domingo, 27 de julho de 2008

Corrupção, desigualdade e corrosão da ética do serviço público

Leiam a entrevista de João Cravinho ao Público de hoje: «a grande corrupção considera-se impune e age em conformidade e atinge áreas de funcionamento do Estado, que afectam a ética pública». A reconfiguração neoliberal do Estado, com a entrada de privados em novos sectores em que, dada a natureza das actividades, é necessário desenhar complexos contratos, é uma das fontes do problema. A fraqueza e falta de autonomia do Estado do bloco central face aos grandes grupos privados com cada vez mais poder e o défice de escrutínio democrático destas relações cada vez mais promíscuas colocam-nos assim numa situação difícil. Juntem a isto a hegemonia de um discurso que subestima e despreza a ética do serviço público e os profissionais e as práticas que a podem sustentar. Ficamos sem recursos intelectuais para traçar as linhas entre o que se pode comprar e vender e o que não se pode nem deve comprar e vender. Finalmente, temos evidência empírica e argumentos plausíveis mais do que suficientes para associar a corrupção ao problema das gritantes desigualdades no nosso país. Um artigo, publicado em 2005 na prestigiada American Sociological Review por dois investigadores da Universidade de Harvard, apresenta ampla evidência empírica (usam dados para 129 países) indicando que «maiores níveis de desigualdade conduzem, através de mecanismos materiais e normativos, a maiores níveis de corrupção». Segundo os autores, à medida que a desigualdade aumenta quem é mais rico terá mais recursos e mais incentivos, para «contornar» as regras. Além disso, a desigualdade tende corroer a crença de que as instituições fundamentais da sociedade são justas e assim a sabotar a legitimidade social das regras instituídas. E concluem: «se a corrupção é o resultado da tentativa por parte dos ricos para melhorar a sua posição, então um maior peso do Estado pode estar associado a menos corrupção». Assim se mostra como o combate socialista contra as desigualdades e em defesa da provisão pública que traça linhas claras é também um combate contra a corrupção. Por uma sociedade decente.

14 comentários:

F. Penim Redondo disse...

A corrupção, como qualquer pessoa observa, é tanto maior quanto maior é a burocracia e menos transparentes os métodos de decisão.
Daí deriva que, ao invés daquilo que diz o post, quanto maior for o número de instâncias do estado e mais complexa a legislação atrás da qual disfarçam os critérios de decisão, mais corrupção teremos e mais difícil será persegui-la.

João Rodrigues disse...

Por que é que os países escandinavos (com maior peso do Estado) são dos menos corruptos do mundo? E têm sistemas de regras bem sofisticados – do trabalho ao ambiente, passando pela segurança do consumidor, etc. Não é essa a questão essencial. A questão é de ética, escrutínio público (como assinala), igualdade e legitimidade das regras. Em Portugal, temos a especificidade de termos um Estado fraco e paralelo (a expressão é de Boaventura de Sousa Santos) que se meteu com privados, que aliás promoveu anteriormente, que agora estão em posição de força para "capturar" uma parte dos dirigentes políticos.

Fernando Vasconcelos disse...

João,
O problema não é só português. É da maioria das democracias ocidentais. Mesmo as nórdicas que têm sido ainda assim mais resistentes ao fenómeno já denotam sinais de corrosão de corrupção, sempre na forma do beneficio dos que detêm o poder económico. Não se trata para mim de promover mais estado. Antes pelo contrário, mas certamente que temos de conseguir que a estrutura política seja independente do poder económico. Esse é um dos pilares da democracia. Sem essa independência tudo o resto é irrelevante.

joshua disse...

Receio bem que a captura pelos privados de boa parte dos dirigentes políticos, sendo o facto que é, como corolário de políticas de benefício explícito dos mesmos privados pelos organismos e serviços do Estado, signifique um mal mal debatido e mal enfrentado.

A bondade socialista neste combate é até ao momento duvidosa, mas espera-se melhores resultados e melhores desempenhos. Falta coragem para fazer mais e falta humildade para reconhecer que se faz o que alguma chantagem implícita, venha de onde vier e seja ela qual for, permite.

PALAVROSSAVRVS REX

G* disse...

O Grémio da Estrela * também pugna por uma sociedade mais decente, primeiro à sua própria porta.

F. Penim Redondo disse...

Podemos tentar um silogismo diferente do indicado no texto do post:


- A corrupção é, em geral, maior nos países com maiores desigualdades

- As maiores desigualdades verificam-se quase sempre em países mais pobres (com menor PIB per capita, com menor qualificação da população, com uma economia baseada em fraco valor acrescentado)

- Portanto a corrupção é função do nível geral de riqueza do país, do nível de escolaridade e de educação cívica da sua população.

Pedro Viana disse...

Corrupção consiste genericamente na obtenção de tratamento preferencial, em particular através do suborno. Como é óbvio a corrupção não é exclusiva do serviço público. Pelo contrário, a corrupção no serviço privado está "nos seus genes". Se quiser passar à frente de alguém numa lista de espera por um serviço privado basta... pagar mais. O que indigna as pessoas no acto de corrupção não é a ilegalidade do mesmo, mas sim a imoralidade, a obtenção de tratamento preferencial, o "passar à frente na fila de espera", quando todos deviam ser tratados por igual. A corrupção ofende porque traduz-se em desigualdade. Mas numa sociedade dominada por serviços privados a desigualdade é maximizada, ou seja efectivamente a corrupção, o acesso desigual, o tratamento preferencial passa a norma, deixando de ser a excepção ilícita numa sociedade assente em serviços públicos. Quem defende menos Estado para diminuir a corrupção, na realidade o que pretende é... legalizá-la. Não deixa de ser assim "estranho" que quem acha que a corrupção á potenciada pela existência de regulamentação pública complexa, em vez de defender o reforço de medidas de combate a essa corrupção (por exemplo maiores penas) sejam exactamente as mesmas pessoas que por exemplo não admitem a legalização do comércio de drogas (mesmo as mais inofensivas), apesar de estar mais do que provado que tal medida faria diminuir o crime de modo significativo, ou a quem não lhes ocorre diminuir a extensão e complexidade de algumas regras que definem a propriedade privada (por exemplo de patente ou de direitos de autor). Porque será?... Bloqueio intelectual?

Dário Nantes disse...

brilhante como sempre !!!!!

F. Penim Redondo disse...

O Pedro Viana tem uma noção de corrupção algo estranha, ele pensa que a corrupção é passar à frente nas bichas. Olhe que não...

A corrupção consiste em dar aos "amigos", ou vender abaixo do custo, aquilo que é de todos os cidadãos. Uma ponte que custa 300 em vez dos 100 (efectivos), os impostos que não são cobrados porque o processo oportunamente prescreveu, o terreno junto ao mar cuja urbanização é autorizada não se sabe porquê, os aviões de combate de que não precisamos ou que estão ultrapassados, etc, etc,...

Para tomar este tipo de decisões, que envolvem verbas gigantescas, é preciso ocupar um cargo no aparelho de estado e, eventualmente, beneficiar da tolerância de outras instituições do estado que "fecham os olhos" porque se dedicam ao mesmo desporto.

Filipe Melo Sousa disse...

olha, o contribuinte a ser torturado pelo estado.

Pedro Viana disse...

f. penim redondo parece sofrer do tal bloqueio intelectual (sem ofensa) que anteriormente mencionei.

"A corrupção consiste em dar aos "amigos", ou vender abaixo do custo, aquilo que é de todos os cidadãos."

Até aqui estamos de acordo. Dito de outro modo, corrupção é tratar de modo desigual quem devia ser tratado em pé de igualdade. No entanto diferimos consideravelmente na definição do que "é de todos os cidadãos". Vou pegar num dos seus exemplos:

"o terreno junto ao mar cuja urbanização é autorizada não se sabe porquê"

Suponho que, consequentemente com o que escreveu no seu primeiro comentário, defenderá então que deixe de ser necessária autorização do Estado para construir uma urbanização, por exemplo junto ao mar. Assim quem quiser pode fazê-lo, quem não quiser não o faz. Presto, já não há corrupção, favorecimento, ou tratamento desigual! Mas... esperem, eu disse "quem quiser"?! Mas... será que qualquer pessoa tem terrenos junto ao mar ou capacidade financeira para construir urbanizações? E mesmo que tal acontecesse, a construção de urbanizações tem externalidades, acarreta consequências também sobre quem as não pretende (ou não pode) construir. Donde a permissão total do proprietário de terrenos de utilizá-los como quiser, efectivamente corresponde a um favorecimento por parte do Estado, por via de ausência de regulamentação, em relação a todos os que se opôem a tal construção. Sabe, o Estado também peca por omissão, não apenas pela acção. Efectivamente, a desgulamentação resulta no aumento efectivo do tratamento desigual que cada um recebe numa sociedade, e repito é por isso que a corrupção é algo que deve ser combatido, não por ser ilegal. É a desigualdade que deve ser combatida, e como a corrupção geralmente gera desigualdade ela também deve ser combatida. Logicamente, isto quer dizer que todas as "soluções" para diminuir a corrupção que impliquem um aumento global do nível de desigualdade fazem literalmente mais mal do que bem.

"Para tomar este tipo de decisões, que envolvem verbas gigantescas"

A desregulamentação pode efectivamente acarretar mais custos para a sociedade do que actos de corrupção realizados por funcionários públicos, por mais gigantescas que sejam as verbas.

Dito isto, torna-se óbvio que defendo medidas claras de combate à corrupção. Quais? Tão simples como o fim do sigilo bancário, o fim da abdjudicação directa, a fiscalização dos serviços públicos, a responsabilização dos dirigentes dos serviços públicos, a criminalização dos actos de corrupção, a publicação das propostas de todos os concorrentes a concursos públicos, extensos períodos de consulta pública, possibilidade de accionar mecanismos referendários para revogação de actos da administração pública, limitação de mandatos, extenso período de nojo antes de um membro do governo poder se tornar funcionário/dirigente duma empresa privada, etc.

A corrupção combate-se com mais transparência no seio duma sociedade mais democrática, não com a desistência e a entrega da "defesa do bem-comum" aos corruptores, os privados que desprezam o... bem comum. Seria como entregar as ovelhas ao lobo que tentou subornar o guarda do cercado.

F. Penim Redondo disse...

O Pedro Viana deturpou a minha opinião acerca do "terreno junto ao mar" para melhor se defender.
Assim é batota.

João Dias disse...

A minha admiração por Cravinho cresceu, é das poucas figuras visíveis do PS que de facto é sério...

É óbvio que esta relação entre desigualdade e corrupção é bidireccional, por um lado a desigualdade facilita a corrupção, por outro a corrupção gera mais desigualdade.

Não nos iludamos, a relação entre poder político e económico é coisa para durar, a questão neste momento passa mesmo por exigir transparência. É vital perceber que se estas perversões se passam no Estado, a solução passa por ter mais Estado, mais forte, mais transparente.

Há aqui um esforço por salvar um princípio, o Estado não é imune a quem o governa, e por isso vou ter o cuidado de atribuir as culpas ao governo e não falar em Estado enquanto instituição democrática apartidária. Eu quero salvar o Estado e mudar o governo, porque o Estado, para funcionar correctamente, precisa de quem tenha isso como princípio, as políticas que minam o Estado são precisamente as que o relacionam com entidades exteriores sem rigor e transparência. Precisamos de quem aceite as propostas de Cravinho, precisamos de quem dê pelo menos o primeiro passo, nem sequer podemos falar em qualidade no combate à corrupção, temos de falar no seu início.

"Portanto a corrupção é função do nível geral de riqueza do país, do nível de escolaridade e de educação cívica da sua população."

Sabe que as relações de causalidade não são directas, uma lógica causal simples negligencia a dimensão do problema, repare que a justificação de que os países mais pobres são mais vulneráveis à corrupção acarreta consigo justificações lógicas e não meras lógicas causais directas. Nem se pode concluir que se os países mais pobres são os mais vulneráveis, por consequência lógica os mais ricos serão os menos, houve aí um salto lógico que levou a concluir algo que não corresponde à realidade.

Mas voltando a elementos concretos, a corrupção tem a dimensão do mundo, agudiza-se aqui e ali, mas é essa a sua dimensão. Os EUA são um país riquíssimo e tem congressistas a fazer lobby pagos directamente pelas companhias privadas, para assim verem aprovadas as leis mais permissivas ou até intrusivas em relação aos direitos dos demais.
A riqueza em si não gera nada neste capítulo, é a vontade democrática, é a noção que para a partilha da riqueza se tem de combater a corrupção.

Blog Visão Cultural disse...

Corrupção implica na desigualdade.
Onde encontrar maior desigualdade, encontrará maior corrupção.

Engana-se que pensa que um país miserável, cheio de conflitos armados, não democrático, sem quase nada pra oferecer pra população é mais desigual que um país com ótima economia, pacífico, democrático e ainda assim não consegue oferecer um mínimo de dignidade pra grande parte de sua população.