quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Lembrar


«Estou sozinho no mar largo, sem medo à noite cerrada. Vamos, senhor pensativo, olhe o cachimbo a apagar. Fui andarilho das bruxas, moço de São Cipriano. Já fui morto e ainda vivo. Águas passadas do rio, meu sono vazio não vão acordar. Dorme, meu menino, a estrela d’alva já a procurei e não a vi. Assim tu souberas, irmã cotovia, dizer-me se esperas o nascer do dia. A lua, que é viajante, é que nos pode informar. Oh ribeiras, chorai, que eu não volto a cantar. Oh meu bem, se tu te fores, como dizem que te vais, deixa-me o teu nome escrito numa pedrinha do cais. Ali está o rio, dois homens na margem estão. Companheiros de aventura, vinde comigo viajar. A noite é negra, a vida é dura, não faço gosto em voltar. Muito à flor das águas, noite marinheira, vem devagarinho para a minha beira. Batem à porta da hospedaria. Se for o vento, manda-o entrar. Em terras, em todas as fronteiras, seja bem-vindo quem vier por bem. Venham aves do céu pousar de mansinho, por sobre os ombros do meu menino. Já fui vento do levante, já fui andarilho, cantor. Chamaram-me um dia cigano e maltês. Minha mãe, quando eu morrer, ai chore por quem muito amargou.»

Fernando Alves, Canção

2 comentários:

José Cruz disse...

Uma evocação densa, que a prosa tantas musicas abrigou,
singelas quadras fugidas
palavras curtas,sentidas
que um poeta aqui deixou

Refer&ncia disse...

Obrigado. A poesia ilumina as noites sem lua.