A julgar pelos amigos de Marcelo Rebelo de Sousa na comunicação social - nomeadamente no jornal Expresso - o presidente já começou a construir uma nova narrativa dos acontecimentos.
O primeiro passo é transformar a maioria absoluta do PS, não numa derrota de Marcelo - que o foi, já que ele apostara na reconstituição da direita - mas numa vitória.
Alega-se que a maioria que elegeu Costa foi a mesma que reelegeu Marcelo - o que claramente não foi. Costa deve muito da sua maioria absoluta a uma transferência de votos, tanto do Bloco de Esquerda como da própria CDU, assustados com
o possível regresso de um governo de direita, apoiado pelas duas
forças de extrema-direita - a económica (IL) e a outra (Chega!). Escreve-se no Expresso:
"Desafios à parte, o que não merece dúvidas em Belém é que a decisão de convocar eleições antecipadas foi ganha por Marcelo. "Não faz sentido falar de um perdedor quando as eleições cumpriram três dos objetivos desejados pelo PR ao ter dissolvido o Parlamento”, sublinham. E quais foram os ganhos de causa? Passou a haver estabilidade e previsibilidade políticas para quatro anos; a ‘geringonça’, que Marcelo considerara esgotada, ficou sem condições para ser reabilitada e o epicentro da governação transferiu-se da esquerda para o centro (António Costa liberto do PCP e do BE é visto como um socialista muito moderado).
(...) "Ao contrário do que acontecia com Cavaco e Soares, em que o primeiro-ministro de direita e o PR de esquerda representavam maiorias opostas, António Costa foi eleito no domingo por uma maioria mais de acordo com a que há um ano reelegeu Marcelo. Ambos foram reeleitos ao centro e é ao centro que tentarão fazer o país avançar. (...)
Tudo condições vistas pelo Presidente como essenciais para que o país possa avançar e recuperar economicamente. Crescer mais do que a média europeia é uma meta, e Marcelo não vai largar o tema."
Marcelo adopta assim o lema da direita: foi a polítida da geringonça - e não a adopção fracassada durante décadas dos cânones liberais europeus associados a uma moeda única coxa - que impediu o país de crescer. E a jornalista vai atrás. E nem se dão por isso, de tal forma está tudo impregnado.
Mais uma vez reina nestas cabeças liberais a ideia de que mais despesa pública retira recursos à esfera privada da sociedade, quando os estudos dizem precisamente o contrário. Primeiro, o efeito multiplicador do investimento público é superior a qualquer outro (redução fiscal, nomeadamente), a ponto de ter efeitos benéficos no próprio défice orçamental e dívida pública, sobretudo numa conjuntura de juros baixos; depois, porque promover o equilíbrio das contas públicas esse, sim, retira recursos necessários à esfera privada, com efeitos duplamente negativos (nem multiplicador, nem gastos privados).
Na cabeça de Marcelo - aliás, como na do patronato e da banca - Costa estará agora liberto para o que sempre quis fazer: aplicar o prograna de direita (ou melhor, de centro-esquerda que é mais ao menos o mesmo que ser de centro-direita). Afinal, para quê reconstruir a direita se Costa faz parte da família?
Mas é uma jogada ilusionista de envolvimento, muito própria de Marcelo, que não cola com o desenho da táctica a seguir. Para Marcelo - e para a jornalista - a nova maioria é para ser minada, tolhida. Marcelo não irá calmamente por essa noite em que perdeu poderes numa jogada por si osquestrada (ao fixar que qualquer chumbo da proposta de OE resultaria em eleições antecipadas). A luta de massas e de lobby serão as armas dilectas da direita.
"Como pano de fundo para este novo ciclo, o PR conta com a sua arma predileta: a proximidade do povo, que lhe tem assegurado índices de popularidade ímpares e que usará sempre que necessário — uma palavra sua contra o Governo alastrará como um fósforo. O poder da palavra será usado no registo habitual — qualquer saída à rua dá para falar de tudo, e agora por maioria de razão. As Presidências Abertas — que com Marcelo se chamam Portugal Próximo — também deverão voltar. A rua voltará a ser um palco. E o Palácio de Belém receberá meio mundo, aberto a ouvir tudo e todos e focado em garantir que nos próximos quatro anos os socialistas não desperdiçarão a “oportunidade única” de que o PR está cansado de falar.É de realçar esta ideia do povo parvo que vai atrás do que o rei da elite lhe disser para pensar. Resta saber se não se aplica mais à comunicação social - cada vez mais de direita - que tenta condicionar o povo em si, tal como aconteceu durante o tempo da troica. Mas de qualquer forma e com esta estratégia, Marcelo arrisca-se a cair do pedestal e a tornar-se cada vez mais um agente político, com sede em Belém. Poderá passar a ser apupado.
Veremos como quererá ficar na História.
7 comentários:
O "PS" devia de se assumir que é um partido do centro,bom aluno perante as politicas neo-liberais de Bruxelas e mudar o nome ao partido,para não "enganar" o eleitorado.
Mais volta menos volta acabamos por ter mais uma vitória da esquerda!
Nada como um imorredouro irrealismo para viver feliz!
É altamente provável que Costa deva muito da sua maioria absoluta a uma "transferência de votos, tanto do Bloco de Esquerda como da própria CDU, assustados com o possível regresso de um governo de direita, apoiado pelas duas forças de extrema-direita". É possível que alguns desses votos "úteis" tenham sido oferecidos por gente de esquerda que tinha ajudado a eleger Marcelo, logo à 1ª volta, nas presidenciais de 2021; contudo, é também altamente provável que grande parte desses votos úteis em Marcelo tenha resultado do receio - alimentado por sondagens, tal como agora - de uma 2ª volta entre Marcelo e Ventura (Outros eleitores do BE e da CDU terão optado pelo voto útil em Ana Gomes pelo mesmíssimo motivo.).
Tudo indica que o PS poucos votos úteis terá recebido de gente de direita que ajudou a eleger Marcelo, embora seja legítimo admitir que alguns desses votos no PS tenham sido "emprestados" por "gente importante", sobretudo do mundo dos negócios (a bem da "estabilidade", etc.)...
É também inegável que Costa deve muito desta maioria absoluta ao próprio Marcelo, na medida em que o presidente-comentador criou, com a dissolução do parlamento, um "facto político" tristemente original: fomos agora votar porque - pela primeira vez na democracia portuguesa - um Presidente da República decidiu dissolver a AR a pretexto da rejeição parlamentar de uma proposta de Orçamento do Estado, em vez de obrigar o Governo a apresentar nova proposta orçamental a essa AR (ou a demitir-se de funções se recusasse o cumprimento dessa obrigação). A lógica marcelista foi esta: se a assembleia de representantes do povo rejeita uma proposta do Governo, mudem-se os representantes do povo e não a proposta que eles rejeitaram...
A. Correia
Caro José,
Acho que anda baralhado. Da última vez que o "vi", pareceu-me que era de direita. Agora, acho-o um pouco revoltado por Costa parecer pouco de esquerda...
As eleições não lhe fizeram nada bem, parece-me.. ;-)
Voltando à "transferência de votos, tanto do Bloco de Esquerda como da própria CDU, assustados com o possível regresso de um governo de direita, apoiado pelas duas forças de extrema-direita", é de registar a narrativa que ameaça tornar-se dominante nos media, no que diz respeito ao presente e ao futuro dos partidos à esquerda do PS: já não só o PCP mas agora também o BE estariam em marcado declínio, e mesmo a caminho da extinção. Veja-se, p. ex., este artigo de
José Mendes (*) no DN : https://www.dn.pt/opiniao/be-e-pcp-em-vias-de-extincao-14563159.html
Convém recordar que, na bolha mediática, a narrativa oficiosa da situação política durante o Verão de 2021 tratava os partidos à esquerda do PS como se o seu papel no futuro imediato praticamente se limitasse à tomada de posição relativamente ao OE2022 que aí vinha: VIABILIZAR ou NÃO VIABILIZAR, eis a questão obsessivamente colocada, por isso mesmo, aos representantes desses partidos. Se viabilizassem a coisa - o que. atendendo ao OE2021, era dado como quase certo no caso do PCP -, ficariam "metidos no bolso do Costa", de alguma maneira "traindo" o seu eleitorado e assim se tornando politicamente irrelevantes. Se não viabilizassem - o que, atendendo ao OE2021, era dado como quase certo no caso do BE -, estariam a ser "irresponsáveis", merecendo por isso passar à irrelevância política depois da "inevitável" dissolução do parlamento e de legislativas antecipadas. Ou seja, a irrelevância política era o destino de ambos.
A. Correia
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(*) Membro do "Governo Costa I" - no período em que, supostamente, a "geringonça" estava no poder - , primeiro como Secretário de Estado Adjunto e do Ambiente e depois como Secretário de Estado Adjunto e da Mobilidade. Depois foi Secretário de Estado do Planeamento no "Governo Costa II".
Dantes era a Esquerda que queria condicionar Costa. Chumbaram-lhe o OE e foi o que se viu. Agora será Marcelo a querer fazê-lo. Cuidado, porque Costa is his own man... Costa deu e dará protagonismo ao PR enquanto lhe convier e para entreter alguém cuja vaidade é notória...
O PR tem três hipóteses. Tentar minar o Governo à Soares II, ser o PR Rei que dará conselhos ao dito Governo (já começou, vide a receção à seleção de futsal), que aceitará os que lhe convier e ignorará o resto, ou finalmente pode ainda optar por ser um reedição de Cavaco com os Governos de Sócrates, mas tenho o MRS em melhor conta...
De qualquer maneira, resta à Esquerda ficar a assistir da bancada parlamentar (dos poucos lugares que lhe restam), porque esta luta já não será dela.
A não ser que queira dar uma ajuda à Direita por via da contestação de rua...Cuidado que aqueles votos que fugiram para o PS assim nunca mais voltam...
As misérias de um Povo fazem-se de muitos e diversificados elementos e factores, que não apenas, entenda-se dos estritamente económicos. A miséria intelectual - seja a que se encontra condicionada pelos punhos de renda que, embora sebentos, alguns miram com olhar sôfrego, seja a que se alberga em prosaicas suspeitas de corrupção e nas prebendas que a porta giratória entre negócios e política vai gerando (de Soares a Sócrates ou Vara, de Roseira ao falecido Coelho, é todo um fartar vilanagem) - sendo por vezes de exegese mais complexa, não deixa também de se revelar e às vezes dos modos mais inesperados, tal a clareza com que, afastados os mantos diáfanos, a verdade acaba por se revelar.
Assim é também quando, realizadas eleições, haja por aí quem olhe para o país, para as pessoas e para os seus problemas, de um modo mais ou menos tribal e patético: eu ganhei e tu perdeste, por isso vê lá não percas o resto que isto é todo um jogo de xadrez (a isso se resume) de que eu conheço as peças e as regras, para além de ser amigo dos donos do tabuleiro... Como em S. Mateus (Mateus 15:14): Deixai-os! Eles são guias cegos guiando cegos. Se um cego conduzir outro cego, ambos cairão no buraco.
Não espanta por isso que estejamos a viver um tempo insano em que o sono da razão produz os mais tenebrosos monstros.
Tudo tão pobre e tão triste, valha-nos Deus.
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