Vale a pena olhar para as principais origens da inflação. Os dados da Zona Euro mostram que a subida do índice harmonizado de preços do consumidor se deveu sobretudo à energia e, em menor dimensão, aos produtos alimentares. Ambos têm uma relação direta com a guerra na Ucrânia: a Rússia é uma das principais fontes de petróleo e gás natural da Europa e, juntamente com a Ucrânia, é responsável por uma parte substancial das exportações mundiais de cereais. As quebras na produção resultantes da guerra e a incerteza em torno do possível embargo à economia russa explicam, em boa medida, o aumento dos preços destes produtos, que depois se estendem a vários mercados.
Noutros contextos, a escalada dos preços motivou pressão acrescida por parte dos sindicatos para tentar garantir que os salários reais os acompanhavam. O problema é que, ao longo das últimas décadas, as taxas de sindicalização têm caído a pique na maioria dos países europeus, como se vê no gráfico ao lado (retirado de um relatório da OCDE). Portugal não foi exceção: a densidade sindical (isto é, a percentagem de trabalhadores sindicalizados na força de trabalho total) caiu de 60,8% em 1978 para apenas 15,3% em 2016, segundo os dados da mesma instituição. O declínio da organização coletiva e a erosão do poder negocial perante os empregadores são dois dos principais motivos para que os salários não estejam a acompanhar a inflação.
O aumento das taxas de juro, defendido por muitos economistas como resposta à inflação, teria tendência para agravar este cenário. Aumentar as taxas de juro tem um efeito principal: dificultar a recuperação da atividade económica e do emprego, ao tornar o crédito mais caro para as empresas e famílias. Por outras palavras, uma política monetária mais restrita serve apenas para controlar a inflação através da compressão dos salários. Na década de 1980, o aumento da taxa de juro nos EUA, que ficou conhecido como “choque de Volcker” (em alusão ao então presidente da Reserva Federal, Paul Volcker), foi eficaz a conter a inflação mas desencadeou uma profunda recessão cujos custos foram suportados pelos mais vulneráveis.
Há outros instrumentos que os governos podem utilizar para fazer face à subida dos preços. No curto prazo, além do controlo direto sobre a evolução salarial do setor público, também têm poder de influência sobre a negociação dos salários no setor privado. Em Portugal, o governo tem capacidade para melhorar as condições negociais dos trabalhadores através de um reforço da proteção laboral e da promoção da negociação coletiva. Também há medidas que permitem mitigar o aumento dos preços e repartir os custos da crise, como a regulação das margens de comercialização de produtos específicos, que já foi aplicada no caso das máscaras e do gel desinfetante no início da pandemia, ou a tributação dos lucros extraordinários das grandes empresas em setores como o da energia, sugerida pela OCDE devido ao facto de o setor estar a registar ganhos significativos com a crise. Para já, o governo português não parece disposto a adotá-las.
No entanto, para evitar que a inflação se torne persistente, é preciso outro tipo de medidas. A médio e longo prazo, a resposta passa pelo investimento público. A crise dos preços da energia reforça a necessidade de um plano de investimentos nos transportes coletivos, na produção de renováveis e na promoção da eficiência energética dos edifícios, com dois objetivos principais: promover a reorientação das atividades económicas em linha com o combate às alterações climáticas e reduzir substancialmente o consumo de combustíveis fósseis maioritariamente importados, melhorando o saldo da balança de pagamentos do país. Para resolver problemas estruturais, as políticas públicas têm de atuar na raiz do problema.
2 comentários:
Caro Vicente,
Leio sempre com muita atenção os posts que aqui publica bem como os artigos que escreve para o LeMonde Diplo
Os LdB e o LmD aguçaram a minha curiosidade por Economia política embora não tenha nenhuma formação específica na área.
A propósito de desvalorização cambial e inflação, gostava de colocar uma questão: nos últimos tempos o Rublo depois de impostas as sanções chegou a estar a 100rub/1$, no entanto, depois de várias medidas tomadas pelo BC Russo, como a fixação do preço do ouro em 5000RUB/grama de ouro, ou a obrigatoriedade de fazer os pagamentos do gás e petróleo em Rublos, o Rub já está perto de valores pre-invasao 83RUB/$
Alguns destes sites que li estavam em super êxtase porque esta fixação do Rublo ao ouro poderia ser estendida também a outras mercadorias: trigo, petróleo, gás,etc. o que associado aos altos níveis de endividamento e de inflação da economia americana, poderia por em causa o sistema fiduciário do dólar e fazer ascender o Rublo ou o yen como novas moedas base da Economia mundial, por passarem a ser moedas-mercadoria.
Enfim, esta questão ultrapassa largamente os meus conhecimentos nesta matéria pelo que lhe pedia que me desse uma ou outra explicação sobre o assunto se tivesse disponibilidade. Ou então que alguém aqui no blogue pudesse abordar este assunto com o rigor e elegância que caracterizam este blogue.
Obrigado desde já,
Afonso Anjos
Caro Afonso,
A questão que coloca é bastante interessante, mas não estou suficientemente por dentro do assunto. A hegemonia do dólar continua a ser difícil de contornar. Apesar disso, há muitas questões em aberto:
- a exclusão de alguns bancos russos do SWIFT é tão eficaz como se supunha?
- há formas de a Rússia contornar esta exclusão? Há quem diga que sim: https://www.businessinsider.com/russia-swift-ban-not-most-effective-sanction-experts-2022-3
- as sanções podem desencadear uma "fuga" do dólar por parte de todos os países que queiram evitar o risco de serem atingidos de forma tão significativa no futuro? O FT discute esta possibilidade hoje: https://www.ft.com/content/220db8f2-2980-410f-aab8-f471369ac3cf
O mais provável é que ainda seja demasiado cedo para tirarmos conclusões. Mas talvez alguém aqui no blog tenha mais (e melhores) coisas para dizer sobre o assunto.
Abraço,
Vicente
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