domingo, 13 de fevereiro de 2022

A lã e a neve liberais do Estado Novo

Deixem-me contar, de forma sucinta, as primeiras cinquenta páginas de um livro que estou a ler. 

"A Lã e a Neve", do Ferreira de Castro, um "romance proletário" passado na Covilhã - , teve a sua primeira edição em 1947, durante a II Grande Guerra, e lê-lo hoje é uma máquina do tempo: pelo que descreve, pela linguagem usada, pelos sentimentos contidos, pelos personagens que nos ressoam a familiares distantes e - é aí que eu quero chegar! - pela desigualdade social tão fortemente hierarquizada e pelo consequente desamparo em que as pessoas viviam. 

Um desamparo a que nos arriscamos a viver cada vez mais, caso as arcaicas e interesseiras teses liberais se reforcem - ainda mais! - no país. A história começa asssim:

O jovem Horácio volta alegre a casa, a uma aldeia de Manteigas, depois de ter feito a tropa. E vem cheio de ideias. Viu Lisboa e o Estoril, as casas, os jardins, a limpeza das ruas e não lhe agradam mais como se vive na sua terra. O escritor é exímio:
Casas "negregosas, velhentas, colavam-se umas às outras, com a parte inferior de granito escurecido pelo tempo e a parte cimeira com folhas de zinco enferrujadas a revestirem as paredes de taipa, mais baratas do que as de pedra. Este e aquele casebre exibiam apodrecidas varandas de madeira e outros, mais raros, umas escadas exteriores, coroadas por um patamarzito quadrado, logradoiro do mulheredo nas horas do paleio com as vizinhas".
Horácio tenta convencer a noiva Idalina a adiar o casamento para que possam viver o seu sonho. Quer deixar o pastoreio que lhe rende pouco e que o faz estar meses afastado, sozinho pela serra de neve, com os animais. Quer fazer-se empregar numa fábrica de lanifícios da Covilhã para ganhar mais e conseguir juntar dinheiro para terem uma casa, limpa, com quintal, onde possam crescer os filhos saudáveis. Mas Idalina tem medo que o casamento se adie para sempre. Não vê como vai ele arranjar esse dinheiro. Horácio insiste e acha que convenceu a Idalina. Mas o sonho mal limado esbarra em obstáculos. 
Fala com o padre, pede-lhe ajuda, mas as fábricas não estão a abrir as portas. Horácio já tem mais de 20 anos e ser aprendiz não é tarefa de mancebo. Além do mais, as fábricas estão limitadas a contratar até 20% de aprendizes. Está tudo cheio. Sai acabrunhado. Encontra o seu parceiro que o deixa pensativo. Ele não trocaria a liberdade pela fábrica, fechado no fio das horas, sem fim. Mas na arte de pastoreio também não se faz fortuna. Rebanhos próprios pouco se aguentam. É uma dor de alma, mas tem de se vender ovelhas para comprar cabras que tudo comem. 
Horácio vai à Covilhã que já a sente comesinha face a Lisboa, e a sua esperança esvazia-se. A mesma história das fábricas sem empregos. Horácio amaldiçoa a escolha para padrinho feita pelos pais. Outro galo cantaria se fosse aquele outro com os seus terrenos comprados aos camponeses em dificuldades e que montou em toda a região fábricas cheias de operários, onde os seus apadrinhados têm sempre lugar porque quando há greves, os apadrinhados não alinham. Tudo lhe parece afundar-se. E se isso não bastasse, os pais estão contra o seu sonho. Lá muito a custo contam-lhe porquê. 
Na sua ausência, o pai adoeceu e tiveram de pedir dinheiro emprestado para o tratar. Não conseguiram hipotecar a propriedade. E a última pessoa a quem pediram foi ao patrão do Horácio, o dono dos rebanhos, a quem garantiram que o que ele ganhasse era para pagar a dívida contraída. Horácio vê-se assim obrigado a ter de trabalhar sem ganhar. O pai ainda lhe propõe que se venda a pequena courela que os pais tinham: "Assim como assim, era para ti". Horácio não aceita. Mas fica a roer-se. E nada pode dizer por causa desse segredo dos pais. Quer contar a Idalina, mas não pode. 
Idalina faz perguntas, mas a medo. Fica triste, em silêncio. Conta aos pais que intervêm, como se o rapaz quisesse esquecer o casório. Filho e pais prometem que nada se altera, sem explicar o que se passa. Mesmo tendo estado longe de Idalina durante todo o tempo da tropa, Horácio decide regressar quanto antes ao pastoreio. Quanto mais cedo pagar a dívida, melhor. 
Veste o seu capote de pastor, assobia ao cão que vem todo feliz ter com ele. A felicidade do cão agredi-o e Horácio atira-lhe uma pedra à pata que o deixa a mancar. Nunca mais o cão saltará feliz à sua frente. Horácio vai ter com a Idalina ao campo onde ela está a sachar. É uma cena de filme. 
Ela triste porque mal esteve com ele e ele a justificar-se que quer acabar com a dependência do seu patrão, desejoso de lhe dizer o que vai na alma, mas não lhe sai. E o tempo silencioso, de poucas palavras, marcado pelo som ritmado das enxadas na terra, como um relógio a empurrar o encontro para o fim porque ela foi contratada para sachar e não para estar ali a conversar. Ele afasta-se com o cão para meses de invernia.

O que ressalta desta história? Para mim, a ausência do papel interventivo do Estado. 

Um Estado capaz de conceder a justiça social onde reina a primária desigualdade, o regime imperial de classe que advém do domínio da propriedade e da propriedade dos instrumentos de produção. Os pais de Horácio teriam tido uma assistência médica universal e - mesmo que fosse! - "tendencialmente gratuita", paga pelos impostos que incidiriam sobre quem mais tem, e não precisariam de se endividar ou de aprisionar o futuro do seu filho, obrigado agora a trabalhar sem nada receber para si, para pagar uma dívida estúpida. Pugnar hoje pela redução da "carga fiscal", cheira a pedir a desobrigação por parte dos mais ricos de contribuir em prol dos mais pobres. Um regresso à selvajaria.

Para ter um emprego do seu agrado, os trabalhadores pobres não teriam de esperar reverencialmente pelo apoio impotente do padre da aldeia ou do beneplácito interesseiro dos padrinhos da terra, nem ter de condicionar a sua opinião ao emprego garantido pelos padrinhos. Hoje, os trabalhadores inscrevem-se em agências de trabalho temporário ou em plataformas que os transformam em trabalhadores por conta própria, isolados, trabalhadores desmaterializados, erxplorados até ao tutano, a pensar que estão sozinhos na sua vida. Os serviços públicos de emprego foram privatizados e os empregos deixados ao abandono por uma autoridade pública de regulação ou mesmo judicial que deixam que a lei que não seja aplicada (consultar o Código de Trabalho a partir do artigo 139º sobre as modalidades de contrato de trabalho).

Resta esperar que os representantes do Estado de hoje saibam governar no sentido de impedir que a vida de trabalho não seja uma vida de pobreza e que haja empregos para quem queira trabalhar (no 4º trimestre de 2021, a taxa de subutilização do trabalho ainda rondava os 12%) e ter uma vida que possa garantir uma casa condigna, mesmo que a referência ainda seja a ilusória zona senhorial do Estoril, já reconstruída e reforçada por todos os donos que fingem hoje nada se lembrar do passado em que foram reis de todos, ao mesmo tempo que apoiam a liberdade sem intervenção do Estado, como se fosse uma moda moderna. 

Depois, conto-lhes o que aconteceu ao Horácio.


4 comentários:

Jaime Santos disse...

Critique os liberais pelo que quiser, mas não os compare ao Estado Novo. Porque se há coisa que o Estado Corporativo de Salazar, com a sua política de condicionamento industrial era, era iliberal.

Infelizmente, a pobreza do debate político hoje em dia também deve muito à falta de exatidão dos conceitos utilizados. Critica-se uma Estado Socialista que não o é pelo lado da Direita e fazem-se comparações deste jaez pelo lado da Esquerda.

Mas arranjar homens de palha e depois ir a atrás deles é mais fácil do que criticar as ideias tal como elas são... Se calhar porque as ideias (e não as caricaturas) são ambíguas...

João Ramos de Almeida disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Francisco disse...

A precisão analítica e alguns actos de contricção, revelam-se como factores críticos para a construção de sociedades verdadeiramente progressistas ou, ao invés, para o mergulho no abismo da barbárie.
A claudicação dos sectores da social-democracia que em certo momento da evolução das sociedades ocidentais no período do pós-guerra, impulsionou a construção do Estado social, foi a gazua que permitiu que a pouco e pouco se naturalizassem práticas de desregulação social que muitos terão acreditado que estariam erradicadas para sempre: nas relações de trabalho, na aceitação da supremacia gestionária do sector privado em todas as esferas da economia, na crescente amplitude e profundidade das práticas que se diziam inscritas no movimento avassalador e imparável da globalização, de que a criação da CECA e depois da CEE, constituem precisamente bons exemplos, etc., etc., etc.. Alguns intelectuais notáveis, acabariam aliás por reconhecer o falhanço absoluto das suas teses, nomeadamente das que alimentaram essa ideologia fantasiosa da terceira via, que mais não tinha em vista do que garantir a aceitação de que o sistema capitalista poderia ser convertido e beatificado, bastando para tanto mão firme na regulação, já que tudo o mais - bem-estar social, partilha da riqueza, políticas de sustentabilidade e acesso a todo o tipo de prestações até aí públicas e agora oferecidas pelo mercado - haveria de brotar com naturalidade da oferta e da procura, guiadas afinal e em última instância pela famosa mão invisível. Chegados ao tempo presente, cabe-nos fazer uma avaliação crítica da História e das suas dinâmicas, sob pena de amanhã, de olhos regalados de espanto, nada mais nos restar do que ser testemunhas do horror e do absurdo. Aqui ao lado, quando nem todas as lágrimas das vítimas do Franquismo estão enxutas, são os filhos de Franco que ascendem cada vez mais perto do cume do poder. Talvez valesse a pena, perguntar - lá, como cá, mais cedo do que tarde - quem lhes abre a porta e lhes estende as passadeiras por onde vão fazendo o seu caminho.

João Ramos de Almeida disse...

Caro Jaime,
Ainda não percebi por que está tão abespinhado. Estamos aqui há anos e anos a escrever sobre isso e o Jaime sempre descontente... Teremos tocado num ponto sensível?

Sejamos então menos ambíguos nos conceitos. O Estado Novo, o Estado Corporativo de Salazar, era uma ditadura terrorista policial, erguida em benefício da concentração da propriedade num punhado de famílias que dominavam a economia nacional e contra o “bolchevismo internacional”, usado como conceito pejorativo – sabe-se lá se em homenagem ao czarismo... O Estado de Salazar era, pois, um estado de classe. E era-o sobretudo mais violento contra os seus inimigos de classe – contra quem organizadamente colocava em causa a violência da natureza desse poder. Basta ler os documentos da PIDE e da Legião Portuguesa para perceber ao que se vem. A ditadura era justificada enquanto combate ideológico.

Poderíamos até entrosar esse regime na dinâmica do imperialismo, naquela parte que tanto chocou e baralhou Mário Soares quando as “democracias ocidentais” deram o seu apoio ao regime fascista (que passou desde então a elogiar o papel da Europa e dos Estados Unidos), atraiçoando a oposição democrática.

A política de condicionamento industrial não era política de intervenção “técnica” do Estado. Era uma política de defesa e protecção de quem estava já instalado, contra quem se queria instalar, reinando inclusivamente uma forte cooperação, entrosamento e cumplicidade policial com os grupos instalados, contra a organização sindical e organizações políticas oposicionistas, tudo redundando numa economia de baixos salários.

Claro que todas as comparações – tem razão! – não são para ser feitas à letra. A História, ao contrário do que dizem, não se repete. Mas convém sublinhar que as ideias não nascem por acaso: entroncam-se ao longo dos tempos em que os mesmo tipo de conflitos se vai dando.

Tal como o Estado fascista, os (neo)liberais assumem-se como pretendendo um Estado que intervenha o mínimo possível na “repartição da riqueza”, que se mantenha o mais longe possível da produção, porque é entendido que quanto menos o fizer, menor é o risco de ser corrompido. (veja-se aqui, http://ladroesdebicicletas.blogspot.com/2021/12/tao-velha-que-e-nova-direita.html)

A versão mínima do Estado esconde bem a essência da sua intervenção: o Estado-instrumento que preserve a manutenção das condições que permitem aos principais grupos e a uma elite bem pensante, com acesso privilegiado aos meios de comunicação social (seja com censura explícita ou camuflada como é hoje!), ditar as regras através de um poder político capturado que raramente ousa ir contra a sua vontade e que está na base de uma cada mais injusta repartição do rendimento e da propriedade. Presentemente, a concertação social tem representado o palco dessa transmutação do poder em que o poder legislativo se deixa capturar por uma esfera não eleita de decisão em que os grupos económicos têm - através das associações patronais - um poder desproporcionado, conseguindo influenciar o grosso das suas conclusões. Por isso, a direita portuguesa defende tanto a prioridade dada à concertação social e não a recentragem do poder no Parlamento.

Não é por acaso que as primeiras ideias neoliberais surgem defendidas nos 60/70 nos meios de comunicação do fascismo pela mão de pessoas da entourage do regime. Mal vistas não eram de certeza. E, no pós 25 de Abril, foi o próprio MFA que teve a iniciativa de convidar essas pessoas – com Freitas do Amaral à frente – para formarem um partido liberal.

Como vê, há mais pontos de conexão que importa nunca deixar de ter presente. Por isso, não se abespinhe tanto e olhe mais para as consequências sociais das medidas injustas que os liberais de hoje propõem.