sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Sá Carneiro remixed

A questão é saber se aqueles que deram a vida ao sistema durante um determinado período podem ser protagonistas do período seguinte, se não devem ser outros os protagonistas do período seguinte (Marcelo Rebelo de Sousa, 10/12/2020)


Marcelo Rebelo de Sousa tudo tem feito para se colar a Francisco Sá Carneiro. 

Fez quase coincidir o lançamento da sua recandidatura com a homenagem ao 40º aniversário da sua morte. Qualificou-o como um dos “pais da democracia”. Fê-lo despencar-se dos céus como vítima de um atentado político. E no prefácio que escreveu ao livro recentemente editado pelo Instituto Francisco Sá Carneiro "Sá Carneiro e a Ala Liberal - 1º volume, 1969-1973", Marcelo chega mesmo a reescrever a História quanto à legalização dos partidos, ao omitir as declarações de Sá Carneiro transcritas nesse mesmo livro. 

É o caso da ideia de Sá Carneiro que não se deveria então criar partidos, mas sim "começar por um tipo de associações políticas que não fosse imediatamente o tipo partidário", porque "esse problema [!] só viria a pôr-se muito mais tarde"; que as pessoas tinham de ser preparadas "para actuarem politicamente"; e recusando mesmo que "o chamado Partido Comunista Português estaria em condições de mais tarde ser admitido como partido político", que tudo dependeria das "posições de tal partido".

Se avivei a sua curiosidade sobre o pensamento deste "pai da democracia" que Marcelo parece tanto eleger, leia as citações por inteiro:

Diz Marcelo:

Sá Carneiro, no final de 1973 e começo de 1974, “exige a legalização imediata dos partidos políticos, condição primeira no avanço para a Democracia. (...) Nos meses que antecedem Abril de 1974, em diálogo em que intervenho com Rui Vilar, Francisco Sá Carneiro tem um objectivo premente: elaborar uma lei dos Partidos Políticos”. 

Ora, nessa altura, Sá Carneiro já não era deputado (1969-1973). Mas quando o foi, nomeadamente entre 1971 e 1972, a opinião de Sá Carneiro era diamentralmente a oposta: 

"Com todos os defeitos e riscos, os partidos continuam a ser o meio mais válido e eficaz de participação política, indissociáveis do sufrágio inorgânico e de concepção democrática que a nossa Constituição acolhe. Não se segue daí que, de repente, os houvéssemos de criar entre nós. Haverão de surtir naturalmente, fruto da tão esperada e urgente liberalização política, a qual condiciona o progresso social e económico. Para isso, é necessário possibilitar a prática dos direitos de reunião, de associação, e de expressão, facultando uma vida política que não seja de sentido único, criando condições para a existência de correntes de opinião que por enquanto não existem por falta de liberdade de expressão. (Entrevista ao jornal Comércio do Funchal, 20/6/1971, citado em Sá Carneiro e a Ala Liberal, 1º volume, 1969-1973, Instituto Francisco Sá Carneiro,  Dezembro 2020

As suas declarações seriam ainda mais recuadas numa entrevista a 15/12/1971 ao jornal República, entrevistado pelo jovem Jaime Gama: 

- "Há outra forma de manifestação que não seja a dos partidos políticos? 
- (...) Eu creio que, no nosso caso, teríamos de começar por um tipo de associações políticas que não fosse imediatamente o tipo partidário dos países democráticos europeus, mas que tendesse para o ser, preparando as pessoas para actuarem politicamente primeiro no quadro dessas associações, mais tarde no quadro de verdadeiros e autênticos partidos, que não vejo que sejamos incapazes de conciliar com a boa ordem e civismo”. 

E quanto à legalização do Partido Comunista Português, Sá Carneiro era peremptóriamente contra: 

- Se lhe fosse dada oportunidade para votar a autorização do livre funcionamento de partidos políticos em Portugal, qual seria a sua posição, nomeadamente em relação à legalização do chamado Partido Comunista Português? 

- (...) Não creio que neste momento pudesse ser legalizado o Partido Comunista Português. Acho indispensável que previamente se fizesse um esclarecimento da situação, das actuações, das linhas de cada uma das correntes políticas. Que se começasse por associações de carácter não especificamente partidário; portanto esse problema só viria a pôr-se muito mais tarde. Não sei se o chamado Partido Comunista Português estaria em condições de mais tarde ser admitido como partido político. Tudo dependeria do funcionamento gradual das instituições. E das posições de tal partido.

[saliente-se que Sá Carneiro usa uma formulação usada pela própria PIDE quando se refere ao PCP como o "denominado", o "autodenominado", o "chamado" e sempre em letra minúscula,  como se o PCP fosse, antes, uma 5ª coluna soviética]

- E em relação aos outros partidos políticos?

- Não iria, para já, para o funcionamento imediato dos partidos políticos. Iria começar por uma tentativa de acção política, de liberdade de expressão, de liberdade de reunião, de associação de carácter político, para depois estudar, em face da evolução da situação, um estatuto para os partidos políticos.

Aliás, esta parte é francamente omitida pelo próprio PSD quando fez um vídeo promocional do papel da ala liberal do regime de Caetano, que quase surge como a verdadeira causa da instauração da democracia. O video enaltece as posições quase de esquerda - socializantes e social-democratas - de Sá Carneiro, mas passa a mata-cavalos pela página em que Sá Carneiro quer manter o PCP na ilegalidade e, por isso, talvez nas prisões (veja-se ao redor do minuto 4 que passa a correr):


Fotograma "escondido" no video de propaganda
 
 

Mas porquê esta posição? 

Faça-se uma viagem de mais 46 anos e tente viver-se o ambiente que se vivia em Portugal, no início dos anos 70, sob o regime de Marcello Caetano. E tente se perceber se o que pensava então Sá Carneiro era verdadeiramente fruto de uma mente salutarmente democrática ou do sentimento de que a ditadura se esgotara e que – à boa maneira de De Lampedusa – era necessário que alguma coisa mudasse, antes que tudo deixasse de ficar na mesma. 

Desde 1961 que Portugal se defendia nas colónias contra os movimentos de libertação das colónias. O PCP batia-se contra a ditadura desde o golpe de 1926 e a sua transformação em regime fascista, conduzido por Salazar. No seu programa de 1965 já colocava como seus primeiros objectivos "destruir o estado fascista e istaurar um regime democrático", "liquidar o poder dos monopólios e promover o desenvolvimento económico". O Partido Socialista dissolvera-se nessa altura, mas ressurgira e acabara por se transformar em partido em 1973. Desde 1969 que um movimento grevista coloca em causa a tentativa liberalizante de Caetano. A 28/9/1970, representantes das direcções de quatro sindicatos de Lisboa (metalúrgicos, lanifícios, bancários e caixeiros) reúnem-se e convocam outros sindicatos para reunião conjunta que se se realizou a 11/10/1970 com representantes de 13 sindicatos, tida como a fundação da intersindical. Nos 13 meses que se seguiram reuniram-se em 13 reuniões com uma participação que variou entre 13 sindicatos e 47 (13/6/1971).

Em 1969, Marcello Caetano renova a salazarista União Nacional que viria a transformar em Acção Nacional Popular, colocando à sua frente ele próprio, Baltazar Rebelo de Sousa (pai de Marcelo) e Cotta Dias. Quer  transformar a ANP,  como partido único, num movimento de massas. Remodela o Governo com “homens novos” (foi nessa altura que entraram, entre outros, Baltazar Rebelo de Sousa, Rui Patrício, Veiga Simão, João Salgueiro, Xavier Pintado, Rogério Martins). Remodela a presença na Câmara Corporativa - Lourdes Pintasilgo,  André Gonçalves Pereira, Diogo Freitas do Amaral. Ouve jovens sobre o que fazer - num dos almoços Marcelo Rebelo de Sousa esteve presente, com Diogo Freitas do Amaral, Miguel Galvão Telles, João Salgueiro, André Gonçalves Pereira (Freitas do Amaral conta isso no seu livro O Antigo Regime e a Revolução).

Nesse almoço, Marcello Caetano queria permitir a constituição de associações cívicas, mas apenas no quadro da ANP. Os presentes criticam essa ideia. Advogam antes a ideia de um único partido da oposição (!!) ou, para começar, associações cívicas fora da ANP! É daí que é autorizada a SEDES, como embrião desse partido único da oposição legitimada pelo regime, hoje tão elogiada. 

E remodela também a lista de deputados com uma ala de jovens. Era o Pinto Leite, Miller Guerra, Pinto Balsemão, Mota Amaral e outros. Como o escreveu Marcello Caetano em 1980, convidara: 

esse “grupo de gente nova justamente para animar a Assembleia e não dar sempre a impressão de unanimidade. Eles estavam ali para isso”.

Sá Carneiro vai nesse lote. Francisco Manuel Lumbralles de Sá Carneiro, formado em Direito, era visconde por parte da mãe, que fora vereadora no antigo regime, e era filho de um conhecido advogado do Porto que fora ele também deputado. Francisco Sá Carneiro tornou-se conhecido por se ter envolvido activanente no movimento para o regresso a Portugal do bispo do Porto (D.António Ferreira Gomes). Por segunda escolha, torna-se deputado de 1969 a 1973 na Assembleia Nacional (ver Dicionário de História do Estado Novo, organizado por Fernando Rosas). Francisco Pinto Balsemão fora ajudante do general Kaúlza de Arriaga, chefe de redação do órgão de comunicação da Força Aérea Portuguesa (a revista Mais Alto), que estagiara no escritório de advogado de Pedro Soares Martinez e que iniciará a sua colaboração com o jornal Diário Popular, controlado pelo seu tio, vindo a criar em 1973 o seu próprio jornal (o Expresso).

Como o disse Sá Carneiro por diversas vezes na imprensa da altura, fora convidado a 15/9/1969 e esse convite...

“não implicava qualquer compromisso que limitasse a minha liberdade de acção se viesse a ser eleito. Não só não me foi pedido o compromisso de apoio ao Governo, como, pelo contrário, ficaram expressamente reconhecidas a autonomia de acção e a liberdade de crítica em relação a uma futura participação na Assembleia” . 

 Havia, contudo, duas condições para que pudesse falar livremente, como disse à Flama a 27/3/1970:

"a de que se considerava que a futura actuação parlamentar se inseriria no essencial na linha política do Governo, ou seja, nas duas opções fundamentais propostas aos portugueses pelo senhor Presidente do Conselho, na alocução de 11/9/1969: a de rejeitar o abandono do Ultramar, perfilhando uma política de progressivo desenvolvimento e crescente autonomia das províncias ultramarinas e a de empreender as reformas com resolução e firmeza, mas também com respeito pela ordem pública e pela paz social. 

"Aceite isto, a cada um ficava salvaguardada a sua liberdade de acção, dentro de um pluralismo político voluntariamente assumido na escolha de candidaturas".

Havia,  portanto, uma certa sintonia com Caetano,  como o disse ao jornal República, a 15/12/1970:  

"Na minha opinião, as interpelações que, por vezes, têm surgido com certa vivacidade, filiam-se sobretudo num receio inteiramente infundado de ver postas em causa aquelas duas opções fundamentais referidas nem sempre entendidas. O que confirma que é nelas que está o ponto de convergência perfeitamente compatível com as divergências efectivamente existentes em muitos outros campos e também nos próprios métodos e oportunidades de acção."

Recorde-se que, nesta altura, Portugal está em guerra colonial há quase dez anos! Talvez até pelas condições que aceitou, Sá Carneiro esquiva-se a falar do ultramar - diz não estar informado, que apenas visitara uma vez Angola - e prefere falar antes sobre o regime, porque o que se passa no Ultramar - na sua opinião - era uma extensão apenas do continente. Defende que “haveria que procurar, primeiro, e acima de tudo, respeitar as pessoas, em segundo lugar, e tanto quando possível, deixarmos uma ligação, uma presença nossa nesses territórios”: 

Quando questionado sobre “em que sentido emprega a palavra deixar no Ultramar", responde: 

"...  quando digo deixar, como é evidente e claro, não digo deixar o Ultramar, mas sim deixar no Ultramar (...) não podemos ter a ambição de perpetuar fórmulas passadas ou actuais de presença. Quando digo deixar realmente uma ligação ou deixar uma presença, refiro-me efectivamente à manutenção de uma obra”. 

A ala liberal fazia uma “oposição sistemática sob pretexto de que o que o governo propunha não era bastante” (diz Marcello Caetano). Apresentam projectos alternativos (como o de revisão constitucional), pugnam pela defesa dos liberdades e direitos fundamentais, amnistia política, lei de imprensa, mas nunca lutando por novos partidos. Têm acesso fácil à imprensa e chegam a fazer eco das queixas de presos políticos. Visitam a prisão de Peniche – “a visita deixara em nós boa impressão quanto às condições materiais de detenção” -, mas queixam-se de não poder falar com os presos. E ainda de outro problema, embora nada tendo a ver com a sua existência: 

“Subsistem ainda certos problemas que é necessário solucionar, entre os quais o da localização da própria cadeia, que é, repito, totalmente desaconselhável, pelo que seria bom que sem demora se tratasse da sua transferência”.

Mas a partir de 1971, segundo Freitas do Amaral, Caetano reage em bloco a esta oposição apoiando-se na maioria mais conservadora e fica refém dela. Os liberais - atacados à direita - começam a cansar-se de não serem tidos em conta. Em 1972, Sá Carneiro tenta alinhar-se com o general Spínola para que se apresente como candidato a Presidente da República, em alternativa ao candidato do regime. Publicamente, Sá Carneiro elogia Spínola, por ser aquele general capaz de salvaguarda a ordem

“pessoalmente, tenho muita consideração pelas posições que o sr.general Spínola tem publicamente, pelo bom fundamento com que tem defendido determinadas orientações que são, a julgar apenas por aquilo que tenho lido, de cariz liberalizante e progressivo, embora com manutenção da ordem e com salvaguarda dos reais interesses nacionais".

Mas o ministro da Defesa não o deixa vir à metrópole encontrar-se com Sá Carneiro e esboroa-se a iniciativa. 

O ano de 1973 é - diz Freitas do Amaral -"de lenta agonia para Marcello Caetano": "situação política degradada, a guerra começa a ficar perdida na Guiné, os massacres das populações nativas cometidas pelas tropas portuguesas (...) a Igreja Católica começa a distanciar-se do regime (...), os liberais mais prestigiados demitem-se da Assembleia Nacional e refugiam-se no Expresso, os ultras readquirem peso político e fazem corte diariamente no Palácio de Belém, Spínola rompe com Marcello Caetano (...) Kaúlza de Arriaga conspira para tentar um  golpe".

Caetano ainda acalentou esperanças de que essa ala liberal pudesse organizar-se e esvaziar nas eleições de 1973 a oposição democrática - que Caetano designava por “social-comunista”, porque o PCP fizera uma aliança com o PS em Paris. Mas o congresso da ala liberal em Julho de 1973 “não podia constituir maior decepção (...) Ninguém se entendeu”. (Marcelo Caetano, Depoimento, Distribuidora Record, 1974, pag.87)

Sá Carneiro comporta-se, pois, como integrando aquela parte do regime que começa a sentir os sinais da mudança, mas que parece nunca o questionar de alto a baixo, como um regime a abater. Sente a asfixia do regime, quer abri-lo, mas pretende manter a pressão sobre os riscos sociais de uma revolução. Aliás, tal como Marcelo Rebelo de Sousa, nascido dentro do regime e criticando-o, mas tentando ao mesmo tempo namorar com ele, como é sinal as cartas enviadas a Marcello Caetano para lhe dar alguns conselhos sobre a oposição democrática e dos almoços da entourage de Caetano. 

Como é que, então, Sá Carneiro definia publicamente o regime de Caetano? Não era uma ditadura: 

... era um “poder político concentrado e ilimitado, não havendo meios democráticos de fiscalização do seu exercício”. E por isso, “os chamados crimes políticos são, na sua quase totalidade, artificiais. A repressão penal não corresponde à consciência social da necessidade de punir uma actividade nociva à comunidade, antes é a expressão da intransigência de um poder ilimitado que não admite a livre expressão crítica ou a actuação contrária de quem dela diverge”. (...) instaurando um regime preventivo que, para evitar os abusos de alguns, anula na prática a liberdade de outros " (Projecto de lei, 15/1/1971, citado em em Sá Carneiro e a Ala Liberal, 1º volume, 1969-1973, Instituto Francisco Sá Carneiro,  Dezembro 2020)  

Sá Carneiro citava a mensagem de Ano Novo do chefe de Estado espanhol – Francisco Franco (!): 

 “a política, no mundo de hoje, não pode ser monopólio de minorias, sendo não só legítima como necessária a divergência de opiniões e de tendências indispensável a participação política de todos os cidadãos, pois hoje todo o homem tem consciência da sua força e do seu direito de intervir na causa pública”. (...) “Não é com o ressurgimento de passadas atitudes de dureza e intransigência que se contribuirá para a instalação entre nós do tão necessário clima de pacífica convivência e mútuo respeito nas salutares divergências políticas. Temos de caminhar para o livre pluralismo político”

 Criticava a actuação da polícia política, mas não questionava a sua existência,  a sua natureza política e social, nem o seu rasto de mortes e torturas: 

 “Os pontos mais graves referem-se a casos [sic!] de prisões e buscas sem mandatos e aos métodos de interrogatórios praticados, durante os quais se não admite a presença de advogados dos suspeitos presos. Trata-se de matéria de extrema gravidade, que põe em causa os mais elementares direitos humanos. 
(...) Investigação não é, não pode nunca ser, obtenção de confissões 
(...) nos crimes contra a segurança do Estado as pessoas podem ser detidas sem culpa formada, sem serem ouvidas por um tribunal e, na prática ilegal, sem a assistência de advogado, durante seis meses, ficando ainda sujeitas à aplicação de medidas de segurança por igual período, a qual pode consistir no mero prolongamento de prisão, assim elevada até um ano. São prazos e situações inadmissíveis, que urge modificar através da alteração da respectiva legislação". 

Criticava-se a falta das liberdades fundamentais individuais, mas preservando a manutenção da ordem

"Haverá que garantir devidamente a ordem pública ao disciplinar o exercício das liberdades; mas mantê-las coartadas é que me parece susceptível de favorecer a subversão, pois cria um clima de tensão e de repressão que é próprio ao seu desenvolvimento. (...) pode essa desordem intrínseca coabitar com uma tranquilidade que é só aparente, fruto da repressão e não da paz que resulta da boa-ordem. Nessas circunstâncias é que é de recear um surto subversivo ou revolucionário. Não vejo porque não havemos de ser capazes de conciliar a liberdade com a segurança e a ordem com a justiça".

E com  tudo isto, por que razão defendia Sá Carneiro a necessidade de “praticar” o associativismo antes de se constituírem partidos políticos? Era uma estratégia para avançar de pantufas junto de Marcello Caetano? Mas por que razão, se era o próprio Sá Carneiro que dizia que a intenção de 1969 de democratizar a sociedade se gorara e que o mandato de Caetano era já "o salazarismo sem Salazar"? Ou, na verdade, a sua visão implicava uma abertura ordeira do regime, sem que se perdesse o pé, sem que a liberdade jorrasse, como aconteceu em Abril de 1974?   

Ora, foi essa mesma ordem que foi posta em causa com o 25 de Abril. À medida que os acontecimentos explodem na rua, a visão “ordeira” da sociedade toma as suas posições. Forma-se o PPD onze dias depois do 25 de Abril, com um ousado programa de intervenção pública e de subordinação da iniciativa privada aos interesses do país, representados pelo Estado. O programa é escrito num clima de grande euforia, na casa de Balsemão na Quinta da Marinha. Critica-se agora a ditadura do regime passado, a exploração do homem pelo homem e o ineficácia de um sistema baseado no lucro!

Defendia-se que “não há verdadeira democracia sem socialismo, nem socialismo autêntico sem democracia”; sustentava que “a sociedade capitalista conseguiu expandir a produção (...) à custa da exploração dos trabalhadores e das nações produtoras de matérias-primas, colocando a maioria da população na dependência de alguns directores de grandes grupos económicos incontroláveis”, realidade essa agudizada em Portugal. Acusava a “progressiva proletarização da pequena e média burguesia” e o “enfraquecimento do sector público, porque o capital financeiro pôde angariar sistematicamente (...) os melhores quadros técnicos, desviando-os do serviço do Estado (...) com prejuízos de enormes massas populacionais”. Defendia que “o sistema económico baseado no lucro revelou-se incapaz de assegurar o pleno emprego sem intervenção corretora da comunidade social”. Rejeitava “as posições extremas quanto à propriedade dos meios de produção. Recusa "a intangibilidade do sagrado direito da propriedade privada e o dogma da absoluta estatização dessa propriedade” porque ambas fomentavam a “exploração do homem pelo homem” e tendem “a suprimir a liberdade e a gerar opressões e injustiças”. Alegava-se que “a iniciativa privada quando respeitada a subordinação ao poder político democrático, pode constituir um incentivo à criatividade e à formação de riqueza” e que ao Estado competia assegurar a concorrência, “o que implica a eliminação de quaisquer monopólios privados”, pugnando-se que o Estado interviesse “adequadamente, segundo o delineado na planificação democrática, com nacionalizações mediante justa indemnização e que atendam especialmente aos interesses dos pequenos accionistas, tomadas de posição maioritárias, imposições de administradores estatais, regulamentos e penalizações fiscais”. “O Estado intervirá e controlará qualquer actividade económica sempre que o alcance social desta seja mais amplo do que o seu alcance meramente económico privado”. 

Era mesmo para acreditar? O desenvolvimento da situação política faz Sá Carneiro colocar-se todavia nos antípodas. Neste caso, ao lado do general Spínola, que antes do 25 de Abril pretendera modificar por dentro o regime sem o abrir excessivamente do ponto de vista político, pretendendo mesmo manter na prisão os presos políticos, e que - depois do 25 de Abril - quis criar uma dupla legitimidade revolucionária, alcandorando-se como presidente da Junta de Salvação Nacional.

Essa intervenção de Sá Carneiro ao lado de Spínola vai acontecer em diversas alturas. Ajudou-o a formar o I Governo provisório, aconselhando nomes (Maria de Lourdes Pintasilgo e Magalhães Mota) e vetando diversos nomes (os socialistas Teófilo Carvalho dos Santos e José Magalhães Godinho). E apoiou-o tanto no golpe palaciano de Palma Carlos, de meados de 1974, como na convocação da manifestação da Maioria Silenciosa de 28 de Setembro de 1974. 

Recorde-se que, no primeiro, a intenção era a de o Conselho de Estado dar plenos poderes a Spínola na pessoa do primeiro-ministro, Palma Carlos, e, no prazo de três meses, organizar um plebiscito à figura de Spínola que, dessa forma, ganharia uma legitimidade eleitoral, deixando de estar vinculado ao Movimento das Forças Armadas. Spínola ganharia plenos poderes e adiaria a realização das eleições para a Assembleia Constituinte. Sá Carneiro participou neste golpe: contribuiu junto das forças armadas para espalhar a ideia de que o país vivia em caos e, no momento chave, em que Palma Carlos se demite como medida de chantagem para forçar a realização do plano, os ministros Sá Carneiro e Magalhães Mota demitem-se igualmente.

O fracasso desse golpe não faz esmorecer Spínola. Em Setembro de 1974, o projecto era o de Spínola assumir plenos poderes, declarar o estado de sítio, afastar o MFA do caminho e reprimir a revolução.Álvaro Cunhal descreve-a no livro A revolução portuguesa - o passado e o futuro:

A manobra inicia-se em Agosto com manifestos clandestinos a pedir a dissolução da Comissão Coordenadora do MFA e a demissão do primeiro-ministro Vasco Gonçalves, dos ministros militares e comunistas. O grémio dos industriais dos transportes automóveis programa um lock-out para 23/9/1974. Na penitenciária de Lisboa, há um motim de PIDES. A 7/9, em Lourenço Marques, dá-se uma tentativa de golpe de Estado. A 10/9, Spínola apela à maioria silenciosa no país. Os partidos Nacionalista Português, Trabalhista Democrático, Liberal, o Partido do Progresso e o PDC respondem ao apelo e convocam uma manifestação. A 12/9, o PPD de Sá Carneiro declara apoio a Spínola. E o CDS a 17/9. A 20/9 é anunciada uma comissão nacional da manifestação. Surge o jornal Bandarra que apoia Spínola. Cartazes são colados mencionando a maioria silenciosa, pagos à tipografia Mirandela pelo Banco Espírito Santo (BESCL). Aliás, o BESCL apoiou diversos partidos neofascistas, bem como o PPD. A 24/9, é feita mais uma edição do cartaz em formato pequeno com um milhão de exemplares. A Associação Livre dos Agricultores marca uma manifestação a 29/9 em Belém, com uma marcha de milhares de tratores sobre Lisboa a 28/9. Oferecem-se passagens para Lisboa. A 26/9, Spínola leva Vasco Gonçalves a uma tourada em Lisboa onde o primeiro-ministro é apupado. Os organizadores dão ao general um cartaz da manifestação. A 27/9, o general Galvão de Melo – membro da Junta de Salvação Nacional - apela à participação na manifestação. Na véspera da manifestação, Spínola convoca um Conselho de Ministros e apresenta um ultimato ao Governo. Pressiona para que seja substituído. Faz um ataque cerrado ao PCP em termos que antecipavam a sua ilegalização e confirma a sua vontade de apoiar a manifestação, ameaçando quem se opuser. No dia 27, Spínola ocupa militarmente as emissões de rádio e suspende as emissões e os jornais diários. Retém em Belém Vasco Gonçalves e o comandante adjunto do COPCON.

A manifestação foi impedida de entrar em  Lisboa, para grande escândalo da direita e da administração norte-americana (ver Carlucci vs Kissinger - Os EUA e a revoluçao Potuguesa, de Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá).

E a história continuou. No final dos anos 70, Sá Carneiro, Freitas do Amaral e Ribeiro Telles na Aliança Democrática (AD) apoiam como candidato à presidência da República o general Soares Carneiro, ex-responsável pelo campo de concentração de S. Nicolau no tempo da guerra colonial. Era "um fascista puro", como o disse o assessor jurídico de Agostinho Neto. Cavaco Silva haveria de o escolher para chefe do Estado Maior das Forças Armadas de 1989 a 1994. Sobre isso e outras coisas, convirá ler Vasco Lourenço.

E são estas as águas em que se move Marcelo Rebelo de Sousa. 

Conviria ainda dizer que Marcelo acabou por intrigar contra Sá Carneiro - quando, no final dos anos 70, defendeu - contra a opinião de Sá Carneiro - um acordo com o PS para receber o FMI - e que houve umas fugas de informação para a comunicação social em que se mostrava que Sá Carneiro estava isolado na direcção do Partido, o que levou à saída voluntária de Sá Carneiro para voltar meses depois em força. Mas isso era outro post...



8 comentários:

Anónimo disse...

Ê pá
Excelente

Anónimo disse...

está aqui um bom trabalho sem dúvida

Anónimo disse...

Tudo isso mudaria depois de 1974.
https://youtu.be/qJbMcQTIVHs

luis tavares disse...

A verdade é como o azeite num copo de água...

Anónimo disse...

O PS criado em 1969 ????

Jose disse...

Não li tudo...ainda. mas para já faço notar o seguinte:

Em início dos anos 70's, como desde 61, o sentimento de responsabilidade pelo bem estar das populações ultramarinas era universalmente sentido, excepção feita aos agentes soviéticos e comunas em geral.
Soviéticos e americanos quase não se distinguiam na sanha descolonozadora e os seus agentes só diferiam de um 'Já', para uma 'logo a seguir'.

Pelos resultados se pode avaliar de quão ajustadas eram essas preocupações.
Nunca o 25 de Abril teria ocorrido se o plano quanto ao Ultramar enunciasse as políticas que vieram a ser seguidas.

João Ramos de Almeida disse...

Caro Anónimo,
Tem razão. Muito obrigado pela chamada de atenção pelo inexplicável erro. Vou mudar :-)

Caro José,
Olhar para o Ultramar apenas dessa forma, parece um pouco curto. Sobretudo aos olhos dos dos anos 70.
(a estratégia de escrever textos grandes é a de desguarnecer os potenciais críticos... porque não chegam ao fim ;-))

JE disse...

Lê-se e regista-se que a propaganda em curso nos idos tempos do colonialismo ainda tem porta-vozes:

"o sentimento de responsabilidade pelo bem estar das populações ultramarinas"

Isto é uma ofensa à inteligência e uma amostra de desonestidade de colonialistas ressabiados.Mas também tem todos os ingredientes para servir como pretexto para uma boa gargalhada

Uma espécie de história de carochinha contada segundo o livro de orações daquele sinistro e repelente ser que,com a sua voz de cana rachada e com as suas garras polidas pelos instrumentos repressivos, mandava matar e morrer em África

De África sacavam-se as riquezas,pilhavam-se as populações autóctones, violava-se quando se podia, massacrava-se quando necessário.

E os ventres de batráquio dos colonizadores inchavam à medida da dimensão dos seus arrotos de saqueadores


(Sobra aí em cima a raiva e a impotência pelo derrube do fascismo em 74, numa manhã libertadora que despejou a cloaca imunda onde afocinhavam os senhores e senhorinhos, verdugos e mandadores, pides e legionários, marialvas e patrões boçais, filhos-família e colonizadores.)