segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

A velha e perigosa ideia das "contas certas"

Mafalda, de Quino

Não há novidade alguma na ideia de que é forçoso descermos a dívida pública - e, com isso, o défice orçamental; e, com isso, a despesa pública - porque só assim nos protegeremos da fúria dos mercados. Na verdade, é uma ideia velha e perigosa.  

Há cerca de 12 anos atrás, Portugal era governado por um governo PS, cujo primeiro-ministro era José Sócrates. Nessa altura e depois de um volte-face no entendimento da Comissão Europeia, Portugal começou a ser pressionado pelas instituições da UE para aplicar sucessivos programas de austeridade, como única forma de... Portugal ser poupado à fúria dos mercados. Só que, quanto mais eram aprovadas medidas de cortes na despesa pública, mais se acentuava a deriva recessiva. Os portugueses assustaram-se, a actividade económica foi contida, abrandou o ritmo de arrecadação de impostos. Subiu, antes, o desemprego e, com ele, as despesas sociais, fazendo subir o défice orçamental. 

E, apesar de todo o esforço - pasme-se! - as taxas de juro nos mercados financeiros não paravam de subir. E quanto mais subiam, mais a UE - e a direita em Portugal - exigia novas medidas de austeridade. Era preciso conter o défice orçamental, dizia-se.

Nessa altura, o discurso da austeridade era partilhado pelos jornalistas económicos, que acicatavam o Governo a ir mais longe nas medidas recessivas e de redução da despesa pública. Veja-se o Caderno nº7 - Narrativas da crise no Jornalismo Económico que tomou em conta o discurso escrito de seis deles: António Costa (então director do Diário Económico), Camilo Lourenço (então comentador), Helena Garrido (então directora do Jornal de Negócios), João Vieira Pereira (então director adjunto do Expresso), Nicolau Santos (director adjunto do Expresso, Pedro Santos Guerreiro (então director executivo do Expresso). 

Num primeiro momento, os jornalistas fizeram força para impor a subordinação do poder político (eleito) à ilógica dos mercados (não eleitos).    

“Temos de fazer o que os mercados querem” “Por mais viril que se insinue, a política partidária é o sexo fraco que está casado com a economia. Quem manda são os mercados” (PSG, 21/1/2010). “Está viabilizado o OE que mais dor pode causar aos portugueses, não por esta ou aquela medida, mas pelos sinais que vai (ou não) dar aos mercados financeiros internacionais” (HG, 25/1/2010). “Seja como for, não tem outra saída senão surpreender positivamente os mercados” (CL, 5/3/2011). “Entre o importante e o urgente, está atacado o urgente: ser levado a sério pelos mercados financeiros internacionais” (PSG, 11/3/2010) “Qualquer observador isento sabe que existem diferenças significativas entre as duas economias [Portugal e Grécia]. O problema é que os mercados não as vêm (…) É injusto? É. But life is tough” (CL, 20/4/2010). “Não há margem de erro. Os mercados internacionais não vão perdoar qualquer deslize” (AC, 22/7/2010). “Os nossos credores estão a perder a paciência (…). O OE é a bala de prata que resta” (PSG, 17/9/2010). “Como os mercados já deixaram claro, (…) são necessários resultados” (AC, 21/9/2010). “O Presidente deveria aconselhar o Governo/PS e o PSD a calarem-se. (…) O espectáculo que estão a dar, em público, não contribuiu para a defesa do que ambos dizem querer defender, a imagem de Portugal junto dos mercados e dos investidores” (AC, 27/9/2010).“Foi o ministro das Finanças quem ontem governou. E só temos a desejar que continue a sê-lo. Porque este pacote acalma os mercados” (PSG, 30/9/2010). “O OE é mau, todos o sabem, mas indispensável para evitar que o País perca credibilidade nos mercados internacionais” (AC, 30/10(2010). “A segunda lição é que não vale a pena lutar contra os mercados” (CL, 23/11/2010). 

 Num segundo momento, quiseram impor a austeridade, cuja finalidade é a de legitimar uma transferência de rendimento dos trabalhadores e pensionistas para as empresas: 

"É preciso austeridade para depois melhorarmos" “O próximo OE precisa de cortar despesas e aumentar receitas – e resistir à tentação das artimanhas. Congelar salários, progressões. (…) Mexer nos impostos. Vender património” (PSG, 6/1/2010). “A certeza de que é preciso fazer ao País o que se faz às árvores: cortar para crescer melhor” (PSG, 27/1/2010). “Está na hora de os liberais saírem da toca. Em Portugal, já concluímos que o Estado é caro, insustentável e ineficiente. Não podemos pagar tantos salários, pensões, riscos a privados, filigranas partidárias, subsídios, incentivos, apoios, enlatados sob o chapéu-de-chuva da protecção estatal. Não é uma ideologia, é viabilidade” (PSG, 3/2/2010). “Até porque, se não o fizermos, outros nos obrigarão a fazer. Por isso, o anúncio do congelamento dos salários nas empresas públicas é um bom sinal. Que outros se sigam” (NS, 27/2/2010). “O Estado só consegue reduzir a sua dívida vendendo activos públicos” (CL, 9/3/2010). “A boa noticia do PEC é que ele é mau. Mau para funcionários públicos, para alguns pensionistas, para muitas famílias da classe média, para utentes de serviços do Estado, para desempregados, para dependentes de rendimentos sociais, para investidores. Não é sadismo. É porque tinha de ser” (PSG, 11/3/2010). “E o congelamento dos apoios sociais, como o RSI, reclama de todos nós o regresso a atitudes mais solidárias e menos dependentes do Estado no combate à pobreza” (HG, 22/3/2010). “O melhor que poderia acontecer a Portugal era um plano à FMI imposto pela União. Em vez desta morte lenta, teríamos uma violenta, boa e rápida recessão. Para voltarmos de novo a crescer com saúde” (HG, 22/4/2010). “Do Estado às famílias, todos vamos ter de enfrentar a realidade de sermos mais pobres do que pensávamos. E sairemos dela menos saloios, menos deslumbrados com palácios inúteis a que chamaram investimento público” (HG, 22/9/2010). “Moral da história: a recessão é como uma dieta que se tomou inevitável para equilibrar o organismo” (CL, 16/5/2011).

Fiquemo-nos por 2010. 

Todos sabemos onde isto nos levou. Um ano depois e dada a ineficácia das medidas de austeridade, deu-se a intervenção externa da troica aplaudida à direita e pelos mesmos jornalistas económicos. A intervenção deu-se - não para endireitar as nossas contas, como foi dito - mas para salvar os maus inventimentos dumas quantas instituições financeiras (aqui e noutros países), num esforço a ser pago por toda a população portuguesa. 

No final, ficámos com uma dívida pública muito maior (e com as contas orçamentais mais limitadas), com um desemprego muito mais elevado, com os serviços públicos desarticulados e depauperados, com uma histórica emigração qualificada, com a pobreza aumentada, com a desigualdade social instalada ampliando-se o fosso entre ricos e pobres; com a competitividade nacional não melhorada. Em resumo: um esforço do qual estamos - sobretudo os mais pobres e os trabalhadores e pensionistas, bem como os serviços públicos - ainda a tentar recuperar... doze anos depois. 

Está a perceber onde levará a repetição das mesmas políticas?   

 

3 comentários:

TINA's Nemesis disse...

"Carrega neles Merkel." - Camilo Lourenço

Mais um exemplo do sadismo proto-fascista.

E quase em 2023 onde estão os propagandistas que são cúmplices do programa de degradação e roubalheira nacional? Pois é, sempre protegidos e a fingir que também eles sofrem com a austeridade, "estamos todos juntos nisto!" eu, tu e o Camilo Lourenço no mesmo barco...

Anónimo disse...

Fico com vontade de ir reler o meu exemplar de Toda a Mafalda, que está há anos no mesmo lugar, sem que lhe mexam.
A sabedoria popular condensa dezenas de compêndios de economia (neo)liberal... ou (neo)fascista.

TINA's Nemesis disse...

Um Maarten Verwey que faz parte dessa coisa que se chama "Comissão Europeia" disse:

"Se aplicarmos o nosso novo sistema vai ser necessário algum esforço orçamental extra"

https://eco.sapo.pt/2022/12/27/diretor-geral-de-economia-da-comissao-europeia-pede-esforco-extra-a-portugal/

MAIS EUROPA!!

E o Costa, o Marcelo, o Partido "Socialista", o Partido "Social Democrata", o Chega, o Iniciativa Liberal concordam com "mais Europa" e também com mais NATO... Claro! Em tempos de degeneração capitalista é necessário estruturas anti-democráticas repressivas para proteger o Capital!