domingo, 7 de agosto de 2016
Ainda as batalhas educativas
O vírus liberal, que está longe de ser contido, está também na base do parasitário capitalismo educativo. Este naturalmente luta por todos os meios contra a política democrática. Pode ser útil, neste contexto, disponibilizar na íntegra o artigo que escrevi para o Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Junho: batalhas educativas
As esquerdas nacionais têm travado recentemente uma significativa batalha pela educação pública, em torno da limitação do uso e abuso de contratos de associação para financiar a provisão privada de ensino, procurando começar por evitar ilegais sobreposições ali onde existe já capacidade pública instalada. No momento em que escrevo, esta batalha parece para todos os efeitos ganha no campo da política pública. A confiança cresce deste lado e o desespero isola o outro lado, compelido a convocar a União Soviética de Estaline como metáfora histórica tão lunática quanto de duvidosa eficácia política.
No entanto, quero neste momento assinalar algumas preocupações quanto à argumentação mobilizada nesta batalha por alguns sectores das esquerdas, quer em defesa da limitação dos tais contratos, quer na crítica ao adversário na sua versão intelectualmente mais poderosa. Move-me a ideia de que qualquer batalha política tem de ser educativa, no sentido em que a política tem de envolver uma permanente pedagogia popular, capaz de arrastar persuasivamente maiorias para posições socialmente mais justas e democráticas, que nos permitam travar as próximas lutas em melhores condições político-ideológicas. Incluem-se nestas um conhecimento mais aturado do inimigo e dos seus versáteis projectos de classe, em particular no que à organização dos sistemas de provisão, incluindo de educação, diz respeito.
A política não é administração das coisas.
A limitação dos contratos de associação foi justificada por muitos como uma simples decisão de boa gestão dos recursos públicos, desprovida de ideologia. Tratava-se de aplicar rigorosamente a lei, em linha aliás com o que estava no Memorando de Entendimento acordado com a Troika. Neste contexto, de um lado estariam aqueles que num contexto de escassez apostam em acabar com as verdadeiras gorduras do Estado, do outro estaria uma forma de rentismo privado que poria, essa sim, em causa o objectivo de finanças públicas sãs. Quem ocupa o poder de Estado apresenta-se muitas vezes como pós-político e pós-ideológico. Num ambiente tão condicionado, incluindo pelo espartilho de regras orçamentais e monetárias europeias, esta tentação aumentará, dada a escassez assim institucionalmente induzida, uma versão supostamente de esquerda do tal “não há dinheiro”.
Sem negar a eficácia política conjuntural deste tipo de argumentos, bem como a sua parcial pertinência, desde que inscrito num argumentário mais vasto, é preciso desde já chamar a atenção para três dos seus muitos riscos deseducativos.
Em primeiro lugar, esta linha confunde meios e fins, enfatizando quanto muito os primeiros e descurando os segundos. Quer isto dizer que a boa gestão dos recursos, a que evitaria eventuais desperdícios e duplicações, depende da bondade dos fins prosseguidos, neste caso a escola pública e as suas virtudes inclusivas e cívicas. Um argumentário centrado nos meios – numa variável instrumental, a boa gestão das finanças públicas – corre o risco de deixar desocupado o campo dos fins. Bem sabemos que tudo nas regras europeias conspira para aumentar este risco. Felizmente, os principais responsáveis políticos, incluindo o Primeiro-Ministro António Costa, não têm perdido de vista a necessária concentração de recursos no ensino público, subordinada à igualdade substantiva e à democracia.
Em segundo lugar, convocar o memorando da Troika para defender a escola pública é um exercício altamente pernicioso, porque corre o risco de ocultar a forma como este instrumento de ingerência externa esteve ao serviço directo e indirecto, de resto em coerência com a lógica da zona euro, da compressão da provisão pública, mesmo que aí se apontasse para a limitação dos contratos de associação, bastando lembrar as reduções ocorridas ao nível do emprego docente, com impactos negativos ao nível do acesso e da qualidade do serviço público.
Em terceiro lugar, este tipo de discurso corre o risco de aprisionar a esquerda no espartilho orçamental europeu. E este não é neutro, obviamente, no campo da provisão, tratando-se, juntamente com o euro, também de um instrumento para favorecer a mercadorização, ou seja, a introdução de cada vez mais elementos mercantis na provisão de bens e serviços públicos. Este processo também é alimentado por, e alimenta, um debate centrado em argumentos mercantis ou proto-mercantis, sobre quem passa melhor em supostos testes imparciais de análise custo-benefício, baseados na atribuição de preços – custos financeiros por turma –, avaliando-se a qualidade, por exemplo, pela percentagem de alunos com sucesso no ensino superior. Trata-se de água para o moinho da concorrência entre escolas, que tem nos famigerados rankings outro dos seus suportes.
Conhecer o inimigo para lá da escola ponto
Entretanto, este debate tem revelado sinais preocupantes de complacência face a um inimigo aparentemente ainda desconhecido: o liberalismo nas suas várias encarnações e os seus dominantes projectos para a educação.
Argumentos que invocam a livre escolha das famílias em relação ao sector privado, desde que o paguem, só podem causar estranheza a quem defende a escola pública igualitária. Cidades como Lisboa e o Porto, onde o sector privado dito “não subsidiado” é mais pujante, vivem há décadas processos de segregação social e de degradação das escolas públicas sem paralelo no resto do país, contribuindo para uma contínua fuga das classes médias do sector público para o privado.
Mais, é para mim um mistério o que terá levado alguns sectores de esquerda a trazer para o debate de hoje um supostamente verdadeiro liberalismo, que defenderia a escola pública democrática, embora aceitando um sector privado paralelo. A este opor-se-ia um falso liberalismo eivado de contradições, pois dependeria afinal da parasitagem do Estado por via da subsidiação pública da provisão privada de educação. Alguns perguntaram mesmo: como pode um liberal defender a subsidiação de um negócio privado?
A economia política liberal sempre foi um projecto elitista, desconfiado da escola pública massificada, supostamente produtora de uniformizações autoritárias, ou seja, da escola pública democrática, tal como foi sempre, e até muito tarde, um projecto céptico em relação às virtudes socioeconómicas do sufrágio universal. O liberalismo sempre teve uma relação problemática com as massas e com a sua inclusão. A escola pública é muito mais obra do republicanismo com consciência patriótica, social e democrática, sobretudo quando pressionado pelas classes trabalhadoras.
Se, por exemplo, nos guiarmos por um dos grandes economistas políticos liberais do século XIX, John Stuart Mill, e no que à educação diz respeito, constatamos a progressiva aceitação de alguma subsidiação pública, reconhecendo a existência de falhas de mercado num bem visto como de mérito, mas sempre com a preocupação em defender a separação do financiamento, mais ou menos público, da provisão, tendencialmente privada e concorrencial. A economia política neoliberal, essa reinvenção do liberalismo depois da Grande Depressão do século XX, procurou precisamente encontrar dispositivos que eficazmente concretizassem esta ideia num novo contexto marcado pela tendência para a expansão do ensino público nos vários níveis de ensino. Neste aspecto, o cheque-ensino de Milton Friedman, a partir dos anos cinquenta do século XX, é o culminar do esforço intelectual e político para resolver falhas de mercado com subsidiação pública das famílias, conforme à manutenção do princípio concorrencial de mercado, baseado na ficção da “liberdade para escolher”, numa educação em modo de centro comercial adaptado. No que à subsidiação pública da educação privada diz respeito, não estamos assim perante um defeito da economia política liberal e neoliberal, mas sim perante um dos seus principais feitios. Os actuais liberais portugueses estão perfeitamente inseridos numa longa e bem organizada tradição intelectual internacional, que pode até alardear várias vitórias políticas recentes dos dois lados do Atlântico. Não ganhamos nada em subestimá-los ou em tentar ingloriamente cooptá-los.
Próximas batalhas educativas contra o vírus liberal
Dir-nos-ão que o cheque-ensino não é a discussão. A verdade é que se há algo que esta batalha tem revelado é como muitos liberais, dominantes hoje no PSD e no CDS-PP, reconhecem que os contratos de associação nunca passaram de um instrumento, tosco e vulnerável, mas ainda assim um instrumento, para criar o hábito de separar o financiamento, público, da provisão, privada, organizando politicamente, e de forma progressiva, um capitalismo educativo, culminando na institucionalização do cheque-ensino. Pela sua própria designação – movimento em defesa da escola ponto – a expressão de massas possível destes interesses capitalistas educativos pretende precisamente ofuscar a diferença entre formas de organização do sistema de provisão, públicas e privadas, para melhor fazer o que está mais do que teorizado na economia politica neoliberal: reconfigurar o Estado para o colocar ao serviço da institucionalização de uma prática e de uma cultura de mercado adaptada às especificidades sectoriais.
Mostrando como a originalidade está sobrestimada num movimento ideológico que vive muito da replicação nacional de ideias que circulam internacionalmente, o PSD de Passos Coelho já tinha dado o fôlego programático possível, bem para lá da educação, ao chamado Estado-garantia, o tal que financia, mas que não provisiona necessariamente certos serviços ditos de interesse público. Este intervencionismo de mercado, que mobiliza sempre um Estado, idealmente suportado por poderes públicos supranacionais pós-democráticos, é o inimigo. Este é o vírus liberal na sua potente reincarnação neoliberal.
Este vírus espalha-se na educação sempre que subsidiamos, seja através de contratos, seja através de benefícios fiscais, as moralmente distorcidas preferências elitistas das famílias em matéria de educação privada. Estas têm externalidades negativas para o conjunto da comunidade, por exemplo através da criação de barreiras de classe cada vez mais intransponíveis.
Mas este vírus espalha-se também sempre que descuramos as relações sociais subjacentes à provisão. Isto acontece quando os trabalhadores da educação e os seus sindicatos são tratados como alvos abater, fazendo-se convergir as relações laborais na esfera pública com a maior desigualdade e precariedade que campeia na privada. Isto também acontece quando a lógica cooperativa dos mecanismos democráticos de gestão colegial das escolas é substituída pela lógica do comando empresarial, na figura de um director todo-poderoso, associada à perversa promoção da concorrência entre escolas.
Esta última tendência é igualmente favorecida pelo perigo da crescente municipalização do ensino público no nosso país. A escola, mesmo que formalmente pública, tenderá assim a ficar refém de directores pouco escrutinados e da lógica clientelar de muitos municípios. Em conjunto poderão ter no futuro poder para contratar e despedir pessoal docente e não-docente cada vez mais precário.
O vírus liberal emerge também na selecção e exclusão dos alunos pelas escolas públicas, imitando as práticas das escolas privadas, de acordo com o capital económico e cultural das famílias, determinante no sucesso escolar, ou com as necessidades dos alunos. O reforço da uniformização das escolas – escolas para ricos e escolas para pobres –, num país desigual e com taxas recorde de pobreza infantil, tem de ser travado através de batalhas em múltiplas frentes.
A potência do vírus liberal está na sua capacidade mutante, na forma como se adapta aos vários sistemas de provisão sem perder a sua natureza. As parcerias público-privadas na saúde ou o cheque-dentista são outros tantos exemplos, desta vez no sistema de provisão de saúde, deste vírus, aí ainda mais potente pelos lucros poderem ser ainda maiores.
As esquerdas que queiram ganhar os debates em torno dos sistemas de provisão de saúde, de educação e de outros não podem perder de vista o projecto global subjacente ao neoliberalismo, recusando a ilusão da liberdade de escolha que alimenta todas as desigualdades. Isto exige argumentos à altura do inimigo. Todas as batalhas têm de ser mesmo educativas.
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9 comentários:
Excelente post.
João Rodrigues no seu melhor: "Todas as batalhas têm de ser mesmo educativas."
Muito bom.
"O vírus liberal, que está longe de ser contido..."
É mesmo isso: "os colas não deslargam"! Excelente postal, com advertências qb; essa gente chico-esperta não quer perder de vista a renda garantida que já teve.
Um post fundamental para quem quer perceber o que se passa e dotar-se dos meios teóricos para combater este vírus neoliberal
Esta coisa do “Vírus Liberal” tem muito que se lhe diga, competindo a´ esquerda segurar o “Bicho” na marraçao.
Desde logo instruir as populações nos cuidados a ter sobre tao repugnante patologia.
Não basta 15 dias de campanha eleitoral em 4 anos (1460 dias). E´ que para alem disso esta e´ uma frente de luta que tem de ter como estratégia um projecto democrático plural e interventivo que as populações percebam.
As mulheres, homens e jovens deste país terão de se esforçar mais um pouco para irradicar de vez essa epidemia viral! De Adelino Silva
«... evitar ilegais sobreposições ali onde existe já capacidade pública instalada.»
Há duas hipóteses:
1 - Existia capacidade formativa pública e organiza-se o ensino privado que obtém financiamento público para concorrer com a escola pública.
2 - Não existia capacidade formativa pública e organiza-se o ensino privado que obtém financiamento público para suprir a inexistência de capacidade da escola pública.
À ilegalidade da situação 1 opõe-se a legalidade e contratualidade da situação 2.
Quando, a partir da situação 2 o Estado cria capacidade formativa, O que está em causa?
DETERMINAR as condições de renegociação/cancelamento de um contrato.
Tudo o mais é TRETA, venha ela de onde vier!
(Não fique por dizer que se não fossem a corrupção e a sanha de obra nova para patêgo ver, muita escola pública nasceria sobre o edificado do privado. Mas a ordem é rica e os cretinos legião...)
"Cretinos legião"
Eis numa típica escrita seminarista, bafejada pelo tempo e pelo bolor, a confirmação da importância da legião para este sujeito das 14 e 12.
Outros tempos, outros amores, agora trocados por "novos" amores ,mais germânicos, mas sempre ,sempre ao lado das legiões do Capital
Mas regista-se, com algum gozo, o afobamento apressado, semi-histérico, perturbado, com trejeitos de inconstância privada, com suores de animal cercado, com aflições de prima-dona ressentida, do referido sujeito, tentando acantonar o apresentado no post a este triste e miserável gorgulho que lhe sai da gargantilha esquelética.
Que diacho tudo o que não caiba naquela numeração ruminativa é "treta", dita aos berros qual viúva de Crato em estado convulsivo.
O tema causa-lhe desconforto e temor. Eis a careca mais exposta , a sanha mais nítida
Exemplo de tretas para tentar esconder o que se debate.
Fala aí alguém em "DETERMINAR as condições de renegociação/cancelamento de um contrato".
É o que se fez.
Pelo que objectivamente o "tudo o mais é treta" é o exemplo vivo da tentativa de tapar o sol com a peneira e de fugir ao que se debate.
O mais curioso é que quem assim procede é o mesmo que tem centenas de comentários sobre este tema, espalhados por blogs diversos e por aqui no LdB. E que assumidamente tentou fazer passar a sua ideologia em prol dos interesses privados e do fim da escola pública. Duma forma quantas vezes deselegante e fraudulenta.
Dessas vezes não invocava o "tudo o mais", antes proferia pérolas como estas:
"Que os soviéticos, andam por aí é uma certeza!"
"Que a raivinha ao privado vai prosperar é seguro e certo!
"Tudo se resume a mais um tributo aos soviéticos, mais um balão para manter a geringonça a flutuar"
"Em 40 anos o mais que se fez foi derreter dinheiro para satisfazer treteiros como tu"
"São bestas do teu calibre, com seus mantras 'progressistas', que vão continuar a arruinar o país com um paradigma público de gente estúpida e venal, procurando reproduzir-se na sua imbecilidade pela escola única."
"As escolas privadas concorrem para os contratos: onde há falta de concorrência?"
"Faz-me lembrar um depoimento de um director da PIDE num tribunal plenário: o pensamento é livre, só a sua manifestação é que é condicionada ..."
"E o que a comunada sabe de sobra é que, à merda que fazem, sempre duram pouco."
Há mais, muito mais...por enquanto e por motivos de higiene pública, basta..
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