domingo, 3 de abril de 2022

Realismo anti-imperialista

 
 
Baku, há quase 102 anos atrás, um momento fundamental do anti-imperialismo

Vale sempre a pena ler as análises mais ou menos realistas de João Pedro Teixeira Fernandes sobre relações internacionais, já que está muitos furos acima da pura propaganda à OTAN-UE, do que passa por linha editorial no Público

No entanto, a sua visão da história internacional das “democracias liberais” e das suas alianças é aqui e ali problemática. Tropecei logo na sua referência à Primeira Guerra Mundial: teria sido uma luta entre as tais “democracias liberais”, com a relevante excepção da Rússia, de um lado, e impérios, do outro. 

França e Grã-Bretanha não tinham sufrágio universal, mas tinham os dois maiores impérios coloniais, não tendo diferenças ético-políticas de maior em relação às potências centrais. O liberalismo foi tão escassamente democrático quanto amplamente imperialista ao longo da sua história. A Primeira Guerra Mundial foi um mortífero conflito entre potências imperialistas, convém lembrá-lo, até para não esquecer o grande levantamento anti-colonial do século XX e o papel de uma país socialista nascido em 1917 no apoio à sua concretização, bem como na derrota dessa brutal radicalização do imperialismo europeu que foi o império nazi. Este último, qual conhecido efeito bumerangue, industrializou dentro da Europa práticas genocidas anteriores, bem testadas fora do continente pelas potências europeias.

Quanto ao resto, não compreendo a afirmação genérica sobre um ocidental “quadro mental que combina um idealismo superficial com falta de vontade de assumir sacrifícios” e que prevaleceria hoje em dia. Sabemos todos quem é sacrificado em nome da guerra em sociedades capitalistas brutalmente desiguais. E é de um óbvio ululante que na história do imperialismo, com tantos estatocídios mais ou menos recentes no currículo, as referências idealistas raramente passaram de pura ideologia, ou seja, de pura ofuscação. Basta pensar que o racista e imperialista Woodrow Wilson passa por pai do idealismo, naturalmente liberal, em algumas histórias intelectuais do século XX. 

É por estas e por muitas outras que mais de metade do mundo não alinha nas narrativas ocidentais armadas hoje em dia. E até tem algum poder para tal recusa. Já não estamos, realmente, num mundo unipolar, o tal do fim da História. E muito menos num mundo em que funcionários europeus punham e dispunham na China ou em partes dela.

2 comentários:

Aleixo disse...

Para além da incontornável deslocação do "centro do mundo", o califado do Ocidente perdeu há muito, a moral.

O poder hegemónico, sustentado pela vanguarda tecnológica, foi-se!

Enquanto o invadir da privacidade era exclusivo do califa, estava tudo bem...

os ajudante à missa, nem se davam à indignação,

de tão subservientes que se queriam mostrar!

É uma chatice mas, lá terão de partilhar... o Espaço!

Assange e Snowden, ilustram a realidade do califado.

Francisco disse...

Ainda perplexo, tento digerir a notícia que dá conta de que a National Gallery de Londres rebaptizou um quadro do impressionista Edgar Degas de "Bailarinas russas", como era conhecido até agora, para "Bailarinas ucranianas", justificando a sua decisão com o facto de ser quase certo que as bailarinas eram ucranianas e não russas. Vem-me à memória "O Nome da Rosa" e essa luta ancestral entre a razão e o obscurantismo que o filme homónimo tão bem retratou. Estamos de facto a viver um mergulho cósmico no reino do terror mais absoluto - ideológico, económico, militar e psicológico - que mais não visa do que garantir às forças do império a manutenção de um determinado status quo. Os tempos são de uma clara e profunda divisão de águas e, julgo bem, muito em breve nos veremos confrontados com a mais fragmentadora das dicotomias: ou eles ou nós.