quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Aprender com os vencedores


A lição principal que o verdadeiro liberal deve tirar do sucesso dos socialistas é que foi a coragem de serem utópicos que lhes granjeou o apoio dos intelectuais e lhes deu uma consequente influência sobre a opinião pública, tornando diariamente possível o que há pouco tempo parecia muito distante. Aqueles que se têm dedicado unicamente ao que parece praticável perante o estado actual da opinião descobrem constantemente que até isso se torna politicamente inviável, devido às mudanças numa opinião pública que eles abdicaram de orientar.
[minha tradução]

F. A. Hayek, 1949.

Economix, 2ª edição

Acabou de ser publicada a 2ª edição em português de Economix, o livro de banda desenhada que tenho aconselhado a quem quer uma introdução divertida à ciência económica. Fica abaixo o texto que escrevi para a contracapa do livro (e garanto-vos que não recebo um tostão pela publicidade):

Em Economia não há leis, há múltiplas tendências, muitas delas contraditórias. Em cada circunstância, essas tendências podem ser mais ou menos evidentes, mais ou menos dominantes, dependendo do contexto histórico e do lugar em questão. As ideias económicas vão evoluindo, influenciadas pelos eventos e pelas polémicas que marcam o debate político e académico em cada contexto. Influenciadas também pelas ideias económicas que as antecederam e pelas tendências que, por uma razão ou por outra, foram enfatizadas por cada autor ou escola de pensamento. Influenciadas, sem dúvida, pelos valores, convicções e interesses de quem as produz e difunde.

Por isto é tão importante que o ensino da Economia se faça conhecendo o contexto em que as ideias surgiram e conhecendo os interesses e valores dos seus autores. E deixando claro a cada passo que a forma como se ensina Economia é ela própria influenciada pelos valores e convicções de quem o faz.

Pode parecer estranho que se adopte um tom tão sério para falar de um livro de banda desenhada, como este que tem nas mãos. Mas Economix é isto mesmo: um livro que leva a sério a discussão sobre os conceitos e ideias fundamentais da Economia, colocando-os no seu contexto histórico e doutrinário, de uma forma acessível à generalidade dos leitores, deixando bem claro que a história aqui contada reflecte as convicções do seu autor (com a qual não temos de concordar para saber apreciar).

Tem, porém, uma vantagem ainda maior face à generalidade dos livros de introdução à Economia: é tremendamente divertido. E é também um livro actual, ajudando-nos a perceber como as teorias do passado lançam luz sobre alguns dos grandes debates do presente (a globalização, o desemprego, as desigualdades, as crises financeiras, as alterações climáticas, o papel do Estado, etc.).

Nunca até aqui imaginei recomendar um livro de banda desenhada a quem quer aprender um pouco sobre esta ciência que alguém um dia apelidou de “sombria”. Michael Goodwin faz-nos o favor de nos ajudar a tirar a Economia das sombras. E nós agradecemos.

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Falso senso comum como estratégia de desenvolvimento

Um post de Rui Pena Pires no Canhoto chamou-me a atenção para uma passagem pouco feliz da recentemente publicada “Estratégia Portugal 2030” (RCM n.º 98/2020, de 13 de Novembro).

Lê-se assim: “a investigação realizada em Portugal e o conhecimento gerado têm sido muito orientados para o aumento do stock de conhecimento na comunidade científica, com um menor enfoque na inovação e no desenvolvimento de soluções que envolvam as empresas e na criação de produtos que cheguem ao mercado, falhando muitas vezes em responder aos desafios reais do tecido produtivo.”

Lê-se e não se acredita. Melhor dizendo, grande parte de quem lê acredita, pois essa é a mensagem que muitos insistem em passar como senso comum. Mas é uma ideia pouco informada, por três motivos:

1. O maior contributo dos sistemas de ciência e tecnologia para o desenvolvimento das economias ao longo da história consistiu – e consiste – na formação de competências avançadas de compreensão e resolução de problemas. Isto é conseguido através do ensino e da investigação fundamental, mais do que através do desenvolvimento de soluções com aplicação mercantil. Na verdade, são muito poucos os sectores onde existem contributos directos relevantes da actividade científica para os negócios empresariais. (Este é um bom texto para reflectir sobre o tema).

2. O aumento do stock de conhecimento pode conduzir – e tem conduzido – à inovação e ao desenvolvimento de soluções que não envolvem necessariamente “produtos que cheguem ao mercado”. Um exemplo óbvio, mas não único, é a área da saúde, responsável por mais de 40% das publicações científicas internacionais em Portugal
. Apenas uma pequeníssima parte desta investigação se traduz em “produtos que cheguem ao mercado”, mas no seu conjunto representam avanços relevantes nos conhecimentos e nas práticas médicas em Portugal, de que todos beneficiamos.

3. Não é de todo claro que o sistema científico em Portugal falhe “muitas vezes em responder aos desafios reais do tecido produtivo”. Existe uma forte correlação entre as estruturas produtivas dos países e o nível de interacção entre empresas e instituições de ensino superior. É expectável que haja muita interacção em economias baseadas em sectores baseados no conhecimento – como a farmacêutica, a biotecnologia, a nanotecnologia, a aeronaútica, a computação, etc. – mas o mesmo não é de esperar em economias que assentam no turismo, no vestuário, no calçado e na cortiça. Como procurei mostrar neste artigo
, Portugal apresenta níveis de desempenho inovador superiores ao que seria de esperar dada a sua estrutura produtiva – e isto em muito se deve ao investimento que tem sido feito no reforço das competências avançadas de compreensão e resolução de problemas. Se a interacção universidade-empresa não é maior, tal deve-se em larga medida à estrutura produtiva do país.

Sabendo que a “Estratégia Portugal 2030” vai enquadrar a utilização dos 30 mil milhões de euros que chegarão a Portugal na próxima década ao abrigo da Política de Coesão da UE, esta cedência ao senso comum é pouco tranquilizadora.

Para aulas de jornalismo e de economia política


«Ontem à noite [sexta-feira, 11], na SICN, o ministro Pedro Nuno Santos deu uma entrevista esclarecedora, informada e objectiva sobre a grave situação da TAP, o plano de reestruturação e os seus pontos de vista, concordemos ou não com todos eles. A dupla de entrevistadores deu um espectáculo degradante, em contraste com a seriedade do entrevistado. Escudados na sua condição de jornalistas, julgaram arrogantemente estar acima do escrutínio público. Manifestaram preconceito e falta de isenção e objectividade, usaram e abusaram da provocação e do desrespeito pessoais, propalaram mentiras factuais sobre a TAP. Não tendo feito o exigido trabalho de casa e confiando que jogavam em casa, acabaram vencidos pela objectividade, informação e frontalidade do ministro. Mas fica o péssimo serviço ao jornalismo prestado sobretudo por José Gomes Ferreira, acompanhado por João Vieira Pereira, conhecidos defensores da austeridade neoliberal e do controlo troikista sobre um país que julgam incapaz (somos a "choldra", não é?). Inimigos da TAP pública que o ministro defende e o país precisa, tudo fizeram para mostrar que, não podendo ser privada, que se feche. Têm certamente muitos apoiantes, dispostos mesmo a torcer os factos e manipular a verdade para levar a água ao seu moinho. A defesa da maior exportadora nacional, de uma TAP pública, ao serviço da soberania e da economia do país, que proteja o máximo de empregos e limite os sacrifícios laborais, é uma causa longe de estar ganha. Exige mobilizar os trabalhadores, os sindicatos, a cidadania e as esquerdas, para enfrentar se necessário Bruxelas e não consentir que nos imponham a liquidação da TAP»

Henrique Sousa, Não deixemos que nos TAPem os olhos

Nas palavras de um amigo, são 45 minutos de uma entrevista notável, bem sintetizados neste comentário do Henrique Sousa. Podem ser vistos na íntegra aqui, na página da SIC Notícias (a peça ainda não foi disponibilizada pela estação no youtube). Trata-se de uma entrevista com um duplo valor pedagógico, dado o seu interesse para aulas de jornalismo (como exemplo de jornalismo de cilada, capcioso e arrogante, no desgraçado estilo «Dupont et Dupont»), mas também de economia política (como bom exemplo de pluralismo do pensamento em Economia, que muitos gostariam de poder negar). Seja qual for a opinião que tenham sobre a TAP, não deixem de ver. Vale mesmo a pena.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Pés de dançarino

Já nem falo de haver imagens que valem por mil palavras. Extraordinário é quando as imagens mostram o outro sentido das próprias imagens.

Na recente entrevista que Marcelo Rebelo de Sousa deu à SIC, já como candidato a Presidente da República - em que foi apertado por não ter dado importância à morte assassinada de um cidadão ucraniano (ao ponto de Ricardo Costa quase lhe ter chamado mentiroso) - viu-se algo que poderia ser a cauda de qualquer coisa.

Atente-se no pormenor das imagens onde está o círculo azul, mesmo à abrir (no segundo 56-57) quando é feita a primeira pergunta. E tenha presente esse pormenor, porque até ao fim da entrevista irá surgir mais vezes:


Não há, na verdade, detalhe mais encantadoramente revelador do que pode ser a alma de alguém que se candidata ao primeiro lugar da Nação. Pouco importa o que ele está a dizer, porque a realidade na sua mente é outra: o jogo, a brincadeira por debaixo da mesa enquanto endireita os punhos de renda com os dedos tranquilos, preparados para a próxima cambalhota.

E ainda nem sabíamos do que se seguiria, com Marcelo Rebelo de Sousa a interferir directamente na acção do Governo, extrapolando as suas competências e envolvendo a direcção da PSP nas suas artimanhas.

Só que agora sabemos: nunca deixaremos de ver os seus pés a bailar.

A estagnação económica e o cinismo político

Os dados publicados hoje pelo Eurostat confirmam que Portugal está entre os países da União Europeia onde o salário mediano é mais baixo. Na verdade, os números do Eurostat mostram que, quando considerada o poder de compra dos diferentes países, só a Bulgária possui um nível de rendimento mediano inferior ao português. A publicação destes dados foi prontamente aproveitada por alguns políticos à direita para criticar a estagnação económica que o país atravessou nas últimas duas décadas. João Almeida, do CDS, diz que este é o resultado de uma "governação socialista" que nos deixa "cada vez mais longe da prosperidade". Miguel Morgado, do PSD, adota o mesmo tom e sublinha que se não queremos "condenar o país à pobreza perpétua", as políticas socialistas têm de mudar. É um diagnóstico tão convicto quanto errado, por quatro motivos essenciais.

Por um lado, o facto de o país ter tido governos do PS está bastante longe de significar que as políticas adotadas possam ser caracterizadas como socialistas: na verdade, a desregulação das leis do trabalho, a privatização de quase todos os setores da economia (banca, indústria, energia ou transportes) e a proliferação de PPPs são alguns exemplos de como a orientação da política adotada em Portugal foi, se alguma coisa, a da liberalização.

Por outro lado, os que, à direita, criticam a estagnação económica do país nos últimos 20 anos fazem-no sem nunca referir ou considerar o principal fator de estagnação: a adesão ao euro, que, deixando o país sem controlo da política monetária e cambial, enfraqueceu as exportações, favoreceu as importações e promoveu o endividamento externo, sobretudo bancário, canalizado para setores de baixo valor acrescentado e para atividades especulativas (como o imobiliário).

Além disso, estes críticos são os mesmos que passaram os últimos anos a defender um modelo de globalização marcado pela liberalização dos movimentos de capitais, abertura ao comércio internacional, desregulação financeira e laboral e redução do papel do Estado na economia, tudo aspetos que explicam a tendência de estagnação salarial, como conclui o estudo "Determinants of the Wage Share: A Panel Analysis of Advanced and Developing Economies", publicado por Engelbert Stockhammer em 2015 (fonte do gráfico ao lado).

Por último, os que, à direita, criticam a prevalência de baixos salários no país são os mesmos que diziam que andávamos a viver acima das possibilidades antes da última crise. Foi por isso, aliás, que aplicaram um agressivo programa de desvalorização interna (i.e. corte dos rendimentos reais) quando estiveram no governo. Foi também por isso que se opuseram à política de reforço dos rendimentos prosseguida pela maioria de esquerda na última legislatura. E é por isso que costumam queixar-se dos elevados "custos do trabalho" quando se debate, entre outras coisas, o aumento do salário mínimo.

Percebe-se, por isso, que o diagnóstico apresentado pela direita não podia estar mais longe da realidade. É certo que Portugal tem um problema de estagnação nas últimas décadas, pelos motivos discutidos, e que isso tem efeitos negativos na evolução dos rendimentos. Mas reconhecê-lo não implica cair na armadilha de quem, tendo feito parte do problema, propõe agora as mesmas soluções que o criaram.

A notável evolução da discussão sobre a TAP

É notável a evolução que tem tido a discussão sobre a TAP nos últimos meses. 

Criticou-se a "renacionalização" da empresa, agora percebemos que a gestão privada foi tudo menos um exemplo de criação de valor para o país. 

Criticou-se a decisão de salvar a TAP da falência, hoje quase todos reconhecem a importância da empresa para a economia nacional, seja pelo seu impacto no turismo ou pelo efeito de arrastamento que tem sobre muitas centenas de outras empresas. 

Criticou-se o reforço da posição accionista do Estado, hoje percebemos que os accionistas privados não estavam disponíveis para pôr mais dinheiro na TAP (e que nenhum investidor de jeito tem interesse ou está em condições de o fazer neste momento).

Criticou-se a indemnização de 55 M€ a David Neelman, hoje sabemos que Neelman tinha direito a exigir 224 M€ em prestações acessórias (e poucos se atrevem a defender que mantê-lo como accionista seria uma boa ideia). 

Critica-se agora o plano de reestruturação. Espera-se que quem o faz deixe claro que alternativa propõe.

Da economia política (inter)nacional


Um dos gráficos mais impressionantes dos últimos tempos (através do indispensável boletim do historiador Adam Tooze): o sector público chinês pesa hoje mais no PIB mundial do que o Japão. É por estas e por outras que é preciso continuar a atirar barro à muralha, tentando aprender duas ou três coisas para lá da vulgata liberal, até para evitar novas guerras frias.

domingo, 13 de dezembro de 2020

Lançar alternativas


Estão todos convidados para o lançamento no dia 15 de Dezembro, próxima terça-feira, às 17h00. Infelizmente, ainda não será um lançamento presencial: inscrição obrigatória em https://bit.ly/Webinar_PaísVulnerável. As circunstâncias particularmente vulneráveis em que nos encontramos, uns artificialmente muito mais do que outros, tornam a reorganização da nossa economia política ainda mais urgente: deixo-vos a ligação para quinze resumos dos quinze capítulos que constituem esta obra colectiva.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Sá Carneiro remixed

A questão é saber se aqueles que deram a vida ao sistema durante um determinado período podem ser protagonistas do período seguinte, se não devem ser outros os protagonistas do período seguinte (Marcelo Rebelo de Sousa, 10/12/2020)


Marcelo Rebelo de Sousa tudo tem feito para se colar a Francisco Sá Carneiro. 

Fez quase coincidir o lançamento da sua recandidatura com a homenagem ao 40º aniversário da sua morte. Qualificou-o como um dos “pais da democracia”. Fê-lo despencar-se dos céus como vítima de um atentado político. E no prefácio que escreveu ao livro recentemente editado pelo Instituto Francisco Sá Carneiro "Sá Carneiro e a Ala Liberal - 1º volume, 1969-1973", Marcelo chega mesmo a reescrever a História quanto à legalização dos partidos, ao omitir as declarações de Sá Carneiro transcritas nesse mesmo livro. 

É o caso da ideia de Sá Carneiro que não se deveria então criar partidos, mas sim "começar por um tipo de associações políticas que não fosse imediatamente o tipo partidário", porque "esse problema [!] só viria a pôr-se muito mais tarde"; que as pessoas tinham de ser preparadas "para actuarem politicamente"; e recusando mesmo que "o chamado Partido Comunista Português estaria em condições de mais tarde ser admitido como partido político", que tudo dependeria das "posições de tal partido".

Se avivei a sua curiosidade sobre o pensamento deste "pai da democracia" que Marcelo parece tanto eleger, leia as citações por inteiro:

Combates pela história da economia política


Karl Marx Hof, um dos símbolos da política de habitação da Viena vermelha, todo um um legado

A história das ideias económicas, como já aqui defendi, pode ser vista como uma conversa, um debate, ao longo do tempo, sendo então nossa obrigação resgatar do esquecimento economistas do passado, sabendo que também estes mortos podem não estar a salvo da barbárie económica, sobretudo os que reconheceram o seguinte facto: a economia é sempre política e moral, nunca é neutra, quer nos seus efeitos, quer nas estratégias de justificação das suas instituições. 

Há dois economistas políticos, felizmente muito estudados e valorizados, de tempos sombrios e de grandes esperanças no século XX que nos ajudam sempre a pensar nas curvas apertadas da história: John Maynard Keynes e Karl Polanyi. Curiosamente, a filha de Karl Polanyi, Kari Polanyi Levitt, colocou-os em diálogo há já alguns anos. Em 2017, tive a oportunidade de assistir a uma palestra desta notável economista política canadiana: aos 94 anos, de pé e sem papel, para lá de tópicos de economia política internacional, desfiou as suas memórias da Viena dos anos trinta, antes de fugir para Londres, tendo regressando à capital austríaca talvez pela última vez na segunda década deste século, escutando ecos anti-democráticos de um país distante. A economia política tem de ter história e memória. 

Em 1944, em A Grande Transformação, o seu pai tinha referido a experiência da capital austríaca a seguir à Primeira Guerra Mundial, a Viena vermelha liderada pelos social-democratas, entre 1918 e 1934, como um enorme sucesso social e ético-político no meio de grandes dificuldades, provisionando bens essenciais, como a habitação, e assegurando a participação e dignificação das classes trabalhadoras. Apesar disso, ou por causa disso, esta experiência foi “violentamente atacada pelos adeptos do liberalismo económico” , como Ludwig von Mises, sucumbindo em 1934, um ano depois do chanceler Engelbert Dollfuss ter assumido poderes ditatoriais, “ante o ataque de forças políticas poderosamente sustentadas por argumentos puramente económicos”, como assinalou Polanyi nesse livro. 

A combinação do poder repressivo do Estado e de teoria económica, com o objectivo de destruir as instituições não-mercantis igualitárias e os valores que as sustentam, é parte do liberalismo económico histórico, o que abriu tantas vezes as portas ao fascismo. Afinal de contas, Mises foi conselheiro de Dolfuss. Hoje os seus discípulos estão no governo de Bolsonaro, por exemplo. A história é mudança e novidade, mas também pode ser recorrência.

Adenda. Entretanto, aproveito para deixar dois textos breves: o primeiro, que teve uma versão publicada no Negócios e que saiu agora em livro, parte do nome de uma sala luminosa e de vista amplas na FEUC, dado em homenagem a Keynes. O segundo, em inglês, apoia-se em Polanyi para analisar a trajetória recente de Portugal. 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A reindustrialização contada pelos industriais

A ideia de que é necessário reindustrializar o país tornou-se uma espécie de novo consenso. Mas o que interessa, na verdade, é como fazê-lo. E aqui o consenso não existe. 

O discurso convencional entre economistas liberais passa sempre pela ideia da redução dos impostos, da flexibilização das regras laborais e da eficiência dos serviços do Estado. Vale a pena ler o que dizem os empresários do têxtil e do calçado sobre isto

Primeiro, a questão do financiamento e da lógica predominante do crédito bancário em Portugal: “Não pode ser tudo pago em três e quatro anos como as entidades financeiras pretendem neste país.” 

Segundo, a necessidade de capitalização das empresas: “como é que uma micro ou uma pequena empresa vai competir a nível europeu ou a nível mundial?”. 

Terceiro – e não menos importante – a política europeia de comércio internacional: “Que me interessa ter fábricas se depois o mercado europeu importa produtos da Ásia. (…) não posso falar de uma política industrial sem ter uma política comercial”. 

É interessante ver como boa parte do discurso dos empresários dos têxteis e do calçado coincide com o que aqui escrevi sobre o tema há mais de sete anos.

Fugir dos factos como o diabo da cruz

«Acabar os exames do 4º ano, optar pelo discurso das “aprendizagens” em vez de insistir na velha Matemática da tabuada e das contas de cor são, como recorda Nuno Crato, responsabilidades do actual Governo» (Manuel Carvalho)

«As Metas Curriculares, que estavam em vigor em 2015 e pelas quais foram preparados os alunos então avaliados, não sofreram alterações até hoje. O que mudou foi a avaliação, ou a falta dela, e foi a "flexibilidade curricular". (...) A reversão do progresso comprovado em 2015 é, certamente, resultado de uma série de medidas entretanto adotadas» (Nuno Crato)

«A verdade é que em 2015 o mérito tinha sido do Passos e agora a culpa é toda deles: os miúdos testados foram dos do 4º ano, entraram para a escola com a "geringonça"! Infelizmente estão a pagar o preço da degradação da exigência e do regresso do facilitismo» (José Manuel Fernandes)

Por cegueira ideológica (de que costumam acusar os outros), chico-espertismo sonso ou incompreensível desinformação, uma certa direita que segue Nuno Crato e as suas políticas não resiste à tentação de passar ao lado dos factos, ora procurando ficar com os louros que não lhes pertencem (quando os resultados são bons, como sucedeu no PISA 2015), ora sacudindo para cima de terceiros a água do seu capote (quando os resultados pioram, como sucedeu no PISA 2018).

Já procurámos demonstrar aqui porque é que a descida dos resultados dos alunos portugueses no TIMSS de 2019 não pode ser assacada à substituição das Metas curriculares de Crato pelas Aprendizagens essenciais de João Costa. A razão é simples e o próprio Crato reconhece: os alunos do 4º ano que participaram no estudo apenas tiveram contacto, em todo o seu percurso no ensino básico, com as Metas curriculares (tendo as Aprendizagens essenciais sido aplicadas só em 2018/19 e de forma restrita, abrangendo apenas os alunos do 1º ano). Ou seja, o suposto efeito pernicioso, nestes alunos, das Aprendizagens essenciais, é (à semelhança do PISA 2015) uma impossibilidade cronológica.

E se é verdade que os alunos que participaram no TIMSS de 2019 não realizaram os «exames do 4º ano» (introduzidos por Nuno Crato em 2013 e extintos em 2015), também é um facto que o progresso notável feito por Portugal no TIMSS entre 1995 e 2011 (ver gráfico) foi conseguido sem a realização de exames (e sem as metas curriculares de Crato). O que transforma portanto em puro «achismo» - e não num facto - a ideia de que os exames do 4º ano são cruciais para a melhoria do desempenho dos alunos em Matemática. Aliás, essa melhoria progressiva de resultados, entre 1995 e 2011, abrange «estranhamente» o período classificado por Crato como «década perdida» para a educação, ficando igualmente por explicar porque é que outros países europeus têm melhores resultados sem exames no 1º Ciclo. Sim, vale a pena relembrar outro facto: em 2015 apenas Portugal e a Bélgica francófona realizavam exames nos primeiros 6 anos de escolaridade (mapa aqui ao lado).

Adenda: Recorrendo a um argumento mais interessante, Alexandre Homem Cristo reconhece agora que as Metas curriculares se mantiveram apesar da mudança de governo, sugerindo que o problema decorre das orientações então dadas «às escolas para que as metas curriculares e os programas de Matemática não fossem cumpridos». Não é um facto explicativo dos resultados mas é, sem dúvida, uma hipótese de trabalho válida. Tão válida como a de considerar que as Metas curriculares de Crato eram desajustadas para a faixa etária dos alunos e difíceis de cumprir, entre outras perversidades que, juntamente com os exames do 4º ano, vieram instaurar (e que, no seu conjunto, poderão - também por hipótese -, explicar o facto de a melhoria de resultados no TIMSS, entre 2011 e 2015, ter já sido inferior à registada entre 1995 e 2011).

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Os «alunos de Crato», agora no TIMSS de 2019

Foi divulgado o TIMSS 2019 (Trends in International Mathematics and Science Study), com Portugal a registar uma queda no desempenho face a 2015 (de 541 para 525 pontos, permanecendo acima da média) e a direita não resiste a tentar o truque já ensaiado perante os resultados do PISA 2015 e do PISA 2018.

Dedicando-se à análise política deste estudo, Alexandre Homem Cristo, por exemplo, não hesita em afirmar que «estes resultados espelham os efeitos das políticas públicas do PS na educação desde 2015. Não haja qualquer dúvida: os ciclos do TIMSS estão alinhados com ciclos governativos. Em 2015, o TIMSS foi também o teste de algodão das políticas públicas então implementadas (2011-2015)». E sublinhando que «o TIMSS 2019 testa alunos que fizeram o 1º ciclo (2015-2019) sob governo PS», associa estes resultados, sem pestanejar, ao «relaxamento imposto pela eliminação de exames», ao «desvalorizar das metas curriculares de 2012 (criticadas pelo governo desde a 1ª hora)» e às «novas orientações e Aprendizagens Essenciais», que teriam afetado os alunos avaliados «no seu 4º ano».

Sucede, porém, que nada disto se pode deduzir do TIMSS 2019. Como bem lembra o Secretário de Estado Adjunto e da Educação, João Costa, estes alunos «estudaram até ao final do 1º ciclo com as metas curriculares introduzidas em 2013», tendo «o Perfil dos Alunos e as aprendizagens essenciais, bem como a flexibilidade curricular, entrado em vigor em 17/18 para as escolas piloto e em 18/19 para as restantes, apenas no 1º ano». Ou seja, estamos perante «alunos de Crato» e não supostas vítimas «das políticas públicas do PS na educação desde 2015».


Ao falhar na verificação do calendário da implementação das políticas educativas adotadas pela maioria de direita (2011-2015) e pelo PS e a maioria parlamentar de esquerda (2015-2019), Alexandre Homem Cristo desfaz o chão que sustentava a defesa das metas curriculares e a rejeição da flexibilidade curricular e das aprendizagens essenciais, a par da crítica à ausência de exames no 4º e 6º ano a partir de 2015, chegando a sugerir a sua reintrodução (e esquecendo que, em 2015, Portugal se encontrava «orgulhosamente só» na Europa relativamente à realização de exames até ao 6º ano, sendo apenas parcialmente acompanhado pela Bélgica francófona).

Cuidado


Há uns anos, um aluno perguntou à antropóloga Margaret Mead o que poderia ser considerado como o primeiro sinal de civilização numa dada cultura. O aluno esperava que ela respondesse fazendo referência a anzóis, recipientes de barro ou pedras de moagem. Mas não. Mead disse que o primeiro sinal de civilização numa cultura antiga era um fémur (osso da coxa) que tivesse sinais de ter partido e estar curado. E explicou que no reino animal se morre quando se parte uma perna. Não se pode fugir do perigo, chegar ao rio para beber água ou caçar para comer. Passa-se a ser carne para os animais selvagens em redor. Isto é, nenhum animal sobrevive o tempo suficiente para que uma perna partida possa ficar curada. Um fémur partido com sinais de que está curado demonstra que alguém dedicou o seu tempo a ligar a ferida de quem caiu, a transportar essa pessoa para um sítio seguro e a acompanhá-la durante o tempo de recuperação. A civilização começa quando se ajuda alguém que está em dificuldades, disse Mead.

Lembrei-me deste inesquecível relato ao ler sobre Margaret Keenan, a primeira cidadã britânica a ser vacinada contra a Covid-19, aos 90 anos, no resistente Serviço Nacional de Saúde britânico. Nacional, notem. É nessa escala que estão as mais consequentes expressões institucionais da ajuda, da civilização do cuidado.

Entretanto, é bom recordar, com a indispensável ajuda de Mariana Mazzucatto e colegas, que as vacinas, um primeiro sinal de esperança, são o resultado de décadas de investimento público maciço em investigação e desenvolvimento, para já não falar de umas das mais gigantescas operações públicas de sempre, com vista à aceleração do seu desenvolvimento no actual contexto. Daí que a exigência de uma inovação dita privada orientada pelo interesse público geral, para lá do enviesado modelo financeirizado e de curto prazo, seja uma questão de decência básica. 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Saúde, privados e pressões em tempos de pandemia

Como dizia há uns anos Isabel Vaz, CEO do grupo Luz Saúde, negócio mais rentável do que este só mesmo o das armas. Por isso e não só, nenhum outro sector - nem a educação, nem a segurança social, nem o apoio à terceira idade - é tão vulnerável à captura do Estado pelos grandes interesses. Em nenhum outro sector - nem na energia, nem nas telecomunicações, nem na banca - é tão difícil assegurar uma regulação da concorrência que seja eficaz e independente dos interesses instalados.

No contexto da pandemia, o problema agrava-se. Perante a incapacidade dos serviços públicos (em Portugal e em todo o lado) para responder às necessidades extra-COVID, aparecem os grupos económicos privados a "oferecer" os seus serviços. Para muitos utentes e profissionais de saúde, o recurso aos privados surge como uma resposta pronta para aliviar a pressão sobre o SNS. Mas a bondade da solução é menos óbvia do que parece.

Os grupos económicos do sector da saúde não são associações de beneficência. O acesso aos seus serviços tem um preço e tem condições. O preço será tanto mais alto quanto mais vozes houver a pressionar o Estado no sentido de um acordo rápido. Este reforço da capacidade negocial dos privados - em que parecem apostadas algumas ordens profissionais, os fundamentalistas do mercado e até alguns que costumam ser mais exigentes perante sinais evidentes de rentismo - leva-os a tentar impor um acordo peculiar: para os hospitais privados iriam apenas os doentes não-COVID (o que lhes permitiria diferenciar-se como locais seguros); ao SNS caberia gerir a pandemia e tudo o resto que não estivesse em condições de pagar a terceiros.

Nas condições actuais, seria imoral o Estado não procurar reforçar as capacidades instaladas no SNS, incluindo através do recurso aos privados. Igualmente imoral seria o governo ceder à pressão de quem usa todos os meios à sua disposição para maximizar os seus lucros, tentando convencer a população de que se trata do bem comum.

Nesta disputa joga-se não apenas a saúde de todos no contexto pandémico, mas o futuro de um serviço público fundamental para o modelo de desenvolvimento do país.

Marcelo pela Natália


 

Gabarolas...

domingo, 6 de dezembro de 2020

Um jornal contra as elites oportunistas

O tempo da pandemia está a acelerar o crescimento dos termos que compõem um par de má memória. De um lado, desigualdades socioeconómicas que se aprofundam; do outro, o autoritarismo neoliberal, ou até ultraliberal. Separar este par, mostrar os perigos que dele resultam para a democracia, é hoje fundamental. É mesmo tão importante quanto alertar para os passos que a direita até agora não-autoritária está a dar para esbater, senão eliminar, as diferenças que a distinguiam de projectos orientados para subverter o regime constitucional. Quem acredita nas virtudes emancipatórias do Estado Social, do Estado de Direito Democrático, sabe que o combate às desigualdades é essencial para desarmar coligações políticas de interesses económicos, para neutralizar oportunismos intelectuais de elites com peso mediático e para desfazer a base social de apoio que lhes aumentaria o peso eleitoral. 

Sandra Monteiro, A democracia desigual e os neoliberais autoritários, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Dezembro, 2020.

Podem ler o resto do editorial no sítio do jornal. Para lá de dois importantes dossiês, sobre as eleições nos EUA e sobre a economia política da saúde em Portugal, destaco o artigo de João Ramos de Almeida sobre a «social-democracia moderna» contada aos netos de Cavaco Silva. Tomando como ponto de partida o último livro de Cavaco Silva, procede-se a uma desmontagem da obra do economista mais intensamente político da nossa democracia, daquele que mais contribuiu para incrustar o neoliberalismo por cá, com os resultados que estão à vista pelo menos nas últimas duas décadas. Não percam.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Mal explicado

Marcelo Rebelo de Sousa no seu melhor sobre o estado de emergência: 

Não se trata de pôr em causa a Constituição, mas trata-se de pôr em causa o que diz a Constituição. Daqui a 15 dias, consulto os partidos, mas já tomei uma decisão: Vai haver estado de emergência por um mês.

Quem tiver dúvida é ver  a página oficial:

"O período de renovação do estado de emergência, hoje decretado, termina em cima do Natal – na noite do dia 23 – aconselhando – e foi esse o entendimento de partidos, do Governo e da Assembleia da República – que se trace já o que se perspetiva para além do dia 23, ou seja, por um mês, a concluir no dia 7 de janeiro de 2021. Não se trata de deixar de cumprir a Constituição da República Portuguesa, que obriga a períodos máximos de quinze dias para estado de emergência e para suas renovações. Antes do dia 23 haverá, como deve haver e sempre tem havido, iniciativa do Presidente da República, audição dos partidos políticos, parecer do Governo, autorização da Assembleia da República e decreto do Presidente. E, nessa ocasião, se verificará se a evolução da pandemia confirma – como se deseja vivamente – o quadro agora programaticamente definido. Só que, em vez de se encarar a intervenção do Estado, quinzena a quinzena, o objetivo passa a ser o de alargar o horizonte para um mês. De 9 de dezembro a 7 de janeiro."

Portanto, se a pandemia o permitir fica tudo como estiver; se a pandemia não o permitir, não fica tudo como está. Tudo pode ficar na mesma? Pode. Mas tudo vai ter de ser avaliado? Sim. Mas se for avaliado pode ser que não fique na mesma? Sim. Mas marca-se já um mês porque pode ser que fique na mesma? Sim. Mas pode não ficar  na mesma? Pode. Mas isso não é contraditório? Pssstt!!  (lembra-lhe alguma coisa? Claro, a velha rábula dos Gato Fedorento...  )

Alguém percebe a razão?

A mesma conversa fiada de sempre


Numa denúncia das ilusões federalistas euro-liberais, Jorge Bateira defendeu já há uns anos o seguinte: “na ausência de uma língua comum, largamente partilhada, a cidadania europeia não passa de um mito que serve a estratégia política de uma elite cosmopolita desligada dos seus povos”. 

Lembrei-me desta sensata formulação a propósito de uma iniciativa europeia em que o jornal Expresso participa e que se chama, olha a surpresa, “Europe talks”, com “media partners” e tudo. Diz que é para aproximar, mas o uso e abuso do inglês é de facto a expressão linguística do desligamento dos povos e da cada vez mais desigual realidade dos países da UE. 

Nesta senda, decorreu no passado 1 de Dezembro uma iniciativa de caridade global que a SIC divulgou: “O GivingTuesday começou em 2012, nos Estados Unidos da América. Hoje é uma organização autónoma, com o leadership support da Fundação Bill&Mellinda Gates”. 

Foi uma boa forma de celebrar o nosso dia da restauração da independência. Talvez o devêssemos mudar para 4 de Julho, já que os EUA são o único país onde uma certa versão de nacionalismo é no fundo aceite pelas elites, até por tantas que se dizem críticas, deste lado do Atlântico. São as que continuam a dizer que o nacional é absurdo e que só há local e global, ou seja, que só existe o eixo Bruxelas-Washington mais as suas dependências. 

É caso para perguntar: Os EUA dão o quê, já que são dos países mais brutalmente desiguais e internacionalmente menos generosos? E a Europa fala o quê? E que classe fala numa UE que de resto é cada vez menos a tal Europa, agora que o Reino Unida saiu e tudo? 

A UE, com mais ou menos cosmética, continuará a falar a língua do capital financeiro transatlântico sem trela, graças à liberalização que promoveu da passagem dos anos oitenta para os noventa em diante. Tudo pode ser suspenso em plena pandemia, menos uma das prerrogativas, a da livre e assimétrica circulação, que dá mais poder estrutural ao capital para erodir a única generosidade que conta, a que é inscrita nas instituições do Estado democrático e social de base nacional. 

Por falar em iniciativas internacionais inconsequentes, os Papéis do Panamá, desculpem, the Panama Papers, é que nunca falaram grande coisa. Afinal de contas, o grupo Impresa, inacreditavelmente subsidiado pelo Estado, tem muito mais espaço dedicado à propaganda ao capitalismo da doença do que ao escrutínio das suas doenças. Não é caso único, obviamente, num panorama mediático desolador. E o resto é conversa fiada ideológica; cheap talk, como se diz em bom português.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Uma lição de solidariedade

Uma resposta sindical necessária. Numa frase, Vítor Dias resume o que está em causa: “Quem quer solidariedade não agride trabalhadores.”

Quebra nos salários: mulheres estão a ser mais penalizadas pela crise

 

No relatório publicado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre a evolução dos salários em 2020, há dois dados que saltam à vista: Portugal é o país europeu com maior quebra salarial entre o 1º e o 2º trimestre deste ano e esta afeta sobretudo trabalhadores mal pagos e as mulheres, acentuando as desigualdades que já existiam. Os salários das mulheres sofreram uma quebra de 16% no país, ao passo que a quebra no caso dos homens foi de 11,4%. Os principais fatores responsáveis por esta tendência, que se verifica um pouco por todo o mundo, são a perda de emprego ou a redução do número de horas trabalhadas.

Não se pode dizer que seja surpreendente. Davide Furceri, Prakash Loungani e Jonathan Ostry, três economistas do departamento de estudos do FMI, já tinham analisado o impacto que as últimas pandemias mundiais tiveram na evolução da desigualdade, concluindo que o índice de GINI aumenta em média 1,5% nos 5 anos que se seguem a crises deste tipo, o que, como notam os autores, é um impacto “grande, tendo em conta que este indicador normalmente move-se lentamente ao longo do tempo”. A explicação para o impacto desproporcional nas mulheres e nos grupos com rendimentos mais baixos também já fora avançada: a crise afeta sobretudo os grupos mais expostos à doença e mais concentrados nos setores de atividade afetados pela pandemia. São estes os grupos que mais sofrem com o impacto das medidas adotadas para travar a propagação do vírus.

Se dúvidas restassem, os dados da OIT confirmam-no: não é tempo de contenção orçamental a pensar no défice.

Pedalar sempre


Com a partilha dos posts no Facebook (a partir de maio de 2011, hoje com cerca de 12 mil seguidores) e no Twitter (desde outubro de 2014, com cerca de 2 mil seguidores), o Ladrões de Bicicletas tem conseguido sobreviver ao quase desaparecimento da blogosfera. Aliás, considerando o total de visualizações até final de novembro, 2020 regista, com um número de visitas a rondar as 972 mil, uma inversão da tendência de queda que se estava a verificar desde 2017. Havendo quem continue a seguir-nos - e não faltando razões para prosseguir, muito pelo contrário - pedalemos pois.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Colecção "colaboradores"

Este caso é dos mais engraçados e interessantes. 

Fala do caso Telexfree, uma empresa que, segundo o Público, "entre 2012 e até meio de Abril de 2014, começou a apresentar-se como um negócio de venda de pacotes ‘VoIP’, uma tecnologia que utiliza a internet como alternativa à rede fixa de telefone". E que acabou por se manifestar como uma empresa em esquema Ponzi.

Ora, por que razão se havia de escolher a palavra "colaboradores" para definir os responsáveis por esta fraude? 

Repita-se pela enésima vez: nem o Código do  Trabalho, nem a jurisprudência tratam os trabalhadores por colaboradores. Não há contratos de colaboração. Há contratos de trabalho. Colaborador é uma aberração jurídica cujo uso fraudulento tenta camuflar um contrato de trabalho com um contrato de prestação de serviços. A vantagem é óbvia: um contrato de prestação de serviços não tem encargos para a Segurança Social e pode ser rescindido a qualquer momento, sem compensação por despedimento. É a subversão total, mas foi a forma que o patronato arranjou, ao fim de décadas de resistência dos trabalhadores - e do Tribunal Constitucional -, para tornar a empresa mais líquida, reduzir encargos e neoliberalizar os despedimentos. 

A justificação da escolha pelo jornal,  como o Ladrões de Bicicletas apurou, teve que ver com a informalidade do esquema. E portanto, subjacente ao raciocínio, até está uma associação interessante: quem geralmente é tratado por colaborador está envolvido numa penumbra de informalidade que escamoteia a sua realidade efectiva. 

Mas será que este exemplo é diferente dos outros casos? 

Se fosse nos Estados Unidos, não teria sido. Lá, havia uma empresa. Tanto assim que faliu. E nesse caso, os responsáveis da empresa ou eram dirigentes assalariados - e portanto trabalhadores no sentido jurídico do termo - ou eram accionistas ou sócios ou proprietários da empresa. Mas nunca colaboradores, prestadores de serviços. E portanto, muito menos "ex-colaboradores". 

Mas e em Portugal? O artigo menciona "a célula madeirense" para designar quem, ao largo da lei, angariava fundos para esta nova economia colaborativa (conceito geralmente usado para designar empresas como a Uber). O conceito célula levar-nos-ia ainda mais longe, mas deixemos esse carreiro. Centremo-nos na Madeira. Neste caso, não eram "colaboradores", mas qualquer palavra associado ao carácter ilegal da actividade (burlão, contador do vigário, bandido, membro de quadrilha, gangster, etc.).

De qualquer forma, este seu novo uso parece ganhar todo um novo sinal. Mas será que foi perceptível?

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Confirmações

Depois do artigo racista do ano passado, Fátima Bonifácio tinha no fundo de declarar o seu apoio público ao Chega no final deste ano, como se intuiu em Janeiro. Sempre no Público, que assim confirma a sua decadência ético-política. 

Contrariamente a uma certa visão elitista, segundo a qual o racismo seria atributo quase natural das classes populares, a verdade é que ele é deliberadamente cultivado por uma certa intelectualidade das direitas. Como sempre, ódio de classe e ódio racial combinam-se. 

Repito-me, porque se repete. Quem se tenha dado ao trabalho de ler Bonifácio em livro, sabe que é uma apologista da história política das elites liberais do século XIX, reconhecidamente anti-democráticas, permanentemente assoladas pelo espectro da plebe urbana democrática e das revoltas anti-coloniais. Ora bem, para lá de classistas, estas elites eram imperialistas e logo racistas. Mergulhando  neste, e simpatizando com este, universo, Bonifácio transporta deliberadamente para o século XXI hipóteses hegemónicas do liberalismo do século XIX. E daí o seu ódio ignorante ao Estado social e, naturalmente, à democracia. 

O Chega é útil neste contexto. Como Nuno Serra assinalou, com a força dos factos que tem por inconveniente hábito mobilizar, a lata de Bonifácio é parte de uma paisagem mediática cada vez mais permeável às novas formas de autoritarismo neoliberal. Mistura fascistas mal reciclados nos negócios, como Júdice e Nogueira Pinto, o extremo-centro decadente de Barreto e tanta companhia e gente que começou no radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista e acabou nas direitas cada vez mais extremas. 

Uma combinação tóxica e perigosa, confirma-se.

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

A infinita lata de Bonifácio


«O Chega, se conquistar a necessária credibilidade, talvez ajude a criar um espaço de discurso público isento dos constrangimentos e dos tabus que têm impedido a livre expressão de quem não se revê no socialismo. O desnorte político e intelectual criado pela sua aparição parece-me um fenómeno de bom agoiro» (Fátima Bonifácio, aqui)

José Miguel Júdice, Marques Mendes, Paulo Portas, Miguel Poiares Maduro, António Lobo Xavier, Nuno Rogeiro, José Manuel Fernandes, João Vieira Pereira, Helena Garrido, Bernardo Ferrão ou José Gomes Ferreira, para citar só de memória alguns dos comentadores de direita, políticos e jornalistas (estes apresentados como isentos), que proliferam nos espaços televisivos de comentário político (para já nem falar de um Observador que a esquerda não tem).

Um estudo do MediaLAB (ISCTE) de 2019, publicado no European Journalism Observatory, tema de um texto de Paulo Pena no Diário de Notícias de 8 de junho desse ano, não podia ser mais claro: «nos últimos três anos aumentou o número de comentadores políticos ligados ao PSD e ao CDS nos vários canais televisivos. (...) O PCP é o partido menos representado». Fazendo as contas, à direita cabem cerca de 60% dos intervenientes em programas de comentário e debate político nos principais canais e à esquerda cerca de 30%, com os comentadores não alinhados na ordem dos 11%. Em clara dissonância, portanto, com a composição político-partidária do Parlamento.

Nada que impeça Fátima Bonifácio de achar, no artigo de hoje no Público (com palavras escritas «numa cave clandestina e disponibilizadas em papel bíblia policopiado e distribuído ilegalmente», como intui, com ironia, Pedro Vieira), que o Chega é uma oportunidade para romper com os constrangimentos e tabus «que têm impedido a livre expressão de quem não se revê no socialismo». Face ao absurdo, talvez não fosse má ideia encontrar melhores pretextos para dissimular a vontade de saudar, branquear e normalizar a chegada desta extrema-direita.

Isto não é normal

A sabedoria convencional quer sempre fechar os chamados parênteses da história e regressar ao status quo ante. Hoje, é preciso lembrar a catástrofe da economia política desse mundo dito normal. Perante a encarnação desse desejo, perante Biden, tem a palavra Robert Reich. É um dos melhores exemplos da economia política social-democrata nos EUA, rompendo com os chamados novos democratas, depois de ter sido secretário de estado do trabalho durante a presidência Clinton:

“A normalidade deu origem a Trump e ao coronavírus. A normalidade significou quatro décadas de salários estagnados e um aumento da desigualdade, de tal forma que quase todos os ganhos económicos foram canalizados para o topo. A normalidade significou 40 anos de redes de apoio social rompidas e o mais caro e desadequado sistema de saúde do mundo moderno. A normalidade é a brutalidade policial. A normalidade é a mudança climática à beira da catástrofe.” (minha tradução)

domingo, 29 de novembro de 2020

Mundo cão

Chamo a vossa atenção para o artigo que se segue, da autoria autorizada do jurista António Garcia Pereira. 

"A selva laboral dos nossos dias" não é nada que não saibamos, mas tem a força do compacto de realidades que, por vezes, mesmo sem as esquecermos, não lhe damos este retrato da violência de classe de que está impregnada a "ciência" neoliberal e os argumentos "técnicos" esgrimidos em concertação social, que colocam displicentemente o mundo do trabalho como "variável de ajustamento" do que correr mal - ou não - nas empresas. O problema é que nesse "outro lado" estamos quase todos nós. E estaremos por muito tempo, porque este "mundo cão" acaba por engendrar e reforçar um certo modelo  de subdesenvolvimento.  

"Vivem-se hoje momentos muito difíceis para quem vive do seu trabalho, e os que se avizinham serão decerto ainda piores. Para além dos inúmeros despedimentos já anunciados e de toda uma série de outros abusos (como, por exemplo, os processos de lay-off efectuados à margem da lei, antecipando futuros despedimentos, a imposição de “adendas” aos contratos aumentando os tempos de trabalho e/ou diminuindo as retribuições, ou a substituição em massa de trabalhadores formalmente precários por outros ainda mais precários), torna-se cada vez mais evidente que, a breve trecho, virão aí inúmeros fechos e insolvências de empresas. 

Os desempregados 

Com um número real de desempregados (isto é, de todos quantos na verdade se encontram nessa situação, independentemente de estarem ou não inscritos nos Centros de Emprego ou de procurarem activamente emprego) a ultrapassar, no final do 3º trimestre de 2020, 655 mil (12% da população activa), dos quais apenas 230 mil (pouco mais de 1/3) consegue receber subsídio de desemprego, fácil é perceber que quando o desemprego real atingir o 1 milhão de desempregados, mais de 600 mil não terão direito a tal subsídio e o chamado “Apoio Extraordinário ao Rendimento dos Trabalhadores”[1], além de irrisório, não chegará nem para 1/3 das pessoas em situação de particular desprotecção económica. 

Os pensionistas 

Quanto aos 3,3 milhões de pensionistas, apenas os que têm pensões inferiores a 659€ mensais – e que são 1,9 milhões! – terão em 2021 um miserável aumento (de 10€ mensais, ou seja, 0,66€/dia). A situação da grande maioria dos pensionistas é, pois, de uma grande miséria. Segundo a Pordata o valor mínimo mensal das pensões de velhice e de invalidez da segurança social era de 273,39€ em 2019 e de 275,30€ em 2020, sendo que, em 2019, mais de 1,6 milhões de pensionistas tinha pensões inferiores ao salário mínimo nacional!  

Os trabalhadores “não declarados” 

O chamado “trabalho não declarado” – ou seja, que é prestado, e (mal) remunerado, à margem da lei – representará cerca de 1/4 de todo o PIB[2], o que significa que, em 25% da actividade produtiva do país, não há leis do Trabalho, nem salários mínimos, nem segurança e saúde na prestação da actividade, nem sequer seguro de acidentes de trabalho, vigorando tão somente a lei da selva.  

Os trabalhadores precários 

Tempos difíceis

1. Vale a pena recuperar, nos dias que correm, este texto de João Ferrão sobre o processo de difusão do Covid-19 e a importância do território. Nele se sugere que num primeiro momento a incidência da pandemia resultou da maior exposição das áreas metropolitanas ao exterior (sobretudo a AMP), seguindo-se a propagação para contextos com dinâmicas mais relevantes de interação regional e nacional (em particular as cidades médias), criando as condições para formas de contágio generalizadas e difusas, em função da suscetibilidade e vulnerabilidade de outros espaços.

2. De facto, se no início se registou uma maior incidência da pandemia no norte litoral, a par de alguns concelhos na AML e outros pontos mais específicos, a segunda vaga carateriza-se por uma incidência mais generalizada e dispersa, a par da anterior prevalência de certos contextos. O que quer dizer que se na primeira fase os surtos eram mais definidos e delimitados (fábricas, lares, festas, etc.), facilitando o rastreio, na segunda prevalece o contágio mais difuso e de micro-escala (agregados familiares e comunidades), associado a um certo relaxamento social na sequência do desconfinamento e ao regresso à «normalidade», e por isso mais difícil de rastrear.


3. Quer isto dizer que faz hoje ainda menos sentido que na primeira vaga o foco mediático em eventos pontuais e únicos - do 25 de abril ao 1º de maio, do 13 de maio à Festa do Avante, ou do 13 de outubro ao Congresso do PCP - quando o maior risco de descontrolo da pandemia advém de um contágio generalizado e disperso. Não é a mesma coisa - ainda que se compreenda o sentimento de injustiça - permitir a celebração de um 13 de maio em Fátima (isto é, num dia e num local precisos), e autorizar missas e funerais por todo o país, em que se torna impossível verificar e garantir o cumprimento das normas de segurança, nos diferentes dias e locais em que esses eventos ocorrem.

4. Sabemos bem, contudo, que esta obssessão mediática por eventos únicos em contexto de pandemia (o episódio mais recente é o Congresso do PCP) não é inocente nem isenta, visando precisamente alimentar a crispação social. O que, de um ponto de vista pedagógico, é duplamente perigoso. De facto, esta obsessão mediática dirigida não só é desiformativa em relação aos processos e formas de contágio mais relevantes (atribuíndo um risco a eventos únicos e pontuais que estes não têm), como promove uma equivalência de eventos (de natureza partidária e os outros), que desvaloriza pilares essenciais da democracia. Desta forma, os tempos tornam-se ainda mais difíceis.

sábado, 28 de novembro de 2020

Vermelho é cor


O PCP é uma condição necessária, mas naturalmente não suficiente, para uma alternativa digna desse nome para este país. Lendo as teses que estão a ser debatidas no seu congresso, com os acordos e desacordos naturais, atrevo-me a dizer que não conheço melhor reflexão política colectiva disponível neste país. A falível tomada de posição política é sempre implícita ou explicitamente comparativa. 

Neste dia, deixo-vos um contributo que redigi para um número de uma publicação chamada Caderno Vermelho, dirigida por Manuel Gusmão, lançado na última Festa do Avante. Numa época em que é particularmente necessário ter presente a tradição antifascista, sei bem quem nunca se vergou e quem mais contribuiu para a sua teorização prática neste país: 

De um blogue para um caderno vermelho 

O blogue de economia política Ladrões de Bicicletas foi fundado em 2007, nas vésperas da maior crise desde a Grande Depressão. A crise, sempre a crise. O que se segue é uma selecção de alguns textos dos sombrios meses de Março e de Abril de 2020. Partilho desta forma com o leitor, agora do Caderno Vermelho, algumas pistas sobre estes tempos, sem perder a esperança numa outra forma de economia política, ao serviço dos subalternos, e tentando ser fiel a uma ideia simples: “aprender, aprender, aprender sempre”. 

1 de Março de 2020 
Ao saber que foram três investigadoras, precárias e relativamente mal remuneradas num hospital universitário público de Milão, a isolar a estirpe de coronavírus em Itália, lembrei-me de uma hipótese antiga, desenvolvida pelo economista político Thorstein Veblen no ano em que começou a Primeira Guerra Mundial: o instinto do trabalho bem feito, ao serviço dos outros, sobrevive, apesar de muito militar institucionalmente contra a sua transformação num hábito mais generalizado, apesar de quase tudo promover no capitalismo, pelo contrário, a activação do instinto predador. Só esta sobrevivência e a sua generalização institucional nos podem resgatar da barbárie.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Portugal é o "bom aluno" de que escola?

No mais recente relatório publicado sobre o cenário macroeconómico da zona euro, o Banco Central Europeu analisa a previsão dos orçamentos dos países pertencentes à moeda única e destaca a tendência de consolidação orçamental no próximo ano. O BCE alerta que esta "pode acentuar a atual situação económica", isto é, agravar a recessão que a região atravessa, pelo efeito pró-cíclico da restrição da despesa e investimento públicos. A recomendação de uma política expansionista em resposta à crise encontra-se, de resto, em linha com o que tem sido dito pelo Fundo Monetário Internacional, que estimou que um aumento de 1% do PIB no nível de investimento público pode levar a um crescimento de 2,7% do PIB em dois anos.

É também o que tem sido dito por vários dos economistas para os quais, nos últimos anos, a intervenção do Estado na economia costumava ser encarada com desconfiança. No Financial Times, Martin Wolf escreveu recentemente que "os governos podem dar-se ao luxo de gastar. Aquilo a que não se podem dar ao luxo é não o fazer, deixando que as economias vacilem, que as pessoas se sintam abandonadas, que as cicatrizes económicas se agravem e que as economias se vejam presas numa trajetória permanente de crescimento inferior". Longe de ser ineficiente, a política orçamental é decisiva para enfrentar uma recessão como a atual, pelo efeito multiplicador no rendimento agregado e pelo papel impulsionador da atividade económica. Sobretudo no atual contexto em que, com taxas de juro baixíssimas devido à atuação do BCE, dificilmente podia ser melhor altura para orçamentos expansionistas.

O problema é que as últimas estimativas apontam para que Portugal seja um dos países que menos gasta em políticas estruturais para combater a crise (isto é, além da despesa relacionada com medidas de emergência). Na verdade, excluindo as medidas provisórias, o OE2021 é de contração, algo que só acontece também na Bélgica e na Finlândia. Ou seja, o governo decide contrariar as recomendações que até já são defendidas pelas instituições mais ortodoxas e quer recolocar o país no grupo dos que mais restringem a política orçamental na Europa, precisamente no contexto em que a única opção sensata é evitá-lo. A última crise financeira deixou claros os enormes custos sociais desta estratégia. Essa lição parece cada vez mais esquecida.

Morre um gatinho sempre que alguém fala da reedição de 2011

 

Morre um gatinho de cada vez de que alguém diz que fazer pressão sobre o conteúdo do orçamento foi brincar com o fogo e que isto podia ter sido a reedição de 2011, com as taxas de juro da dívida pública a dispararem e Portugal ficar sem acesso a liquidez, empurrando-nos para um novo resgate e para a direita no poder.

Em 2011, o BCE deixara claro aos mercados que não iria comprar dívida dos países em mercado secundário. O que significa isso? Significa que quem tinha títulos de dívida estaria numa posição de tremendo risco caso os países soberanos (incapazes de emitir euros) não pudessem pagar. Foi essa espiral de pânico que criou, num momento de grande stress financeiro e de dívidas crescentes pela resposta à crise de 2009, a subida das taxas de juro.

Essas mesmas taxas de juro viriam a descer em 2012 não devido à austeridade, mas porque o BCE anunciou que faria o que fosse necessário para conservar a zona euro. Passado pouco tempo, começou a comprar dívida pública no mercado secundário e os investidores souberam que teriam a quem vender os seus ativos em caso de stress financeiro.

Desde então, o BCE tem mantido esse programa de estímulos. Com a pandemia, expandiu o seu balanço para níveis estratosféricos, comprando ativos com menos critério do que uma tia de Cascais nos saldos. Entre outras coisas, isto evidenciou que um banco central que emite uma moeda de referência internacional pode facilmente expandir o seu balanço para diminuir a perceção de risco e evitar crises, sem que daí advenham pressões inflacionárias. 

A taxa de juro a 10 anos (notem, a 10 anos!) da economia portuguesa está a roçar terreno negativo. O que isto significa é que, enquanto este enquadramento durar, Portugal pode endividar-se de forma considerável sem comprometer a sustentabilidade da sua dívida. Até se o governo português se endividar par investir na venda de missangas da D. Mónica é possível que seja um investimento sustentável, porque a banca de missangas da D. Mónica há-de conseguir uma taxa de retorno superior a 0%. Este deveria ser o momento de o Estado ser o agente de acumulação de capital na economia, face à margem de financiamento e à paralisação do investimento privado. 

A única forma de este enquadramento mudar seria o BCE anunciar que não compraria mais dívida portuguesa caso o orçamento não fosse aprovado. Mas nesse caso, meus amigos, isso seria uma declaração de guerra, porque de outra forma não se pode interpretar a ação de um banco central que se imiscuísse dessa forma nas decisões soberanas. Ainda assim, eu dava um rim em como isto não aconteceria, porque a tentativa de evitar qualquer abalo na zona euro neste momento é muito forte.

Isto não é 2011. Aliás, o que isto demonstra é que aqueles que disseram que a austeridade não era solução para a crise em 2011 tinham razão. Tivesse o BCE agido atempadamente então e o sofrimento infligido à população portuguesa, o desemprego e a emigração teriam sido poupados. Comprar esta narrativa é comprar uma visão manietada da ação do Estado e uma visão moral da dívida que só interessa à direita e ao seu projeto.

Poderá haver quem ache, à esquerda, que este discurso hoje lhes volta a fazer jeito. São eles quem brinca com o fogo. Ao favorecer um discurso moral sobre a dívida, estão a semear a lançar as sementes de que a direita se virá alimentar.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

A realidade em tempos financeiros


Qualquer pessoa sensata sabe que os EUA estão enviesados a favor dos ricos e poderosos. Um estudo científico particularmente iluminador (...) quantifica este problema (...) Mostra que as mudanças de opinião entre os 1% mais ricos da população tornam a mudança política muito mais provável (...) Trump não foi a causa, mas antes um sintoma de um pêndulo que oscilou demasiado para a concentração de capital e para a corrupção da política e dos negócios. Tivemos décadas de mudanças legislativas, da política fiscal às regras de governo das empresas, que favoreceram o capital em detrimento do trabalho (...) Isto fez com que a economia política dos EUA se pareça hoje perigosamente com um oligopólio. Olhem para a forma como a Uber, Instacart, Lyft e outros grupos digitais triunfaram em relação à legislação laboral californiana, gastando 200 milhões de dólares para ganhar o referendo que isenta os trabalhadores destas empresas de benefícios sociais (...) Como Karl Marx observou, é só sob ameaça das massas que os donos dos meios de produção reconhecem os seus interesses comuns. A grandes empresas norte-americanas obtiveram o que queriam de Trump, ou seja, cortes de impostos e desregulação. Sabem que hoje já não há mais nada que possam obter dele.
 

Rana Foroohar, editora do Financial Times (minha tradução) 

De Joe Biden, a avaliar pelo seu percurso passado e pelas suas presentes nomeações de lobistas empresariais, temo bem que o grande capital possa continuar a obter o essencial, incluindo no plano internacional. Segundo uma sondagem, dois terços dos norte-americanos são a favor da travagem pelo senado de um tipo de nomeação que diz tudo sobre a conversão do capital em poder político. 

Entretanto, imaginem um jornal português, do Público ao Expresso, com considerações destas, mesmo que ocasionais, por parte dos seus editorialistas. A verdade é que a realidade tem hoje um enviesamento mais marxista. Isto salta por vezes à vista no jornal de referência da segura burguesia do centro, mesmo que as formas mais violentas desta realidade se manifestem tantas vezes nas periferias e semiperiferias. Aí, os jornais dos grupos dominantes e dirigentes, mais inseguros, têm de fazer um esforço adicional para tudo ofuscar.