A lição principal que o verdadeiro liberal deve tirar do sucesso dos socialistas é que foi a coragem de serem utópicos que lhes granjeou o apoio dos intelectuais e lhes deu uma consequente influência sobre a opinião pública, tornando diariamente possível o que há pouco tempo parecia muito distante. Aqueles que se têm dedicado unicamente ao que parece praticável perante o estado actual da opinião descobrem constantemente que até isso se torna politicamente inviável, devido às mudanças numa opinião pública que eles abdicaram de orientar. [minha tradução]
quarta-feira, 16 de dezembro de 2020
Aprender com os vencedores
A lição principal que o verdadeiro liberal deve tirar do sucesso dos socialistas é que foi a coragem de serem utópicos que lhes granjeou o apoio dos intelectuais e lhes deu uma consequente influência sobre a opinião pública, tornando diariamente possível o que há pouco tempo parecia muito distante. Aqueles que se têm dedicado unicamente ao que parece praticável perante o estado actual da opinião descobrem constantemente que até isso se torna politicamente inviável, devido às mudanças numa opinião pública que eles abdicaram de orientar. [minha tradução]
Economix, 2ª edição
Em Economia não há leis, há múltiplas tendências, muitas delas contraditórias. Em cada circunstância, essas tendências podem ser mais ou menos evidentes, mais ou menos dominantes, dependendo do contexto histórico e do lugar em questão. As ideias económicas vão evoluindo, influenciadas pelos eventos e pelas polémicas que marcam o debate político e académico em cada contexto. Influenciadas também pelas ideias económicas que as antecederam e pelas tendências que, por uma razão ou por outra, foram enfatizadas por cada autor ou escola de pensamento. Influenciadas, sem dúvida, pelos valores, convicções e interesses de quem as produz e difunde.
Pode parecer estranho que se adopte um tom tão sério para falar de um livro de banda desenhada, como este que tem nas mãos. Mas Economix é isto mesmo: um livro que leva a sério a discussão sobre os conceitos e ideias fundamentais da Economia, colocando-os no seu contexto histórico e doutrinário, de uma forma acessível à generalidade dos leitores, deixando bem claro que a história aqui contada reflecte as convicções do seu autor (com a qual não temos de concordar para saber apreciar).
Tem, porém, uma vantagem ainda maior face à generalidade dos livros de introdução à Economia: é tremendamente divertido. E é também um livro actual, ajudando-nos a perceber como as teorias do passado lançam luz sobre alguns dos grandes debates do presente (a globalização, o desemprego, as desigualdades, as crises financeiras, as alterações climáticas, o papel do Estado, etc.).
Nunca até aqui imaginei recomendar um livro de banda desenhada a quem quer aprender um pouco sobre esta ciência que alguém um dia apelidou de “sombria”. Michael Goodwin faz-nos o favor de nos ajudar a tirar a Economia das sombras. E nós agradecemos.
terça-feira, 15 de dezembro de 2020
Falso senso comum como estratégia de desenvolvimento
Lê-se assim: “a investigação realizada em Portugal e o conhecimento gerado têm sido muito orientados para o aumento do stock de conhecimento na comunidade científica, com um menor enfoque na inovação e no desenvolvimento de soluções que envolvam as empresas e na criação de produtos que cheguem ao mercado, falhando muitas vezes em responder aos desafios reais do tecido produtivo.”
Lê-se e não se acredita. Melhor dizendo, grande parte de quem lê acredita, pois essa é a mensagem que muitos insistem em passar como senso comum. Mas é uma ideia pouco informada, por três motivos:
1. O maior contributo dos sistemas de ciência e tecnologia para o desenvolvimento das economias ao longo da história consistiu – e consiste – na formação de competências avançadas de compreensão e resolução de problemas. Isto é conseguido através do ensino e da investigação fundamental, mais do que através do desenvolvimento de soluções com aplicação mercantil. Na verdade, são muito poucos os sectores onde existem contributos directos relevantes da actividade científica para os negócios empresariais. (Este é um bom texto para reflectir sobre o tema).
2. O aumento do stock de conhecimento pode conduzir – e tem conduzido – à inovação e ao desenvolvimento de soluções que não envolvem necessariamente “produtos que cheguem ao mercado”. Um exemplo óbvio, mas não único, é a área da saúde, responsável por mais de 40% das publicações científicas internacionais em Portugal. Apenas uma pequeníssima parte desta investigação se traduz em “produtos que cheguem ao mercado”, mas no seu conjunto representam avanços relevantes nos conhecimentos e nas práticas médicas em Portugal, de que todos beneficiamos.
3. Não é de todo claro que o sistema científico em Portugal falhe “muitas vezes em responder aos desafios reais do tecido produtivo”. Existe uma forte correlação entre as estruturas produtivas dos países e o nível de interacção entre empresas e instituições de ensino superior. É expectável que haja muita interacção em economias baseadas em sectores baseados no conhecimento – como a farmacêutica, a biotecnologia, a nanotecnologia, a aeronaútica, a computação, etc. – mas o mesmo não é de esperar em economias que assentam no turismo, no vestuário, no calçado e na cortiça. Como procurei mostrar neste artigo, Portugal apresenta níveis de desempenho inovador superiores ao que seria de esperar dada a sua estrutura produtiva – e isto em muito se deve ao investimento que tem sido feito no reforço das competências avançadas de compreensão e resolução de problemas. Se a interacção universidade-empresa não é maior, tal deve-se em larga medida à estrutura produtiva do país.
Sabendo que a “Estratégia Portugal 2030” vai enquadrar a utilização dos 30 mil milhões de euros que chegarão a Portugal na próxima década ao abrigo da Política de Coesão da UE, esta cedência ao senso comum é pouco tranquilizadora.
Para aulas de jornalismo e de economia política
«Ontem à noite [sexta-feira, 11], na SICN, o ministro Pedro Nuno Santos deu uma entrevista esclarecedora, informada e objectiva sobre a grave situação da TAP, o plano de reestruturação e os seus pontos de vista, concordemos ou não com todos eles. A dupla de entrevistadores deu um espectáculo degradante, em contraste com a seriedade do entrevistado. Escudados na sua condição de jornalistas, julgaram arrogantemente estar acima do escrutínio público. Manifestaram preconceito e falta de isenção e objectividade, usaram e abusaram da provocação e do desrespeito pessoais, propalaram mentiras factuais sobre a TAP. Não tendo feito o exigido trabalho de casa e confiando que jogavam em casa, acabaram vencidos pela objectividade, informação e frontalidade do ministro. Mas fica o péssimo serviço ao jornalismo prestado sobretudo por José Gomes Ferreira, acompanhado por João Vieira Pereira, conhecidos defensores da austeridade neoliberal e do controlo troikista sobre um país que julgam incapaz (somos a "choldra", não é?). Inimigos da TAP pública que o ministro defende e o país precisa, tudo fizeram para mostrar que, não podendo ser privada, que se feche. Têm certamente muitos apoiantes, dispostos mesmo a torcer os factos e manipular a verdade para levar a água ao seu moinho. A defesa da maior exportadora nacional, de uma TAP pública, ao serviço da soberania e da economia do país, que proteja o máximo de empregos e limite os sacrifícios laborais, é uma causa longe de estar ganha. Exige mobilizar os trabalhadores, os sindicatos, a cidadania e as esquerdas, para enfrentar se necessário Bruxelas e não consentir que nos imponham a liquidação da TAP»
Henrique Sousa, Não deixemos que nos TAPem os olhos
Nas palavras de um amigo, são 45 minutos de uma entrevista notável, bem sintetizados neste comentário do Henrique Sousa. Podem ser vistos na íntegra aqui, na página da SIC Notícias (a peça ainda não foi disponibilizada pela estação no youtube). Trata-se de uma entrevista com um duplo valor pedagógico, dado o seu interesse para aulas de jornalismo (como exemplo de jornalismo de cilada, capcioso e arrogante, no desgraçado estilo «Dupont et Dupont»), mas também de economia política (como bom exemplo de pluralismo do pensamento em Economia, que muitos gostariam de poder negar). Seja qual for a opinião que tenham sobre a TAP, não deixem de ver. Vale mesmo a pena.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2020
Pés de dançarino
Na recente entrevista que Marcelo Rebelo de Sousa deu à SIC, já como candidato a Presidente da República - em que foi apertado por não ter dado importância à morte assassinada de um cidadão ucraniano (ao ponto de Ricardo Costa quase lhe ter chamado mentiroso) - viu-se algo que poderia ser a cauda de qualquer coisa.
Atente-se no pormenor das imagens onde está o círculo azul, mesmo à abrir (no segundo 56-57) quando é feita a primeira pergunta. E tenha presente esse pormenor, porque até ao fim da entrevista irá surgir mais vezes:
Não há, na verdade, detalhe mais encantadoramente revelador do que pode ser a alma de alguém que se candidata ao primeiro lugar da Nação. Pouco importa o que ele está a dizer, porque a realidade na sua mente é outra: o jogo, a brincadeira por debaixo da mesa enquanto endireita os punhos de renda com os dedos tranquilos, preparados para a próxima cambalhota.
E ainda nem sabíamos do que se seguiria, com Marcelo Rebelo de Sousa a interferir directamente na acção do Governo, extrapolando as suas competências e envolvendo a direcção da PSP nas suas artimanhas.
Só que agora sabemos: nunca deixaremos de ver os seus pés a bailar.
A estagnação económica e o cinismo político
Os dados publicados hoje pelo Eurostat confirmam que Portugal está entre os países da União Europeia onde o salário mediano é mais baixo. Na verdade, os números do Eurostat mostram que, quando considerada o poder de compra dos diferentes países, só a Bulgária possui um nível de rendimento mediano inferior ao português. A publicação destes dados foi prontamente aproveitada por alguns políticos à direita para criticar a estagnação económica que o país atravessou nas últimas duas décadas. João Almeida, do CDS, diz que este é o resultado de uma "governação socialista" que nos deixa "cada vez mais longe da prosperidade". Miguel Morgado, do PSD, adota o mesmo tom e sublinha que se não queremos "condenar o país à pobreza perpétua", as políticas socialistas têm de mudar. É um diagnóstico tão convicto quanto errado, por quatro motivos essenciais.
Por um lado, o facto de o país ter tido governos do PS está bastante longe de significar que as políticas adotadas possam ser caracterizadas como socialistas: na verdade, a desregulação das leis do trabalho, a privatização de quase todos os setores da economia (banca, indústria, energia ou transportes) e a proliferação de PPPs são alguns exemplos de como a orientação da política adotada em Portugal foi, se alguma coisa, a da liberalização.
Por outro lado, os que, à direita, criticam a estagnação económica do país nos últimos 20 anos fazem-no sem nunca referir ou considerar o principal fator de estagnação: a adesão ao euro, que, deixando o país sem controlo da política monetária e cambial, enfraqueceu as exportações, favoreceu as importações e promoveu o endividamento externo, sobretudo bancário, canalizado para setores de baixo valor acrescentado e para atividades especulativas (como o imobiliário).
Além disso, estes críticos são os mesmos que passaram os últimos anos a defender um modelo de globalização marcado pela liberalização dos movimentos de capitais, abertura ao comércio internacional, desregulação financeira e laboral e redução do papel do Estado na economia, tudo aspetos que explicam a tendência de estagnação salarial, como conclui o estudo "Determinants of the Wage Share: A Panel Analysis of Advanced and Developing Economies", publicado por Engelbert Stockhammer em 2015 (fonte do gráfico ao lado).Por último, os que, à direita, criticam a prevalência de baixos salários no país são os mesmos que diziam que andávamos a viver acima das possibilidades antes da última crise. Foi por isso, aliás, que aplicaram um agressivo programa de desvalorização interna (i.e. corte dos rendimentos reais) quando estiveram no governo. Foi também por isso que se opuseram à política de reforço dos rendimentos prosseguida pela maioria de esquerda na última legislatura. E é por isso que costumam queixar-se dos elevados "custos do trabalho" quando se debate, entre outras coisas, o aumento do salário mínimo.
Percebe-se, por isso, que o diagnóstico apresentado pela direita não podia estar mais longe da realidade. É certo que Portugal tem um problema de estagnação nas últimas décadas, pelos motivos discutidos, e que isso tem efeitos negativos na evolução dos rendimentos. Mas reconhecê-lo não implica cair na armadilha de quem, tendo feito parte do problema, propõe agora as mesmas soluções que o criaram.
A notável evolução da discussão sobre a TAP
Criticou-se a "renacionalização" da empresa, agora percebemos que a gestão privada foi tudo menos um exemplo de criação de valor para o país.
Criticou-se a decisão de salvar a TAP da falência, hoje quase todos reconhecem a importância da empresa para a economia nacional, seja pelo seu impacto no turismo ou pelo efeito de arrastamento que tem sobre muitas centenas de outras empresas.
Criticou-se o reforço da posição accionista do Estado, hoje percebemos que os accionistas privados não estavam disponíveis para pôr mais dinheiro na TAP (e que nenhum investidor de jeito tem interesse ou está em condições de o fazer neste momento).
Criticou-se a indemnização de 55 M€ a David Neelman, hoje sabemos que Neelman tinha direito a exigir 224 M€ em prestações acessórias (e poucos se atrevem a defender que mantê-lo como accionista seria uma boa ideia).
Critica-se agora o plano de reestruturação. Espera-se que quem o faz deixe claro que alternativa propõe.
Da economia política (inter)nacional
domingo, 13 de dezembro de 2020
Lançar alternativas

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020
Sá Carneiro remixed
A questão é saber se aqueles que deram a vida ao sistema durante um determinado período podem ser protagonistas do período seguinte, se não devem ser outros os protagonistas do período seguinte (Marcelo Rebelo de Sousa, 10/12/2020)
Marcelo Rebelo de Sousa tudo tem feito para se colar a Francisco Sá Carneiro.
Fez quase coincidir o lançamento da sua recandidatura com a homenagem ao 40º aniversário da sua morte. Qualificou-o como um dos “pais da democracia”. Fê-lo despencar-se dos céus como vítima de um atentado político. E no prefácio que escreveu ao livro recentemente editado pelo Instituto Francisco Sá Carneiro "Sá Carneiro e a Ala Liberal - 1º volume, 1969-1973", Marcelo chega mesmo a reescrever a História quanto à legalização dos partidos, ao omitir as declarações de Sá Carneiro transcritas nesse mesmo livro.
É o caso da ideia de Sá Carneiro que não se
deveria então criar partidos, mas sim "começar por um tipo de
associações políticas que não fosse imediatamente o tipo partidário",
porque "esse problema [!] só viria a pôr-se muito mais tarde"; que
as pessoas tinham de ser preparadas "para actuarem politicamente"; e
recusando mesmo que "o chamado Partido Comunista Português estaria em
condições de mais tarde ser admitido como partido político", que tudo
dependeria das "posições de tal partido".
Se avivei a sua curiosidade sobre o pensamento deste "pai da democracia" que Marcelo parece tanto eleger, leia as citações por inteiro:
Combates pela história da economia política
quinta-feira, 10 de dezembro de 2020
A reindustrialização contada pelos industriais
Fugir dos factos como o diabo da cruz

«As Metas Curriculares, que estavam em vigor em 2015 e pelas quais foram preparados os alunos então avaliados, não sofreram alterações até hoje. O que mudou foi a avaliação, ou a falta dela, e foi a "flexibilidade curricular". (...) A reversão do progresso comprovado em 2015 é, certamente, resultado de uma série de medidas entretanto adotadas» (Nuno Crato)
«A verdade é que em 2015 o mérito tinha sido do Passos e agora a culpa é toda deles: os miúdos testados foram dos do 4º ano, entraram para a escola com a "geringonça"! Infelizmente estão a pagar o preço da degradação da exigência e do regresso do facilitismo» (José Manuel Fernandes)
Por cegueira ideológica (de que costumam acusar os outros), chico-espertismo sonso ou incompreensível desinformação, uma certa direita que segue Nuno Crato e as suas políticas não resiste à tentação de passar ao lado dos factos, ora procurando ficar com os louros que não lhes pertencem (quando os resultados são bons, como sucedeu no PISA 2015), ora sacudindo para cima de terceiros a água do seu capote (quando os resultados pioram, como sucedeu no PISA 2018).
Já procurámos demonstrar aqui porque é que a descida dos resultados dos alunos portugueses no TIMSS de 2019 não pode ser assacada à substituição das Metas curriculares de Crato pelas Aprendizagens essenciais de João Costa. A razão é simples e o próprio Crato reconhece: os alunos do 4º ano que participaram no estudo apenas tiveram contacto, em todo o seu percurso no ensino básico, com as Metas curriculares (tendo as Aprendizagens essenciais sido aplicadas só em 2018/19 e de forma restrita, abrangendo apenas os alunos do 1º ano). Ou seja, o suposto efeito pernicioso, nestes alunos, das Aprendizagens essenciais, é (à semelhança do PISA 2015) uma impossibilidade cronológica.

Adenda: Recorrendo a um argumento mais interessante, Alexandre Homem Cristo reconhece agora que as Metas curriculares se mantiveram apesar da mudança de governo, sugerindo que o problema decorre das orientações então dadas «às escolas para que as metas curriculares e os programas de Matemática não fossem cumpridos». Não é um facto explicativo dos resultados mas é, sem dúvida, uma hipótese de trabalho válida. Tão válida como a de considerar que as Metas curriculares de Crato eram desajustadas para a faixa etária dos alunos e difíceis de cumprir, entre outras perversidades que, juntamente com os exames do 4º ano, vieram instaurar (e que, no seu conjunto, poderão - também por hipótese -, explicar o facto de a melhoria de resultados no TIMSS, entre 2011 e 2015, ter já sido inferior à registada entre 1995 e 2011).
terça-feira, 8 de dezembro de 2020
Os «alunos de Crato», agora no TIMSS de 2019
Dedicando-se à análise política deste estudo, Alexandre Homem Cristo, por exemplo, não hesita em afirmar que «estes resultados espelham os efeitos das políticas públicas do PS na educação desde 2015. Não haja qualquer dúvida: os ciclos do TIMSS estão alinhados com ciclos governativos. Em 2015, o TIMSS foi também o teste de algodão das políticas públicas então implementadas (2011-2015)». E sublinhando que «o TIMSS 2019 testa alunos que fizeram o 1º ciclo (2015-2019) sob governo PS», associa estes resultados, sem pestanejar, ao «relaxamento imposto pela eliminação de exames», ao «desvalorizar das metas curriculares de 2012 (criticadas pelo governo desde a 1ª hora)» e às «novas orientações e Aprendizagens Essenciais», que teriam afetado os alunos avaliados «no seu 4º ano».
Sucede, porém, que nada disto se pode deduzir do TIMSS 2019. Como bem lembra o Secretário de Estado Adjunto e da Educação, João Costa, estes alunos «estudaram até ao final do 1º ciclo com as metas curriculares introduzidas em 2013», tendo «o Perfil dos Alunos e as aprendizagens essenciais, bem como a flexibilidade curricular, entrado em vigor em 17/18 para as escolas piloto e em 18/19 para as restantes, apenas no 1º ano». Ou seja, estamos perante «alunos de Crato» e não supostas vítimas «das políticas públicas do PS na educação desde 2015».
Ao falhar na verificação do calendário da implementação das políticas educativas adotadas pela maioria de direita (2011-2015) e pelo PS e a maioria parlamentar de esquerda (2015-2019), Alexandre Homem Cristo desfaz o chão que sustentava a defesa das metas curriculares e a rejeição da flexibilidade curricular e das aprendizagens essenciais, a par da crítica à ausência de exames no 4º e 6º ano a partir de 2015, chegando a sugerir a sua reintrodução (e esquecendo que, em 2015, Portugal se encontrava «orgulhosamente só» na Europa relativamente à realização de exames até ao 6º ano, sendo apenas parcialmente acompanhado pela Bélgica francófona).
Cuidado
Há uns anos, um aluno perguntou à antropóloga Margaret Mead o que poderia ser considerado como o primeiro sinal de civilização numa dada cultura. O aluno esperava que ela respondesse fazendo referência a anzóis, recipientes de barro ou pedras de moagem. Mas não. Mead disse que o primeiro sinal de civilização numa cultura antiga era um fémur (osso da coxa) que tivesse sinais de ter partido e estar curado. E explicou que no reino animal se morre quando se parte uma perna. Não se pode fugir do perigo, chegar ao rio para beber água ou caçar para comer. Passa-se a ser carne para os animais selvagens em redor. Isto é, nenhum animal sobrevive o tempo suficiente para que uma perna partida possa ficar curada. Um fémur partido com sinais de que está curado demonstra que alguém dedicou o seu tempo a ligar a ferida de quem caiu, a transportar essa pessoa para um sítio seguro e a acompanhá-la durante o tempo de recuperação. A civilização começa quando se ajuda alguém que está em dificuldades, disse Mead.
segunda-feira, 7 de dezembro de 2020
Saúde, privados e pressões em tempos de pandemia
No contexto da pandemia, o problema agrava-se. Perante a incapacidade dos serviços públicos (em Portugal e em todo o lado) para responder às necessidades extra-COVID, aparecem os grupos económicos privados a "oferecer" os seus serviços. Para muitos utentes e profissionais de saúde, o recurso aos privados surge como uma resposta pronta para aliviar a pressão sobre o SNS. Mas a bondade da solução é menos óbvia do que parece.
Os grupos económicos do sector da saúde não são associações de beneficência. O acesso aos seus serviços tem um preço e tem condições. O preço será tanto mais alto quanto mais vozes houver a pressionar o Estado no sentido de um acordo rápido. Este reforço da capacidade negocial dos privados - em que parecem apostadas algumas ordens profissionais, os fundamentalistas do mercado e até alguns que costumam ser mais exigentes perante sinais evidentes de rentismo - leva-os a tentar impor um acordo peculiar: para os hospitais privados iriam apenas os doentes não-COVID (o que lhes permitiria diferenciar-se como locais seguros); ao SNS caberia gerir a pandemia e tudo o resto que não estivesse em condições de pagar a terceiros.
Nas condições actuais, seria imoral o Estado não procurar reforçar as capacidades instaladas no SNS, incluindo através do recurso aos privados. Igualmente imoral seria o governo ceder à pressão de quem usa todos os meios à sua disposição para maximizar os seus lucros, tentando convencer a população de que se trata do bem comum.
Nesta disputa joga-se não apenas a saúde de todos no contexto pandémico, mas o futuro de um serviço público fundamental para o modelo de desenvolvimento do país.
domingo, 6 de dezembro de 2020
Um jornal contra as elites oportunistas
sexta-feira, 4 de dezembro de 2020
Mal explicado
Marcelo Rebelo de Sousa no seu melhor sobre o estado de emergência:
Não se trata de pôr em causa a Constituição, mas trata-se de pôr em causa o que diz a Constituição. Daqui a 15 dias, consulto os partidos, mas já tomei uma decisão: Vai haver estado de emergência por um mês.
Quem tiver dúvida é ver a página oficial:
"O período de renovação do estado de emergência, hoje decretado, termina em cima do Natal – na noite do dia 23 – aconselhando – e foi esse o entendimento de partidos, do Governo e da Assembleia da República – que se trace já o que se perspetiva para além do dia 23, ou seja, por um mês, a concluir no dia 7 de janeiro de 2021. Não se trata de deixar de cumprir a Constituição da República Portuguesa, que obriga a períodos máximos de quinze dias para estado de emergência e para suas renovações. Antes do dia 23 haverá, como deve haver e sempre tem havido, iniciativa do Presidente da República, audição dos partidos políticos, parecer do Governo, autorização da Assembleia da República e decreto do Presidente. E, nessa ocasião, se verificará se a evolução da pandemia confirma – como se deseja vivamente – o quadro agora programaticamente definido. Só que, em vez de se encarar a intervenção do Estado, quinzena a quinzena, o objetivo passa a ser o de alargar o horizonte para um mês. De 9 de dezembro a 7 de janeiro."
Portanto, se a pandemia o permitir fica tudo como estiver; se a pandemia não o permitir, não fica tudo como está. Tudo pode ficar na mesma? Pode. Mas tudo vai ter de ser avaliado? Sim. Mas se for avaliado pode ser que não fique na mesma? Sim. Mas marca-se já um mês porque pode ser que fique na mesma? Sim. Mas pode não ficar na mesma? Pode. Mas isso não é contraditório? Pssstt!! (lembra-lhe alguma coisa? Claro, a velha rábula dos Gato Fedorento... )
Alguém percebe a razão?
A mesma conversa fiada de sempre
quinta-feira, 3 de dezembro de 2020
Uma lição de solidariedade
Uma resposta sindical necessária. Numa frase, Vítor Dias resume o que está em causa: “Quem quer solidariedade não agride trabalhadores.”
Quebra nos salários: mulheres estão a ser mais penalizadas pela crise
Pedalar sempre
Com a partilha dos posts no Facebook (a partir de maio de 2011, hoje com cerca de 12 mil seguidores) e no Twitter (desde outubro de 2014, com cerca de 2 mil seguidores), o Ladrões de Bicicletas tem conseguido sobreviver ao quase desaparecimento da blogosfera. Aliás, considerando o total de visualizações até final de novembro, 2020 regista, com um número de visitas a rondar as 972 mil, uma inversão da tendência de queda que se estava a verificar desde 2017. Havendo quem continue a seguir-nos - e não faltando razões para prosseguir, muito pelo contrário - pedalemos pois.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2020
Colecção "colaboradores"
Fala do caso Telexfree, uma empresa que, segundo o Público, "entre 2012 e até meio de Abril de 2014, começou a apresentar-se
como um negócio de venda de pacotes ‘VoIP’, uma tecnologia que utiliza a
internet como alternativa à rede fixa de telefone". E que acabou por se manifestar como uma empresa em esquema Ponzi.
Ora, por que razão se havia de escolher a palavra "colaboradores" para definir os responsáveis por esta fraude?
Repita-se pela enésima vez: nem o Código do Trabalho, nem a jurisprudência tratam os trabalhadores por colaboradores. Não há contratos de colaboração. Há contratos de trabalho. Colaborador é uma aberração jurídica cujo uso fraudulento tenta camuflar um contrato de trabalho com um contrato de prestação de serviços. A vantagem é óbvia: um contrato de prestação de serviços não tem encargos para a Segurança Social e pode ser rescindido a qualquer momento, sem compensação por despedimento. É a subversão total, mas foi a forma que o patronato arranjou, ao fim de décadas de resistência dos trabalhadores - e do Tribunal Constitucional -, para tornar a empresa mais líquida, reduzir encargos e neoliberalizar os despedimentos.
A justificação da escolha pelo jornal, como o Ladrões de Bicicletas apurou, teve que ver com a informalidade do esquema. E portanto, subjacente ao raciocínio, até está uma associação interessante: quem geralmente é tratado por colaborador está envolvido numa penumbra de informalidade que escamoteia a sua realidade efectiva.
Mas será que este exemplo é diferente dos outros casos?
Se fosse nos Estados Unidos, não teria sido. Lá, havia uma empresa. Tanto assim que faliu. E nesse caso, os responsáveis da empresa ou eram dirigentes assalariados - e portanto trabalhadores no sentido jurídico do termo - ou eram accionistas ou sócios ou proprietários da empresa. Mas nunca colaboradores, prestadores de serviços. E portanto, muito menos "ex-colaboradores".
Mas e em Portugal? O artigo menciona "a célula madeirense" para designar quem, ao largo da lei, angariava fundos para esta nova economia colaborativa (conceito geralmente usado para designar empresas como a Uber). O conceito célula levar-nos-ia ainda mais longe, mas deixemos esse carreiro. Centremo-nos na Madeira. Neste caso, não eram "colaboradores", mas qualquer palavra associado ao carácter ilegal da actividade (burlão, contador do vigário, bandido, membro de quadrilha, gangster, etc.).
De qualquer forma, este seu novo uso parece ganhar todo um novo sinal. Mas será que foi perceptível?
terça-feira, 1 de dezembro de 2020
Confirmações
segunda-feira, 30 de novembro de 2020
A infinita lata de Bonifácio
«O Chega, se conquistar a necessária credibilidade, talvez ajude a criar um espaço de discurso público isento dos constrangimentos e dos tabus que têm impedido a livre expressão de quem não se revê no socialismo. O desnorte político e intelectual criado pela sua aparição parece-me um fenómeno de bom agoiro» (Fátima Bonifácio, aqui)
José Miguel Júdice, Marques Mendes, Paulo Portas, Miguel Poiares Maduro, António Lobo Xavier, Nuno Rogeiro, José Manuel Fernandes, João Vieira Pereira, Helena Garrido, Bernardo Ferrão ou José Gomes Ferreira, para citar só de memória alguns dos comentadores de direita, políticos e jornalistas (estes apresentados como isentos), que proliferam nos espaços televisivos de comentário político (para já nem falar de um Observador que a esquerda não tem).
Um estudo do MediaLAB (ISCTE) de 2019, publicado no European Journalism Observatory, tema de um texto de Paulo Pena no Diário de Notícias de 8 de junho desse ano, não podia ser mais claro: «nos últimos três anos aumentou o número de comentadores políticos ligados ao PSD e ao CDS nos vários canais televisivos. (...) O PCP é o partido menos representado». Fazendo as contas, à direita cabem cerca de 60% dos intervenientes em programas de comentário e debate político nos principais canais e à esquerda cerca de 30%, com os comentadores não alinhados na ordem dos 11%. Em clara dissonância, portanto, com a composição político-partidária do Parlamento.
Nada que impeça Fátima Bonifácio de achar, no artigo de hoje no Público (com palavras escritas «numa cave clandestina e disponibilizadas em papel bíblia policopiado e distribuído ilegalmente», como intui, com ironia, Pedro Vieira), que o Chega é uma oportunidade para romper com os constrangimentos e tabus «que têm impedido a livre expressão de quem não se revê no socialismo». Face ao absurdo, talvez não fosse má ideia encontrar melhores pretextos para dissimular a vontade de saudar, branquear e normalizar a chegada desta extrema-direita.
Isto não é normal
“A normalidade deu origem a Trump e ao coronavírus. A normalidade significou quatro décadas de salários estagnados e um aumento da desigualdade, de tal forma que quase todos os ganhos económicos foram canalizados para o topo. A normalidade significou 40 anos de redes de apoio social rompidas e o mais caro e desadequado sistema de saúde do mundo moderno. A normalidade é a brutalidade policial. A normalidade é a mudança climática à beira da catástrofe.” (minha tradução)
domingo, 29 de novembro de 2020
Mundo cão
"A selva laboral dos nossos dias" não é nada que não saibamos, mas tem a força do compacto de realidades que, por vezes, mesmo sem as esquecermos, não lhe damos este retrato da violência de classe de que está impregnada a "ciência" neoliberal e os argumentos "técnicos" esgrimidos em concertação social, que colocam displicentemente o mundo do trabalho como "variável de ajustamento" do que correr mal - ou não - nas empresas. O problema é que nesse "outro lado" estamos quase todos nós. E estaremos por muito tempo, porque este "mundo cão" acaba por engendrar e reforçar um certo modelo de subdesenvolvimento.
"Vivem-se hoje momentos muito difíceis para quem vive do seu trabalho, e os que se avizinham serão decerto ainda piores. Para além dos inúmeros despedimentos já anunciados e de toda uma série de outros abusos (como, por exemplo, os processos de lay-off efectuados à margem da lei, antecipando futuros despedimentos, a imposição de “adendas” aos contratos aumentando os tempos de trabalho e/ou diminuindo as retribuições, ou a substituição em massa de trabalhadores formalmente precários por outros ainda mais precários), torna-se cada vez mais evidente que, a breve trecho, virão aí inúmeros fechos e insolvências de empresas.
Os desempregados
Com um número real de desempregados (isto é, de todos quantos na verdade se encontram nessa situação, independentemente de estarem ou não inscritos nos Centros de Emprego ou de procurarem activamente emprego) a ultrapassar, no final do 3º trimestre de 2020, 655 mil (12% da população activa), dos quais apenas 230 mil (pouco mais de 1/3) consegue receber subsídio de desemprego, fácil é perceber que quando o desemprego real atingir o 1 milhão de desempregados, mais de 600 mil não terão direito a tal subsídio e o chamado “Apoio Extraordinário ao Rendimento dos Trabalhadores”[1], além de irrisório, não chegará nem para 1/3 das pessoas em situação de particular desprotecção económica.
Os pensionistas
Quanto aos 3,3 milhões de pensionistas, apenas os que têm pensões inferiores a 659€ mensais – e que são 1,9 milhões! – terão em 2021 um miserável aumento (de 10€ mensais, ou seja, 0,66€/dia). A situação da grande maioria dos pensionistas é, pois, de uma grande miséria. Segundo a Pordata o valor mínimo mensal das pensões de velhice e de invalidez da segurança social era de 273,39€ em 2019 e de 275,30€ em 2020, sendo que, em 2019, mais de 1,6 milhões de pensionistas tinha pensões inferiores ao salário mínimo nacional!
Os trabalhadores “não declarados”
O chamado “trabalho não declarado” – ou seja, que é prestado, e (mal) remunerado, à margem da lei – representará cerca de 1/4 de todo o PIB[2], o que significa que, em 25% da actividade produtiva do país, não há leis do Trabalho, nem salários mínimos, nem segurança e saúde na prestação da actividade, nem sequer seguro de acidentes de trabalho, vigorando tão somente a lei da selva.
Os trabalhadores precários
Tempos difíceis
2. De facto, se no início se registou uma maior incidência da pandemia no norte litoral, a par de alguns concelhos na AML e outros pontos mais específicos, a segunda vaga carateriza-se por uma incidência mais generalizada e dispersa, a par da anterior prevalência de certos contextos. O que quer dizer que se na primeira fase os surtos eram mais definidos e delimitados (fábricas, lares, festas, etc.), facilitando o rastreio, na segunda prevalece o contágio mais difuso e de micro-escala (agregados familiares e comunidades), associado a um certo relaxamento social na sequência do desconfinamento e ao regresso à «normalidade», e por isso mais difícil de rastrear.
3. Quer isto dizer que faz hoje ainda menos sentido que na primeira vaga o foco mediático em eventos pontuais e únicos - do 25 de abril ao 1º de maio, do 13 de maio à Festa do Avante, ou do 13 de outubro ao Congresso do PCP - quando o maior risco de descontrolo da pandemia advém de um contágio generalizado e disperso. Não é a mesma coisa - ainda que se compreenda o sentimento de injustiça - permitir a celebração de um 13 de maio em Fátima (isto é, num dia e num local precisos), e autorizar missas e funerais por todo o país, em que se torna impossível verificar e garantir o cumprimento das normas de segurança, nos diferentes dias e locais em que esses eventos ocorrem.
4. Sabemos bem, contudo, que esta obssessão mediática por eventos únicos em contexto de pandemia (o episódio mais recente é o Congresso do PCP) não é inocente nem isenta, visando precisamente alimentar a crispação social. O que, de um ponto de vista pedagógico, é duplamente perigoso. De facto, esta obsessão mediática dirigida não só é desiformativa em relação aos processos e formas de contágio mais relevantes (atribuíndo um risco a eventos únicos e pontuais que estes não têm), como promove uma equivalência de eventos (de natureza partidária e os outros), que desvaloriza pilares essenciais da democracia. Desta forma, os tempos tornam-se ainda mais difíceis.
sábado, 28 de novembro de 2020
Vermelho é cor
O PCP é uma condição necessária, mas naturalmente não suficiente, para uma alternativa digna desse nome para este país. Lendo as teses que estão a ser debatidas no seu congresso, com os acordos e desacordos naturais, atrevo-me a dizer que não conheço melhor reflexão política colectiva disponível neste país. A falível tomada de posição política é sempre implícita ou explicitamente comparativa.
sexta-feira, 27 de novembro de 2020
Portugal é o "bom aluno" de que escola?
Morre um gatinho sempre que alguém fala da reedição de 2011
quinta-feira, 26 de novembro de 2020
A realidade em tempos financeiros
Qualquer pessoa sensata sabe que os EUA estão enviesados a favor dos ricos e poderosos. Um estudo científico particularmente iluminador (...) quantifica este problema (...) Mostra que as mudanças de opinião entre os 1% mais ricos da população tornam a mudança política muito mais provável (...) Trump não foi a causa, mas antes um sintoma de um pêndulo que oscilou demasiado para a concentração de capital e para a corrupção da política e dos negócios. Tivemos décadas de mudanças legislativas, da política fiscal às regras de governo das empresas, que favoreceram o capital em detrimento do trabalho (...) Isto fez com que a economia política dos EUA se pareça hoje perigosamente com um oligopólio. Olhem para a forma como a Uber, Instacart, Lyft e outros grupos digitais triunfaram em relação à legislação laboral californiana, gastando 200 milhões de dólares para ganhar o referendo que isenta os trabalhadores destas empresas de benefícios sociais (...) Como Karl Marx observou, é só sob ameaça das massas que os donos dos meios de produção reconhecem os seus interesses comuns. A grandes empresas norte-americanas obtiveram o que queriam de Trump, ou seja, cortes de impostos e desregulação. Sabem que hoje já não há mais nada que possam obter dele.