprego são fonte costumeira de confusão. Por isso, vale a pena esclarecer algumas questões.

Primeiro é preciso saber que existem diferentes (pelo menos três) organismos que calculam o desemprego em Portugal: o Eurostat (fonte da informação de hoje), o INE e o IEFP. O IEFP será a fonte menos fidedigna, pois só contabiliza os desempregados registados nos seus centros. Um jovem à procura do primeiro emprego, não inscrito no IEFP, não é contabilizado. Se não me engano, o IEFP tem mesmo o cuidado de não anunciar uma taxa de desemprego. Contudo, é recorrente ver na comunicação social as variações do número de desempregados registados como indicador para a evolução da taxa de desemprego em Portugal. O INE, fonte da taxa oficial de desemprego, serve-se de inquéritos para calcular as suas taxas. Contudo, a taxa do INE não inclui «os inactivos disponíveis» (desempregados mas que não procuraram trabalho no período em que foi feito o inquérito), «os inactivos desencorajados» (aqueles que estão desempregados mas desistiram de procurar emprego), os subempregados (aqueles que fazem algumas horas por não encontrarem emprego). Ou seja, a taxa de desemprego real é muito superior à anunciada. Ver aqui, para uma boa análise destes números. Por último, senão me enganaram, o Eurostat serve-se dos dados dos anteriores dois organismos para o cálculo da sua taxa de desemprego. Será, pois, uma taxa necessariamente diferente.

Finalmente, é de notar a forma como o governo tem abordado a questão do desemprego, realçando o número de empregos criados nesta legislatura - mais de cem mil. No entanto, como este artigo do DN mostra, estes dados são brutos - não têm em conta o aumento da população activa e a destruição de emprego. Uma manipulação grosseira que só serve para atirar areia aos nossos olhos.

As lições de Chang II - O mito da receita neoliberal como via única para o desenvolvimento

A ortodoxia económica neoliberal promove a ideia de que o desenvolvimento só é possível adoptando um conjunto de medidas que incluem: a privatização de empresas públicas, a manutenção de baixos níveis de inflação, a redução da administração pública, o equilíbrio orçamental, a liberalização do comércio, a desregulamentação do investimento estrangeiro, a desregulamentação dos mercados de capitais, a convertibilidade total das moedas, a privatização do sistema de pensões, entre outras.

Por outras palavras, defende-se que a integração completa na economia internacional, sem interferências por parte do Estado, é o caminho que melhor garante o sucesso económico das nações.

Para sustentar as suas teses, os teóricos do neoliberalismo recorrem sistematicamente à história, argumentando que (i) as nações mais ricas são aquelas que mais cedo abraçaram as ideias liberais, (ii) as tentativas de promover o desenvolvimento económico através do proteccionismo e do intervencionismo estatal falharam redondamente e (iii) a adesão da generalidade dos países do mundo ao processo de globalização contemporâneo resulta do reconhecimento generalizado da validade dos primeiros dois argumentos.

Acontece que tais ideias são essencialmente falsas. Praticamente todos os actuais países ricos, de uma forma ou de outra, recorreram a diferentes formas de proteccionismo e intervencionismo para desenvolver as suas economias - e só aderiram aos princípios liberais (os que o fizeram) depois de a sua supremacia industrial estar assegurada. Os períodos de maior crescimento económico a nível nacional e internacional estão sistematicamente associados a períodos em que as políticas públicas de apoio ao desenvolvimento foram mais intensas. E, na maioria dos casos, os países que abandonaram as estratégias intervencionistas de desenvolvimento fizeram-no principalmente por imposição externa do que por opção própria.

Os exemplos e o detalhe históricos merecem maior desenvolvimento - e serão objecto das próximas postas da série «As lições de Chang».

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

A crise de uma crença II

Hillary Clinton está equivocada, pelo menos no que se refere aos EUA: aqui a crença nas virtudes ilimitadas do «comércio livre» não só não serve para a «economia do século XXI», como não serviu para a do século XX e sobretudo não serviu para a economia do século XIX. De facto, a teorização da estratégia proteccionista de desenvolvimento industrial tem como um dos principais pioneiros teóricos uma figura cujos país lutava no século XIX contra a imposição do comércio livre por parte do Reino Unido: Alexander Hamilton (1755-1804), secretário do tesouro de Washington que redigiu, em 1791, o famoso «Report on the Manufactures of the United States» (é a figura da nota de dez dólares). Foi nos EUA que Fredrich List aprendeu tudo o que havia para aprender sobre proteccionismo comercial. E durante todo o século XIX, os EUA tiveram das mais altas taxas alfandegárias do mundo. No século XX, sempre que foi conveniente, não hesitaram em recorrer a tarifas e outras formas de protecção. A crença nas virtudes irrestritas do comércio internacional fica para os economistas ortodoxos e para os outros países (Bill Clinton era um especialista a vender a ideia). E até os economistas ortodoxos estão a perder a convicção. Ainda bem. Pode ser que os países em vias de desenvolvimento possam recomeçar a poder imitar os EUA.

Nota promocional antecipada: eu e o Nuno Teles temos um artigo, intitulado «Globalização e Utopia de Mercado - o ‘vício ricardiano’ à prova da história» a sair num livro sobre globalização que estes senhores estão a editar. Procuramos juntar e sistematizar argumentos heterodoxos que estão a ser reabilitados e que contestam a teoria das vantagens comparativas. Este livro lançado este ano é um excelente exemplo desta linha de investigação:

A crise de uma crença I

«Eu concordo com Paul Samuelson, o famoso economista, que recentemente falou e escreveu sobre como a ideia das vantagens comparativas [que serve de suporte à abordagem liberal ao comércio internacional] pode não servir para descrever a economia do século XXI em que nos encontramos». Hillary Clinton em entrevista ao Financial Times. Duas notas: (1) Paul Samuelson é provavelmente o economista mais influente do pós-guerra e entre as suas muitas contribuições teóricas contam-se vários refinamentos da teoria das vantagens comparativas de Ricardo e um manual de introdução à economia («o Samuelson» que qualquer estudante de economia, em qualquer parte do mundo, terá aberto pelo menos uma vez na vida); (2) um dia Paul Samuelson foi desafiado a dar um exemplo de uma teoria económica que fosse incontroversa e desafiasse o senso comum e ele respondeu a teoria das vantagens comparativas. Agora parece ter algumas dúvidas. A China a Índia são os pretextos.

A frase

"Muitos autocratas fazem-se reeleger sem necessitarem de desenvolver os seus países ao tirarem partido da renda de riquezas como o petróleo. Até podem matar a fome no curto prazo, mas hipotecam o futuro". José Manuel Fernandes.

Destaque na página de Internet do Público.

Um democrata numa democracia

«Agradeço a quem apoiou o caminho que traçámos em direcção ao novo socialismo, mas igualmente a quem votou contra. Mostraram ao mundo, e a si mesmos, que a Venezuela é uma democracia viva». Chávez no discurso de reconhecimento da derrota no referendo constitucional.

As lições de Chang I - Desconstruir mitos para construir a alternativa

Mais do que uma vez fizemos referência neste blog aos trabalhos de Ha-Joon Chang, um dos mais notáveis e eficazes economistas de combate da actualidade.

Especialista em questões de desenvolvimento, Chang é autor/editor de várias obras de referência - como Financial Liberalisation and the Asian Crisis (2001), Kicking Away the Ladder (2002), Globalization, Economic Development and The Role of the State (2003), Reclaiming Development (2004), The East Asian Development Experience (2005), entre muitas outras - através das quais contribuiu para questionar algumas ideias feitas sobre problemas económicos contemporâneos.

No seu último livro, Bad Samaritans (2006), Chang sintetiza alguns dos principais resultados das suas investigações e reflexões, dando origem a uma obra que está condenada a tornar-se referência nos debates sobre a globalização, o neoliberalismo e a estratégias de desenvolvimento económico.

O seu método é eficaz: começa por recorrer à história para desconstruir os mitos dominantes sobre as origens da globalização contemporânea e sobre os processos que conduziram ao desenvolvimento das economias que hoje são as mais ricas do planeta - mitos esses que têm sido fundamentais para difundir a ideia de que não há alternativa à globalização neoliberal; de seguida discute em termos teóricos (sempre suportado com exemplos elucidativos) cada um dos elementos da receita neoliberal para o desenvolvimento dos países; por fim, depois de desfeitos os mitos e de desmascarada a fragilidade dos argumentos teóricos, Chang mostra como o desenvolvimento económico a nível global exige uma alteração profunda das regras que dominam o sistema económico internacional.

Apesar de vários desenvolvimentos que vêm sendo assinalados neste blog, ainda estamos longe do dia em que podemos declarar como morta a hegemonia do discurso sobre a inexistência de alternativa ao neoliberalismo. Nunca é, pois, demais rever os argumentos de Chang, explanados de forma clara e sintética em Bad Samaritans. É isso que se pretende com a série de postas sobre «as lições de Chang» que agora se inicia.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Liberalismos

Será que na Europa o novo livro de Paul Krugman, que o Ricardo discute na posta anterior, não deveria antes intitular-se «a consciência de um social democrata»? Se calhar sim, só para evitar confusões. Ou talvez não: afinal há quem ache, com alguma razão, que a social democracia é a melhor forma de alcançar uma parte dos objectivos liberais de autonomia, liberdade e de «carreiras abertas aos talentos». Assim parece ser nos EUA. Ainda não sei bem por que portas e travessas, a palavra «liberal» serve aqui sobretudo para designar alguém que se filia na tradição do «New Deal» de Roosevelt, das liberdades positivas e do capitalismo temperado. Isto sempre incomodou, e muito, os chamados «liberais clássicos» intransigentes, adeptos da utopia de um capitalismo sem impurezas, que acham que os defensores do «intervencionismo» lhes roubaram a bandeira do «partido da liberdade». Alguns, sobretudo nos EUA, deram a expressão como perdida e preferiram passar a usar outras como libertário ou conservador que se prestam a muitos equívocos. Na Grã-Bretanha, provavelmente graças a figuras como John Stuart Mill (um liberal, «o mais eficaz defensor do socialismo», segundo Ludwig von Mises, ou talvez um pouco das duas coisas), a expressão liberal também ganhou conotações ambíguas muito interessantes. No resto da Europa, sobretudo em França, um liberal é um adepto do mercado sem fim. Ou talvez não. Daí que muita gente tenha começado a usar a expressão neoliberal para designar uma nova espécie que reinventa parte do que imagina ser a herança liberal «original» do «estado como guarda nocturno» e a cruza com novos contributos da economia e da filosofia políticas. São mesmo sinuosos os caminhos das ideologias. Mas sem elas estamos perdidos.

It's the political economy, stupid!

«As instituições, as normas e o ambiente político são muito mais importantes para explicar a distribuição do rendimento - e as forças de mercado impessoais muito menos relevantes - do que as lições de Introdução à Economia fazem crer» (a tradução é minha). Já se tinha notado que alguns dos mais destacados economistas americanos começavam a ter posições à esquerda. Agora começam a reconhecer a necessidade de por em causa as ideias simplistas dos manuais de economia quando se analisam as sociedades contemporâneas.

O novo livro de Paul Krugman, «The Conscience of a Liberal», vem propor um novo «New Deal» que reverta o processo de aumento das desigualdades que tem caracterizado os EUA nas últimas décadas. Como ponto prévio é fundamental perceber que este processo tem antes de mais causas políticas - não podendo ser explicado com base na "globalização" ou na "mudança tecnológica", como é habitual fazer-se entre economistas.

Se a desigualdade tivesse como causa uma procura acrescida do trabalho qualificado face ao trabalho não qualificado, decorrente do novo paradigma tecnológico, então seria de esperar que os trabalhadores mais qualificados fossem significativamente beneficiados com este aumento da dispersão do rendimento - o que não aconteceu nos EUA. No entanto, têm aumentado fortemente os rendimentos dos 1% mais ricos, independentemente das suas qualificações.

Da mesma forma, se o aumento da desigualdade se devesse à globalização (que expõe os sectores baseados em baixos salários à concorrência internacional), como se explicaria o facto de tal aumento ser muito mais acelerado nos EUA do que na generalidade dos países desenvolvidos?

Segundo Krugman, para compreender o aumento da desigualdade social nos EUA não podemos, pelo contrário, deixar de considerar o papel das políticas prosseguidas por sucessivas administrações americanas desde o final da década de 1970, nomeadamente: o ataque ao movimento sindical, que reduziu o poder de negociação dos trabalhadores; os cortes radicais nos impostos sobre os rendimentos; a redução das restrições políticas e sociais à acção das administrações de empresas privadas (nomeadamente, na distribuição de dividendos); o ataque à segurança social pública; entre outras medidas de promoção da desigualdade, conduzidas por políticos cuja principal preocupação consiste em satisfazer os desejos dos interesses milionários que lhes pagam as campanhas.

Parece óbvio, não? Experimentem perguntar a economistas que conheçam (ainda melhor, perguntem àqueles que, como «grandes economistas», são chamados a comentar temas económicos cá no burgo) o que explica os aumentos das desigualdades sociais nas sociedades contemporâneas - verão a importância da crescente adesão de um economista como Krugman à velha «Economia Política».

sábado, 1 de dezembro de 2007

Encontros e desencontros III

Quem lê este blogue não ficará surpreendido por eu concordar (como não?) com a radiografia da situação e até com algumas das causas identificadas por Carvalhas para o belo buraco em que se encontra a economia portuguesa. O problema é que as soluções defendidas pelo PCP, para além de serem muito vagas e genéricas, colocam um peso excessivo na dimensão nacional da alternativa política. A intervenção da eurodeputada Ilda Figueiredo no encontro do PCP confirma isto mesmo: não há uma única pista para a possibilidade de construir políticas à escala europeia. Ora é por aqui que tem de passar muita da discussão e da luta da esquerda hoje em dia: da harmonização fiscal à substituição do PEC, do reforço do orçamento comunitário à convergência dos direitos sociais, da defesa dos serviços públicos ao pleno-emprego. Isto parece passar ao lado do PCP que prefere apostar num recuo nacionalista que, no actual contexto, só nos conduziria a becos sem saída (recuo expresso na «inserção da tese do combate pelo fim da União Económica e Monetária», o que se não me engano é uma novidade e teria merecido destaque se alguém se tivesse dado ao trabalho de cobrir o encontro para os jornais). Não é que as coisas sejam mais fáceis por outros lados, mas a questão é sempre, como em tempos de maior sofisticação política se reconhecia, a da correcta articulação dos múltiplos planos de intervenção por forma a permitir que os avanços ou recuos numa escala de intervenção ajudem ou não comprometam as lutas noutras.

Encontros e desencontros II

Vamos ao que importa para quem há alguns anos atrás, e de forma bastante dialéctica, se excluiu e foi excluído do PCP. Do que pude ler, parece-me que o discurso de Carlos Carvalhas reflecte uma das principais preocupações económicas do encontro: «Aqueles que atribuem o desequilíbrio das contas externas ao excesso de despesa verificada nos últimos dez anos ficam apenas pela superfície das coisas. Passam por cima da abertura do nosso mercado interno; das privatizações das empresas básicas e estratégicas e do seu progressivo domínio pelo capital estrangeiro; da destruição do aparelho produtivo e da implementação de grandes cadeias de distribuição internacionais levando cada vez mais à substituição da produção nacional pela estrangeira. É por isso que qualquer aumento de despesa interna tem como consequência uma pressão sobre as importações. Esquecem também a quebra da competitividade das nossas exportações pela apreciação do euro (. . .) e que os grandes grupos nacionais há muito deixaram de investir nas actividades produtivas. Preferem as altas taxas de rentabilidade das actividades imobiliárias, financeiras, de intermediação e especulativas. É por isso que os lucros da banca e dos grandes grupos sobem exponencialmente e o país definha e empobrece».

Encontros e desencontros I

O PCP realizou, no passado fim-de-semana, um encontro sobre questões económicas e sociais que teve, segundo pude ler, reduzida cobertura mediática. Imagino que o evento deva ter sido culminar de um «amplo e profundo debate», envolvendo muitos milhares de pessoas. Nos dois dias que durou a iniciativa, responsáveis pelas organizações e sectores fizeram intervenções sobre a situação económica e social que o «condensaram e sistematizaram». Deve ter sido dado algum espaço para intervenções não encomendadas de militantes de base. No final, foi aprovada, por unanimidade, uma resolução que, como os outros documentos, terá sido «enriquecida» pelo contributo de dezenas e dezenas, talvez até centenas, de propostas de alteração que uma comissão de redacção diligente terá seleccionado e incorporado nos documento únicos que estavam a discussão. Isto mostra bem como a imagem que o PCP pretende transmitir é uma farsa (já passou o tempo em que era uma tragédia) que mascara mal a real ausência de debate plural e democrático. Enfim, há coisas que não mudam e a recente expulsão de Luisa Mesquita é apenas uma nota de rodapé que serve para reforçar este ponto.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Greve Geral


Só a acção colectiva organizada permite superar o medo, a fragmentação e a ausência de esperança. Há alternativas a esta lenta corrosão do nosso ainda embrionário estado social. Há alternativas a uma política económica errada e a uma engenharia mercantil iníqua e irresponsável. Hoje, os trabalhadores da função pública enviam mais um sinal. Espero que seja bem forte. Se algumas das suas razões se fizerem ouvir, as coisas podem começar a mudar no nosso país.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

O choque e o drama socialistas

Primeiro foi o sempre atento Mário Soares, agora é Narciso Miranda: «Em cada cinco jovens, há um desempregado, mais de 20 por cento da população vive abaixo do limiar da pobreza. Sou convictamente socialista e isto incomoda-me profundamente» (Publico). Já no fim-de-semana passado Sócrates lá tinha reconhecido, enfim, que o desemprego é de facto um problema grave. Mas foi Vitalino Canas quem, ao procurar sacudir as pressões, melhor resumiu o drama da direcção do PS: «À medida que os problemas forem sendo ultrapassados, é claro que a dimensão à esquerda poderá ser mais visível» (DN). E o drama reside na ideia, algo ingénua, de que na condução dos assuntos do governo pode existir uma zona mágica, para além da esquerda ou da direita, onde, sem princípios, ideologias ou grelhas de interpretação, os problemas e as suas soluções surgissem de repente de forma límpida e transparente. A esquerda ficaria para depois. Isto ilustra bem o que acontece quando as ideias socialistas são abandonadas. Por exemplo, na área da política económica fica-se refém do «ar do tempo». E o ar do tempo, em Portugal, é ainda dado pelas correntes neoliberais que afirmam que o desemprego não é um problema a ser resolvido por uma política económica activa, mas sim um problema do «mercado» que se explica, e é sempre a mesma cantiga desde o século XIX, pela «interferência» política perturbadora dos seus celestiais equilíbrios.

Informação em primeira-mão: o Nuno Teles tem um excelente artigo sobre o desemprego no número de Dezembro do Le Monde Diplomatique - Edição Portuguesa.

Será que as coisas estão a mudar? III

Uma das fontes da ansiedade neoliberal tem origem no facto de distintos economistas ortodoxos, como Alan Blinder ou Paul Krugman, terem começado, com ampla repercussão pública, a pôr em causa a crença, ainda partilhada por 95% dos economistas, na bondade ilimitada dos processos de liberalização irrestrita das relações económicas internacionais (como é evidente nós fazemos parte dos 5%, o que se calhar faz de nós «populistas»). Podem, de facto, existir muitos perdedores com estes processos de liberalização e estes perdedores podem ter força suficiente, se tudo correr bem, para gerarem contra-movimentos de protecção com os mais variados efeitos. A resposta convencional a isto, diz-se agora, é o reforço do estado-providência. Surpreendente? Talvez não. Parece estar a ganhar força uma nova linha na economia política internacional: a globalização e o estado-providência seriam complementares e reforçar-se-iam mutuamente já que o segundo asseguraria a legitimidade da primeira ao instituir mecanismos que compensariam os perdedores. Assim, a crença na mão invisível do «comércio livre» é salva pela mão visível do Estado. Esta linha parece ser suportada por alguma evidência histórica e tem a grande virtude de acabar de uma vez com todos os determinismos. Afinal temos escolha. A política regressou à economia.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Será que as coisas estão a mudar? II

A crise financeira é também a crise da crença nas virtudes ilimitadas do mercado. Os liberais esclarecidos, como o editor do insuspeito Financial Times, já se aperceberam disto. Segundo Martin Wolf, há duas alternativas no sector bancário depois da crise: ou se aumenta a regulamentação ou se deixa que os bancos operem «segundo as leis do mercado» (nunca sei o que isto significa). A segunda hipótese é impensável dada o caos que geraria. Assim, «suspeito que vamos ser obrigados a caminhar em direcção à primeira». Já não era sem tempo.