terça-feira, 16 de agosto de 2022

Economia política traduzida


Em nota anterior recomendei a leitura e tradução de um artigo escrito por um raro economista político soberanista italiano chamado Thomas Fazi, publicado na eclética unherd. O leitor Afonso Anjos teve a generosa iniciativa de o traduzir. Muito obrigado:  

Como Mario Draghi deu cabo de Itália - Uma crise está a crescer nas ruas de Itália

A defenestração de Mario Draghi deixou o establishment italiano – e sem dúvida o internacional – horrorizados.  Isto não surpreende. Quando foi nomeado Primeiro-Ministro italiano no começo do último ano, as elites política e económica da Europa deram as boas-vindas à sua chegada como se fosse um milagre. Virtualmente todos os partidos do parlamento italiano – incluindo os dois partidos ex-‘populistas’ que ganharam as eleições em 2018, o Movimento Cinco Estrelas e a Liga – deram o seu apoio. O tom da discussão pode ser bem capturado pelo poderoso governador da região de Campania, Vincenzo De Luca (PD), que comparou Draghi a “Cristo”.

Toda a gente estava de acordo: um governo de Draghi seria uma benção para o país, uma última oportunidade para redimir os seus pecados e tornar a “Itália grande outra vez”. Draghi, diziam eles, simplesmente em virtude do seu “carisma”, “competência”, “inteligência” e “importância internacional”, seria capaz de manter os mercados da dívida à distância, aplicar as muito urgentes reformas, e relançar a estagnada economia italiana. 

Infelizmente, a realidade não correspondeu às expetativas: Draghi deixou atrás de si um país em estilhaços. A última previsão macroeconómica da Comissão Europeia indica que a Itália irá ter o mais lento crescimento económico do bloco no próximo ano, apenas 0.9%, em consequência da queda nas despesas dos consumidores, por causa do aumento dos preços, e menor investimento privado, um resultado do aumento dos custos da energia e do crédito, bem como das perturbações no fornecimento do gás russo.

A Itália tem também uma das mais rápidas taxas de crescimento da inflação na Europa – que está neste momento em 8.6%, o nível mais elevado em mais de três décadas. As taxas de juro da divida pública italiana têm aumentado de forma sustentada desde que Draghi subiu ao poder, quadruplicando durante o seu mandato; hoje estão no nível mais elevado da última década. 

Por outro lado, esta “policrise” começa a fazer o seu dano na sociedade italiana: 5.6 milhões de italianos – quase 10% da população, incluindo 1.4 milhões de menores de idade – vivem neste momento em pobreza absoluta, o nível mais elevado de que há registo. Muitos destes trabalham, e é provável que este número aumente, à medida que os salários reais continuem a cair ao ritmo mais rápido do bloco. Entretanto, quase 100.000 pequenas e médias empresas (PMEs) estão em risco de insolvência – um aumento de quase 2% comparado com o último ano.


Tudo graças ao “Super Mario”. Claro que poderíamos argumentar que outros países estão a ter problemas semelhantes, mas seria um erro não responsabilizar Draghi. Ele foi um dos mais audíveis apoiantes das medidas que desembocaram nesta situação, tendo sido uma importante pressão para a aplicação de sanções mais duras em relação a Moscovo – sanções que estão sobretudo a prejudicar as economias europeias, enquanto deixam a Rússia praticamente intocada. 

Draghi até se gabou das medidas firmes adotadas por Itália para afastar o país do gás russo – sendo que o resultado disto é que a Itália é hoje o país que paga um preço mais elevado pela eletricidade no mercado grossista em toda a UE. O absurdo destas políticas torna-se ainda mais óbvio quando consideramos que a sua solução para reduzir a dependência italiana do gás russo foi reativar as centrais termoelétricas movidas a carvão – carvão esse que a Itália em grande medida importa da Rússia. 

Pior ainda, Draghi fez pouco ou nada para proteger os trabalhadores assalariados, famílias e pequenos negócios do impacto destas políticas. De facto, as poucas medidas “estruturais” tomadas pelo seu governo foram todas destinadas a promover a privatização, liberalização, desregulação e consolidação fiscal – tais como: abrir à privatização esses poucos serviços públicos que permaneciam foram do âmbito dos mercados, “flexibilizar” ainda mais o trabalho, colocar praias privadas a concurso público pela primeira vez em décadas, ou tentar expandir os serviços de taxi para incluir operadores como a Uber, o que provocou grandes protestos. 

Para qualquer um que tenha uma pequena ideia da ideologia de Draghi, isto não é de todo surpreendente. Como já argumentei antes, Mario Draghi é a incarnação corpórea do “neoliberalismo”. Nem tão pouco é surpreendente que as suas políticas não tenham sido bem-sucedidas, visto que a lógica neoliberal da UE, baseada na privatização, austeridade orçamental e compressão dos salários – na qual Draghi tem tido um papel crucial na sua implementação desde o início dos anos 90 – é a principal razão pela qual a Itália está no caos em que está.  Draghi, para lá disso, também foi responsável por apertar ainda mais a corda da UE que asfixia a economia italiana ao ser incansável na difusão da narrativa que a Itália desesperadamente precisava dos fundos de recuperação Europeus da Covid para relançar a sua economia, e que para poder aceder a esses fundos precisaria de diligentemente implementar as reformas pedidas por Bruxelas.

No entanto, em termos macroeconómicos, os fundos em questão são insignificantes, e não são nem de perto o que seria necessário para terem um impacto significativo na economia Italiana. Mas mesmo assim, vêm com condições bastante restritas. O “fundo de recuperação” Next Generation EU da UE, no fundo trata-se disto: aumentar o controlo de Bruxelas sobre as políticas orçamentais dos seus estados-membro e reforçar o regime tecnocrático e de controlo autoritário da UE. E a quem melhor do que Draghi poderia a tarefa de colocar em prática estas medidas ser confiada? Como ele próprio realçou, o “caminho de reformas” criado pelo seu governo significava que “nós criámos as condições para que o trabalho [da recuperação da UE] possa continuar, independentemente de quem esteja [no governo]” – garantindo então que governos futuros não se desviariam do caminho de retidão. 

Draghi, no entanto, não deixa atrás de si apenas uma economia de rastos, mas também uma sociedade profundamente fraturada e dividida. Ele é o homem responsável por criar as mais punitivas, discriminatórias e segregacionistas políticas de vacinação no Ocidente que, não apenas excluíram milhões de pessoas não vacinadas – incluindo crianças – da vida social, ao estender os passaportes de vacina a praticamente todos os espaços públicos, mas também proibiram muitas pessoas de irem trabalhar. Para além disso, ele ajudou a fazer dos não-vacinados o alvo de discurso de ódio institucionalizado, como quando infamemente disse: “Não se vacinam, ficam doentes, morrem. Ou então, matam”

Tudo isto pode oferecer uma explicação para a razão pela qual, de acordo com uma sondagem recente, 50% dos italianos dizem não estar felizes com o trabalho do governo. E ainda assim, apesar destes resultados pouco impressionantes, quando Draghi inicialmente anunciou a sua intenção de se demitir, o establishment italiano entrou num estado apoplético. No que ficará para a história como uma das demonstrações mais patéticas do conformismo bajulador da sociedade italiana, quase todas as categorias profissionais que se possam imaginar, apressaram-se a lançar o seu próprio apelo pedindo a Draghi para ficar – não apenas homens de negócios ricos, como seria de esperar, mas também médicos, farmacêuticos, enfermeiros, presidentes de câmara, reitores de universidades, ONGs, intelectuais progressistas e ainda a CGIL, o maior sindicato do país. 

Ainda mais lamentável, os media Italianos deram uma cobertura maciça a “manifestações pro-Draghi” – que não tinham mais que algumas dúzias de pessoas.  Talvez o mais cómico tenha sido uma das maiores agências de notícias do país, a Adnkronos, ter noticiado que inúmeros sem-abrigo teriam vindo a público para demonstrar o seu apoio a Draghi. Um destes foi citado a dizer: “Draghi está a fazer a diferença. Itália voltou a ganhar prestígio e credibilidade graças a ele. Como uma pessoa sem-abrigo posso testemunhar o facto de termos mais atenção e isso se dever a Draghi”.

O establishment internacional Ocidental também mostrou todo o seu apoio a Draghi.  Toda a gente, desde o Financial Times ao Guardian ou ao Comissário Europeu para a Economia, Paolo Gentiloni, veio explicar a tragédia que seria para a Itália perder Draghi – e de facto para a Europa como um todo. Gentiloni chegou mesmo a dizer que uma “tempestade perfeita” iria varrer o país se Draghi saísse; enquanto que o Guardian se limitou a instruir os deputados italianos que Draghi “devia ficar por agora”. O New York Times, não ironicamente, afirmou que a saída de Draghi poria um fim ao “breve período dourado” que ele começou em Itália. Conversa de atores estrangeiros a meterem-se em assuntos Italianos.

Então porque é que, apesar de tanta pressão, três partidos tiraram o tapete ao governo de Draghi na semana passada? Parte da explicação pode residir no quanto Draghi conseguiu alienar partidos como o Movimento Cinco Estrelas e a Liga – recusando-se a envolvê-los em quase todas as suas políticas, ou em reconhecer a mais pequena crítica. Em mais de uma ocasião, Draghi tornou muito claro o que era para ele o papel do parlamento: aprovar sem questionar as decisões tomadas pelo governo. O que se torna mais claro quando se considera a quantidade de vezes que Draghi recorreu aos votos de confiança.

No seu discurso no Senado da semana passada, Draghi foi ainda mais explícito: depois de dizer que ele tinha decidido reconsiderar a sua resignação porque isso era “o que o povo queria”, basicamente disse ao Parlamento que estava disposto a permanecer como Primeiro-Ministro apenas enquanto os partidos estivessem de acordo em não interferir em nenhuma das decisões futuras do governo. Para muitos dos presentes no Parlamento, a arrogância e a megalomania do discurso de Draghi foram excessivas – e para lá disso, Berlusconi estaria à espera do momento certo para vingar a sua deposição por Draghi, em 2011, quando este era presidente do BCE.

No entanto, não se deve sobrevalorizar a importância da revolta anti-Draghi no parlamento. No fim de contas, Draghi fez apenas um pouco mais do que sussurrar uma verdade desconfortável aos partidos: “Não têm nenhum poder real, aceitem-no apenas”. No entanto, essa é uma verdade que os partidos políticos não estão prontos para aceitar. Na verdade, eles não estão dispostos a confrontar-se com a contradição fundamental entre a arquitetura institucional formal do país – a de uma democracia parlamentar – e aquilo que podemos chamar de arquitetura institucional “realmente existente”, na qual o Parlamento e, por definição, os partidos políticos não têm quase poder, porque o próprio governo, no contexto da zona euro, não tem quase nenhuma autonomia económica. Os partidos sabem disto, mas não estão dispostos a admiti-lo (a eles próprios, mas sobretudo aos eleitores).

Isto deixa-os num estado de permanente dissonância cognitiva, desembocando naquilo que podemos chamar “o ciclo político do constrangimento externo”. Nos países “normais”, os partidos procuram o consenso sobre diferentes plataformas eleitorais – e, como muitas vezes acontece, os partidos que prometem “mudança” costumam ganhar. No entanto, ao contrário dos países “normais”, os partidos que chegam ao governo rapidamente percebem que não têm os instrumentos “normais” para fazer a política económica necessária para realmente mudar alguma coisa em termos socioeconómicos. De facto, têm poucas outras opções que não seja a de alinhar com o que Bruxelas e Frankfurt dizem e, se não entrarem no jogo, o BCE está sempre pronto a aumentar a temperatura. Nesse momento, se o governo não recuar, o BCE criará uma crise financeira em larga escala (veja-se a Itália, em 2011, ou a Grécia, em 2015) – o que normalmente leva os partidos políticos a virarem-se para tecnocratas apoiados pela UE para resolver o problema que a UE criou numa primeira instância. 

E mesmo que o governo ceda, a tensão crescente entre as obrigações do constrangimento externo e as necessidades dos cidadãos, as quais os partidos não têm as ferramentas para resolver, leva-os a recorrer a tecnocratas para resolver o impasse. Estes implementam as medidas pelas quais os partidos não querem assumir a responsabilidade. Então, quando as novas eleições se aproximam, os partidos políticos sentem a necessidade de se relegitimar aos olhos dos eleitores e então voltam a pôr o génio tecnocrático na lâmpada – até à próxima crise, que coloca o novo ciclo em movimento. 

Isto é em grande medida a história do que aconteceu entre 2018 e a saída de Draghi, à medida que o Movimento Cinco Estrelas e a Liga passaram dum populismo anti-UE ao apoio a Draghi ao fim de apenas alguns anos. E as próximas eleições vão pôr em movimento um novo ciclo, possivelmente desencadeado por um governo de centro-direita liderado por Giorgia Meloni. Mas à medida que a situação económica e social continua a agravar-se, estes ciclos estão condenados a tornarem-se cada vez mais curtos.  Um governo futuro de centro-direita – “populista” ou não – não teria nenhuma capacidade de resolver a crise deixada por Draghi. Como sempre, Bruxelas e Frankfurt são quem decide. 

Com o lançamento do seu recente Transmission Protection Instrument (TPI), o BCE muniu-se da ferramenta que tecnicamente lhe permite fazer o que “for preciso” para limitar os diferenciais de taxas de juro entre os paises da zona euro, e potencialmente evitar crises financeiras futuras. Essa intervenção, no entanto, está condicionada à obediência ao enquadramento orçamental europeu e às reformas definidas no “plano de recuperação” de cada país – já blindadas por Draghi. Mas estas não farão nada para acabar com a crise económica e social que se vislumbra; na verdade, o mais certo é agravarem-na. Por outras palavras, o próximo governo italiano, se se quiser manter financeiramente à tona, terá poucas outras escolhas que não sejam seguir os diktats económicos da UE – ou então... Neste contexto, quanto tempo até que os últimos restos de legitimidade democrática em países como a Itália colapsem? E aí, o que fazer então? No final, a próxima crise do euro vai muito mais provavelmente rebentar nas ruas da Europa do que nos mercados financeiros. 


2 comentários:

Anónimo disse...

Importante e bem traduzido. Agrilhoados nesta UE/Euro made in Germany. Saltar da frigideira para o fogo?.
"...Como sempre, Bruxelas e Frankfurt são quem decide....". Está decidido.
Pergunta: E quem decide o que Bruxelas e Frankfurt vão "decidir"?.

"...This unelected gaggle of insufferable mediocrities – from von der Leyden and Borrell to that piece of Norwegian wood Stoltenberg – may dream they live in the pre-1914 era, when Europe was at the political center..."
(Pepe Escobar)

Anónimo disse...

Não há democracia nesta Europa, os governos gerem a pobreza ao mesmo tempo que salvaguardam os interesses dos mais ricos, é a imortalidade total.