12 minutos de leitura
“Inflação” estará entre as palavras mais repetidas ao longo deste ano. A subida generalizada dos preços, sobretudo desde o início da invasão russa da Ucrânia, atingiu a maioria das economias e reduziu o poder de compra dos trabalhadores. Além disso, as medidas adotadas pelos governos e bancos centrais têm sido alvo de intenso debate nos últimos meses. Este é um resumo do que sabemos até agora, dividido em dez pontos.
1. Onde está concentrada a inflação?
A primeira coisa que sabemos sobre a inflação é que tem estado maioritariamente concentrada em dois setores: o da energia e, em menor escala, o dos bens alimentares. Os dados do Banco Central Europeu (BCE) mostram que a subida dos preços nestes dois setores tem sido superior ao valor da inflação geral, ao passo que em outros setores os preços têm subido menos.
Os números publicados pelo BCE referentes a Outubro dizem-nos que embora a taxa de inflação geral na Zona Euro fosse de 10,7%, havia uma diferença substancial entre a subida dos preços nos setores da energia (41,9%) e bens alimentares (13,1%) e a que se verificava para os restantes bens industriais (6%) e para o setor dos serviços (4,4%). Este é um aspeto decisivo para perceber a natureza da inflação e avaliar as medidas mais adequadas.
2. São os salários que estão a provocar a inflação?
Se olharmos para a evolução dos salários nos países da OCDE, percebe-se que estes têm crescido muito pouco e não acompanham a escalada dos preços. Os salários reais – isto é, ajustados à evolução dos preços – estão a cair acentuadamente na esmagadora maioria dos países, como se vê no gráfico ao lado. Ou seja, apesar de os preços estarem a subir de forma acentuada, os trabalhadores não têm conseguido garantir aumentos salariais que compensem esta tendência (nem de perto).
3. E a espiral inflacionista?
Nos últimos meses, tornou-se frequente ouvir a ideia de que nos encontramos perante o risco de uma "espiral inflacionista" causada pelo aumento dos salários. O ministro das Finanças, Fernando Medina, disse que a subida dos salários seria “ilusória” porque provocaria aumentos de preços na mesma proporção. A ideia subjacente à restrição salarial é a de que, no contexto atual, não se pode sobrecarregar as empresas, que seriam obrigadas a repercutir o custo dos aumentos salariais nos preços que cobram, agravando a inflação.
No entanto, a experiência histórica não nos permite afirmar que existe uma relação direta entre aumentos salariais e aumentos dos preços, como concluiu um estudo de economistas da Reserva Federal norte-americana. A relação é bastante mais complexa e depende de outros fatores, como o peso dos sindicatos e da negociação coletiva, o poder de mercado das empresas ou a origem da inflação.
A atual situação tem muito pouco a ver com a que se registou no último grande surto inflacionista nos anos 70: se, nessa altura, os salários dos países da Zona Euro subiam numa tentativa de acompanhar a subida dos preços, o que temos hoje é uma quebra significativa dos salários reais (a amarelo no gráfico ao lado, retirado de uma análise do BCE). Aquilo a que os economistas costumam chamar "efeitos de segunda ordem" - isto é, aumentos consecutivos de salários e preços - não se têm verificado.
Se olharmos para a história das últimas décadas, o que vemos é que, com a queda da sindicalização, o trabalho recebe uma parte cada vez menor do rendimento total. As taxas de sindicalização têm caído a pique na maioria dos países europeus, como se vê no gráfico abaixo, publicado pelo BCE. Portugal não foi exceção: a taxa de sindicalização caiu de 60,8% em 1978 para apenas 15,3% em 2016 e a cobertura dos acordos coletivos de trabalho também diminuiu substancialmente. A erosão do poder negocial dos trabalhadores reflete-se numa repartição cada vez mais desigual do rendimento.
a) Constrangimentos da oferta
A subida dos preços da energia e de outras matérias-primas está a ter previsíveis efeitos de contágio em boa parte dos mercados. Os aumentos registados no preço de bens como o petróleo e o gás traduzem-se nos custos da eletricidade e do transporte, o que, por sua vez, tem impacto na maioria dos processos produtivos e cadeias de distribuição. A subida dos custos intermédios para a maioria das empresas reflete-se nos preços que cobram.
O impacto da invasão russa da Ucrânia é inequívoco. A Rússia é uma das principais fontes de petróleo e gás natural da Europa e, juntamente com a Ucrânia, é responsável por uma parte substancial das exportações mundiais de cereais. As quebras na produção e a incerteza em torno do embargo à economia russa explicam, em certa medida, estes aumentos de preços. No entanto, não são as únicas variáveis a ter em conta.
Uma análise publicada recentemente pelo BCE mostra que “os lucros unitários têm crescido a um ritmo sem precedentes” e têm sido “um fator-chave para a inflação” na Zona Euro, como se vê no gráfico ao lado. Os dados mais recentes do Eurostat apontam no mesmo sentido. E a conclusão é semelhante àquela a que o Economic Policy Institute chegou no que diz respeito à dinâmica dos preços nos EUA.
Nos setores da energia e da distribuição de bens alimentares, os mercados são tipicamente dominados por um pequeno conjunto de grandes empresas. O enorme poder de mercado que detêm permite-lhes aproveitar o contexto turbulento para aumentar as suas margens. Os lucros extraordinários são o denominador comum das contas apresentadas pelas grandes empresas da energia e da distribuição.
5. O impacto da inflação é igual para todos?
A subida dos preços a um ritmo a que já não assistíamos há várias décadas está a afetar a maioria das carteiras, mas o impacto não é igual para todos. Um estudo publicado em julho por economistas do FMI estima que o aumento médio do custo de vida nos países europeus seja de cerca de 7% ao longo do ano. No entanto, os impactos variam consoante a classe social. Na esmagadora maioria dos países, o aumento do custo de vida para os 20% mais ricos é menor que o dos 20% mais pobres, como se vê no gráfico acima. O motivo é relativamente intuitivo: os grupos de menores rendimentos gastam maior proporção dos seus salários em eletricidade, gás e bens alimentares, onde a inflação se tem concentrado.
Este impacto desigual tem implicações na repartição dos custos da crise: enquanto os mais ricos sentem a inflação em atividades de lazer facilmente substituíveis, os grupos de menor rendimento são afetados pelos preços de bens essenciais dos quais é mais difícil abdicar. As famílias com rendimentos mais baixos podem ter de enfrentar uma escolha entre a alimentação e o aquecimento das casas, o que é especialmente dramático em países com níveis elevados de pobreza energética, como Portugal.
A resposta das autoridades ao regresso da inflação tem-se dividido entre a política monetária e a orçamental. Do lado da política monetária, que tem assumido o papel de destaque, a maioria dos bancos centrais está a subir consideravelmente as taxas de juro, dificultando as condições de financiamento. As exceções mais relevantes são o Japão e a China.
Depois de um período longo em que as taxas de juro foram mantidas em níveis muito baixos, este aumento generalizado das taxas de juro é um movimento que não tem precedentes nas últimas décadas.
7. Subir os juros é uma boa política?
O instrumento que os bancos centrais têm para controlar a inflação é a taxa de juro, que estimula e/ou restringe a procura. Subir a taxa de juro diminui o consumo e o investimento privado, reduzindo a procura agregada. O problema é que se a inflação atual não resulta da procura, mas sim da oferta, como vimos até agora, esse instrumento não só é ineficaz como é socialmente injusto.
Não é eficaz porque não atua sobre os problemas subjacentes à inflação: constrangimentos na produção e distribuição de matérias-primas como a energia e os bens alimentares, algo que até a presidente do BCE reconheceu recentemente. Aliás, os países que começaram a aumentar as taxas de juro mais cedo e de forma mais agressiva não evitaram uma inflação semelhante à dos restantes, como notou o The Economist.
E não é socialmente justo porque comprime a procura, afetando a atividade económica e o emprego. Pode conter os preços, mas apenas à custa da compressão dos rendimentos e da destruição de capacidade produtiva, ou seja, do aumento do desemprego. É o exemplo do tratamento que cura a doença matando o paciente.
8. Subir os juros é inevitável?
Um segundo argumento utilizado por quem defende a subida das taxas de juro, sobretudo na Zona Euro, é o de que esta se tornou inevitável a partir do momento em que a Reserva Federal dos EUA começou a fazê-lo. A medida tomada pelo banco central norte-americano aumenta a pressão para uma fuga de capitais para os EUA devido aos juros mais elevados que o país oferece, o que faz aumentar o valor do dólar face a outras moedas e encarece ainda mais os produtos importados.
No entanto, é pouco provável que esta dinâmica possa ser travada eficazmente pelos restantes países através da cópia da política monetária norte-americana. O dólar continua a ser a moeda de reserva internacional, isto é, a mais usada no comércio internacional e a referência para a fixação de preços nos mercados globais (como no caso do petróleo). Em períodos de crise, os investidores tendem a procurar refúgio em ativos considerados mais seguros, o que explica a pressão para a fuga de capitais de outras regiões do globo para a economia norte-americana.
Além disso, a Zona Euro é uma região heterogénea e a depreciação do euro não tem impactos iguais para todos os países. Se, por um lado, países como a Alemanha têm motivos para querer evitar uma desvalorização da moeda devido ao impacto que isso teria nas importações de algumas matérias-primas, alguns países periféricos como Portugal beneficiam de uma redução do valor de uma moeda claramente sobreavaliada face às condições das suas economias. A desvalorização cambial torna as exportações destes países mais baratas para o resto do mundo, pelo que pode ter efeitos positivos para o crescimento.
Convém ter em conta que a pressão para a fuga de capitais existe porque, ao longo das últimas décadas, a maioria dos países abraçou sem reservas o processo de liberalização dos movimentos de capitais. Não há nada de inevitável neste processo. Na verdade, os benefícios da liberalização integral têm sido postos em causa pela evidência de que os países que a promovem se tornam mais vulneráveis a ciclos de expansão e contração do crédito externo, a movimentos financeiros especulativos e às decisões de política monetária dos EUA, dado o papel central do dólar.
O controlo dos movimentos de capitais é um requisito para um país que queira manter algum controlo sobre a sua política monetária (vejam-se exemplos como o da China). E o mesmo se aplica a uma região como a Zona Euro, sobretudo quando há bons motivos para manter taxas de juro baixas: evitar uma recessão que aumente o desemprego e as desigualdades e não dificultar os investimentos verdes necessários para a transição energética.
Um terceiro argumento para defender a atual abordagem dos bancos centrais foi o que usou o governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, em entrevista ao Público. Centeno defende a opção do BCE com o argumento de que "a inflação é uma perturbação significativa para o crescimento económico quando é superior a 2%" e que, por isso, "esse fenómeno inflacionista por si só, se não estiver controlado, gerará um comportamento negativo da economia e trará recessão".
É isso que nos diz a evidência empírica? O estudo "Inflação e crescimento: em busca de uma relação estável", publicado por dois economistas do Banco Mundial, contraria a ideia expressa por Centeno: embora a subida dos preços possa ter um efeito negativo no crescimento económico, isso só se verifica a partir de níveis bastante elevados de inflação. Os autores concluem que "não se encontra evidência de qualquer relação entre a inflação e o crescimento quando as taxas anuais de inflação são inferiores a 40%", valores bastante acima dos que se registam atualmente. Nos dados da inflação e da taxa de crescimento real do PIB per capita para o conjunto da OCDE, no gráfico ao lado, também não é observável uma relação clara.
Na verdade, níveis moderados de inflação estão associados a períodos de crescimento real e baixo desemprego . Não há evidência que permita a Centeno defender a ideia de que os atuais níveis de inflação implicam um custo maior do que o de aumentar os juros e comprimir a procura e os rendimentos. Ao aumentar as taxas de juro, os bancos centrais arriscam-se a provocar uma recessão que tem impacto sobretudo sobre os mais vulneráveis.
No atual contexto, uma política económica progressista deve ter duas prioridades: proteger o poder de compra da maioria das pessoas e combater os problemas da oferta de energia, de forma a reduzir as pressões inflacionistas. Para isso, podemos dividir as respostas necessárias entre aquelas que produzem efeitos no curto prazo e as de médio prazo.
As medidas de curto prazo têm como objetivo alterar a repartição dos custos da inflação entre os diferentes grupos e promover alguma justiça social. Para isso, a tributação dos lucros extraordinários e o controlo de preços estratégicos são medidas que permitem travar o aproveitamento da crise por parte das grandes empresas e desencorajar a prática de preços especulativos. Estas medidas temporárias permitem “comprar tempo” para resolver problemas estruturais.
Além destas, é necessário garantir uma aplicação justa das receitas públicas para proteger o poder de compra dos trabalhadores por via salarial. Ao contrário do que se tem argumentado, os aumentos dos salários não têm de se traduzir em aumentos de preços na mesma proporção: uma parte pode ser acomodada pela diminuição das margens de lucro ou por via do crescimento da produtividade que se tem verificado. Além disso, países como Portugal têm níveis de desemprego, sub-emprego e capacidade instalada por utilizar que indicam que a economia está longe de atingir potencial. Por outras palavras, a produção tem margem para aumentar sem haver pressão sobre os preços.
As medidas de médio prazo são as que atuam sobre as condições estruturais da economia. A crise dos preços da energia confirma a necessidade de um plano de investimento público no setor da energia, tanto para reforçar a capacidade de produção de energias renováveis como para promover a redução do consumo de forma socialmente justa, através da promoção dos transportes públicos – em particular, da ferrovia – para substituir o recurso aos carros e o reforço da eficiência energética dos edifícios, para reduzir a necessidade de aquecer as casas no Inverno e arrefecê-las no Verão.
Esta estratégia cumpre dois objetivos principais: reorientar as atividades económicas em linha com o combate às alterações climáticas e eliminar o consumo de combustíveis fósseis que são maioritariamente importados, o que ajudaria a melhorar o saldo da balança de pagamentos do país. E a evidência empírica aponta para que estes investimentos tenham benefícios que superam os custos iniciais. Para resolver problemas estruturais, uma política económica progressista tem de atuar na raiz do problema.
Sem comentários:
Enviar um comentário