sábado, 1 de maio de 2021

Odemira do nosso descontentamento


Há uma certa opinião que gosta de fazer troça da esquerda em relação a alguns dos seus referenciais de análise social.

Em particular, acha sempre que é preconceito ideológico quando a esquerda diz que, no contexto de uma sociedade capitalista, as assimetrias de poder na esfera da produção se tendem a estender muito para lá desse domínio, estando presente em várias instituições que enquadram e sustentam por essas mesmas relações de produção. Isto é, por outras palavras, que o capital reproduz o poder que tem na esfera da produção de valor para outros domínios da sociedade, como a geração de conhecimento, a justiça ou a comunicação social.

Os que duvidam talvez queiram tomar como exemplo de análise o que está acontecer com a cobertura noticiosa da cerca sanitária nas freguesias do concelho de Odemira.

Há vários anos que é sabido que milhares de trabalhadores migrantes do sudeste asiático são "importados" por agrários da nova agricultura intensiva que cobre de estufas o Sudoeste alentejano sem que isso provocasse qualquer escândalo.

Quantos minutos de telejornal foram despendidos a denunciar as situações de abuso laboral nessas explorações e as condições de trabalho e habitação abaixo dos níveis da dignidade? Quantas vezes a Ordem dos Advogados, que vem agora a público vociferar contra a requisição de alojamentos privados para acolher os trabalhadores em isolamento, levantou a voz para denunciar as óbvias violação da lei no âmbito da saúde e segurança no trabalho? Quantas reportagens houve a dar eco à população local, que há muito denuncia que o aumento da população não tem tradução no aumento das infraestruturas e serviços públicos? Quantas vezes se tentou chegar à fala com os migrantes que trabalhavam nessas explorações? Quantas vezes se pôs em causa o modelo ambiental e laboral em que esta agricultura assenta? A resposta é poucas. Poucas ou nenhumas.

Agora comparem com o circo mediático instalado em torno de uma minoria de proprietários privados que acham um atentado que a sua propriedade possa ser mobilizada por um curto espaço de tempo para fazer face a uma emergência de saúde pública e de direitos humanos. Quanto minutos de telejornal já foram gastos a ouvir os advogados dos proprietários? Quantos minutos de reportagem ouvimos de pessoas a lamentar o impacto que isto terá na produção dessas explorações? Muitos, demasiados.

Esta linha editorial não é um acaso. Um país ignorou que dezenas de milhares de trabalhadores viviam em condições sub-humanas num país cujo partido no poder se orgulha de apresentar como de esquerda, porque elas não têm poder. São trabalhadores agrícolas, migrantes, que mal falam português. São o último elo na cadeia da exploração. Aqueles que os proprietários rurais vão buscar quando já não encontram quem cá se submeta ás condições que oferecem.

Pelo contrário, os poucos proprietários de imóveis e donos das propriedades agrícolas fazem parte de uma minoria, com recursos económicos, que se senta à mesa do poder, que conhecem sempre alguém que tem o contacto "daquele jornalista".

Não é acaso. É poder. E é também a vergonhosa prova de que as autoridades e o governo deste país estão dispostos a fechar os olhos a violações de direitos humanos para salvaguardar o interesse privado até que elas ponham em causa a saúde pública dos seus ou os direitos de propriedade.

5 comentários:

cristina disse...

Infelizmente assim é! Desde 2015 que verifico esta situação, pois sou natural de Odemira, onde o meu pai vive.
Esta situação é vergonhosa. E isto não acontece apenas em Odemira, acontece também na região do Montijo, na região Oeste, noutras regiões do Alentejo e no Algarve.
Tudo isto se passa diante de todos. E todos sabem que isto é assim. Uma autentica vergonha! Já só falta dizer que a culpa é dos migrantes, porque a mim já me disseram que a culpa é dos locais que são preguiçosos e não gostam de trabalhar.
Portugal no seu melhor!

Anónimo disse...

O Alentejo está de novo entregue a um grupo de agrários que tudo pode e tudo compra,o trabalho escravo voltou aos campos do Alentejo,o abandono dos mais velhos que morrem em lares sem condições(Reguengos),um poder politico dito de esquerda que domina toda a máquina do estado e emprega os seus,a especulação imobiliária(maioria das autarquias ditas de esquerda(PS) .

TINA's Nemesis disse...

Porque é que praticamente ninguém se refere ao facto das estufas estarem no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina?
Para que servem os parques naturais afinal?

Enfim, governo "socialista" e câmara municipal "socialista" há décadas... É o "socialismo" realmente existente!

Mas não é só imigrantes da agricultura que vivem em condições indignas, são também os imigrantes que servem as "plataformas digitais", também estes a ganhar muito pouco e a viver em condições más.

Aqui está o resultado do Capitalismo global, degradação de vida dos trabalhadores da Europa e América do Norte, "importação" de trabalhadores de países onde os rendimentos e direitos são consideravelmente inferiores, logo, trabalhadores/ imigrantes mais facilmente vítimas da predação capitalista.

Um modelo económico que se serve de trabalho quase escravo não é um modelo que pode ser tolerado.

Também acho muito engraçado um certo director de jornal de "referência" se insurgir agora com esta exploração dos imigrantes, um dos que andaram a lamber o chão por onde a Troika iria passar, a mesma Troika que defende um modelo económico que promove a exploração máxima do trabalhador!
A desfaçatez de certas personagens é doentia!

TINA's Nemesis disse...

Em 2019 militares da GNR sequestraram e espancaram imigrantes em Odemira.

"...tudo terá começado numa discussão, durante um jantar em Odemira, em outubro de 2018, entre os dois trabalhadores agrícolas nepaleses e o empregador, da mesma nacionalidade."

"Em causa estariam... questões relacionadas com a situação salarial e condições laborais."

"O envolvimento da GNR terá ocorrido porque um militar desta força de segurança terá uma relação de proximidade - que a PJ ainda está a clarificar se a título de amizade ou profissional - com o empregador e ter-se-á envolvido numa discussão entre este e os imigrantes."

"...o mesmo militar, chamou outros três guardas da GNR e, sem qualquer mandato, invadiram casa dos trabalhadores, que terão então sido levados para outro lugar, sequestrados e espancados."

https://www.dn.pt/pais/agressoes-a-imigrantes-um-dos-quatro-gnr-detidos-e-dirigente-sindical-10875184.html

José Cruz disse...

As monoculturas,como são praticadas,desde o princípio do século,em todo o Alentejo mas,também,em concelhos mais a norte,na zona do Tejo,necessitam de água em abundância e de mão de obra em quantidade,disponível a baixo custo,para os trabalhos,normalmente,indiferenciados tipíco da agricultura.As migrações internas,nos anos cinquenta e sessenta do século passado para as zonas periféricas e industriais de Lisboa e,mais tarde,para outros países europeus,despovoaram cidades e vilas e comprometeram quer a renovação das gerações, quer o equilíbrio demográfico de todo o Alentejo.Desde,há muito,que a mão de obra vinda do exterior,se tornou o recurso adoptado para suprir as carências locais e internas,com a indiferença e alheamento de autoridades locais e nacionais,que se furtaram a actuar no estabelecimento de regras para o trabalho agrícola sazonal e à sua efectiva implementação e fiscalização por proprietários e empregadores.