sábado, 14 de novembro de 2020
Síndrome do "bom aluno"
O Governo estava tão aflito com a economia e as contas públicas, que, talvez de forma sub-consciente, não levou a sério a segunda vaga da pandemia. Mas nisso não estava só. Com excepção da China, onde o Estado manda e tem estratégia (em ditadura), e de uns poucos países da Ásia em que o capitalismo se desenvolveu a partir do poder estratégico do Estado (os célebres Tigres), no resto do mundo o regime neoliberal pôs a economia acima do bem-comum. Com essa escolha, a economia não só matou as pessoas (e produziu graves sequelas que começam a ser identificadas nos sobreviventes), como também foi, ela própria, violentamente atingida. Ontem, com a manifestação que ocorreu no centro do Porto, o Governo talvez tenha começado a perceber que o seu orçamento suplementar para o corrente ano, e o orçamento que apresentou para 2021, foram documentos gritantemente irresponsáveis. Foram feitos sem pensar numa segunda vaga.
Toda aquela conversa do fim dos apoios a que chamaram "layoff simplificado", e sua substituição por um (mais barato) apoio à retoma progressiva da actividade económica, pressupunha a convicção de que iríamos, progressivamente, regressar a uma vida quasi-normal, próxima do que era a vida antes da pandemia. Só precisávamos de ter algum cuidado.
Os cuidados, sempre recomendados nas conferências de imprensa da DGS, eram absolutamente neutralizados no dia seguinte pela imagem do Presidente na praia, do Primeiro-Ministro numa qualquer actividade cultural, pelo insistente apelo à vinda dos turistas, etc. Todos sabemos que muita gente deixou de levar a sério o risco da transmissão e, para que isso tenha acontecido, durante o Verão as mais altas figuras do Estado deram um bom contributo. Portugal, e toda a Europa da livre circulação, está a pagar caro ter posto a economia (e, implicitamente, as contas públicas) acima da saúde. As medidas tomadas em Outubro, sobretudo o uso obrigatório de máscara no espaço público, e o encerramento depois das 22h de todos os espaços propiciadores de proximidade física, a proibição do convívio na via pública, etc. deveriam ter sido a norma desde Maio. Era demasiado restritivo? Como se costuma dizer, quem tudo quer, tudo perde.
O Governo agora diz que só esperava uma segunda vaga lá mais para o Inverno. Mas isso não é verdade; só esperava gastar pouco dinheiro com esta pandemia. No final, o desespero dos patrões falidos, dos trabalhadores independentes, dos precários sem rendimento para pagar as contas, mais a pressão da Caritas, IPSS e Juntas de Freguesia (assediadas por gente com fome e renda de casa por pagar), tudo isso mais a factura dos hospitais privados, vai obrigar o Governo a gastar muito mais do que se tivesse assumido a segunda vaga logo no termo do desconfinamento. Não pode dizer que não foi avisado pelos especialistas que falaram nas reuniões do Infarmed, entretanto canceladas.
Num país que não tem moeda própria mas que, ainda assim, graças à intervenção do BCE no mercado secundário, pode emitir dívida sem pagar juros, não foi por falta de dinheiro que a segunda vaga não foi devidamente planeada e travada. A razão para este desastre tem um nome: "contas certas" = "bom aluno em Bruxelas-Berlim-Frankfurt". Isso está escandalosamente à vista de todos no Orçamento do Estado. Evidentemente, com um banco central próprio e com um governo desvinculado da ideologia neoliberal, nunca se teria chegado a esta situação. Matéria para outro texto.
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13 comentários:
Mas foi o bom aluno que nos permitiu estar no pelotão da frente?
Nós estamos no pelotão da frente que o "melhor de nós" - diz Marcelo - António Guterres prometeu, certo?
Os miolos de António Costa estão encharcados em Neoliberalismo, daí a forma como governa, daí o facto de não termos saído da crise que o europeísmo criou.
António Costa é um poucochinho melhor que Passos Coelho e ficam satisfeitos com isso?
O enterro do Neoliberalismo tarda, e com ele serão enterrados as organizações, incluindo partidos, associados ao mesmo.
Muito bom.
Completamente verdade.
Não é só a economia, mas a saúde.
Não deram importância no Verão, e inclusive a abertura de fronteiras é sua continuação.
Entram tudo e todos, sem controle.
Pela qualidade do texto nem vale a pena comentar as sandices cavaquistas de um cavaquista travestido, papagueando sobre Portugal no "pelotão da frente". Certo? O geringonçoso jpf tem destas coisas. E junta-as às variações sobre "poucochinhos".
Adiante, que o assunto é sério. E a saúde pública e a nossa independência estão muito para lá dos folclores idiotas
Um governo livrado do vírus? Mais depressa arde o mundo à espera do hyperloop.
Deixe isso, a assinatura de cruz do Europlus pelo homem das vacas voadoras (ou será sagradas?) trará bazucas em breve, é só esperar pelo nevoeiro e voltamos a colónia de férias.
Entra tudo e todos?
Isto é uma achega do Chega?
Esquecem-se que o bom aluno fez o poucochinho que fez sob pressão constante de várias instituições e grupos.
Entra em cena com um governo condicionalmente suportado pela restante esquerda.Teve que tentar desenterrar-nos do buraco em que o Passos nos colocou com a ajuda da troika. Valha o que valer, "credibilizou" o país, face ao mainstream neoliberal que nos governa para que aliviassem o garrote. Teve que gerir uma catástrofe natural(?) que provocou as primeiras feridas, logo escarafunchadas pelos mérdia...
Já volto. Vou comer :)
Excelente. Pena tenho que não consigamos (portugueses) ler textos assim num jornal português convencional. Apraz-me não ser único nesse pensamento. É que ser patriota e de esquerda custa nos dias actuais...
Muito bem, um dos melhores textos que tenho lido por aqui.
Ainda está por fazer uma critica da resposta em contexto neoliberal a uma pandemia. Com pequenos passos como este se avançará.
Ora, Jorge Bateira, diga lá qual foi o governo democrático de um País continental (as ilhas tem a vantagem da fronteira natural) que conseguiu ter um bom controle da pandemia.
A Coreia do Sul, porventura, com a experiência do MERS, os restantes tigres utilizaram meios de vigilância inaceitáveis numa democracia como a nossa. E mesmo comparar Portugal, que tem a Espanha ao lado, com os Países nórdicos não é exactamente justo.
Foram cometidos imensos erros, mas a reabertura também se fez para deixar as pessoas respirarem, não apenas por causa da malfadada economia (aliás, cabe lembrar que os bares e discotecas em Portugal pura e simplesmente não reabriram).
Um País falido continua falido com ou sem moeda própria. E há imensos exemplos de Países com banco central e moeda própria em situação pior do que Portugal (até a Suécia, mas basta pensar em toda a América Latina ou no caso singular do Reino Unido, se foi assim que eles se prepararam para a pandemia, esperem só por um Brexit sem acordo, já ultrapassaram os 50.000 mortos).
Não é um problema de neoliberalismo versus o sabe-se lá o quê que você defende, é um problema de maior ou menor competência e de sorte.
O resto é querer meter a foice em seara alheia...
Meter a foice em seara alheia?
Jaime Santos não gosta.Não gosta que se denuncie o seu ai-jesus. O neoliberalismo
Trata-se tão somente de "competência" e de "sorte"
Até onde vai JS montado nesta sua montada ridícula?
Veja-se como arruma com o caso da Coreia.Foi pela" experiência com o MERS"
Quando foi decretado o fim oficial da epidemia de MERS na Coreia do Sul tinham sido infectadas 186 pessoas, tendo falecido 38.
A OMS foi chamada e deu uma grande ajuda para o seu combate
Ora bem. Parece que na Primeira vaga do SARS-CoV-2 tivemos bem mais mortos.Nós e uma série de países.
E nesta segunda vaga infelizmente é o que se vê.
Não aprendemos nada, não foi mesmo, JS? Nem tivemos nem "competência" nem "sorte"?
Mais uma nota e uma nota feia.
JS e o Reino Unido. Mais concretamente JS e o Brexit
Ainda não lhe passou a cena do Brexit? Ainda tem pesadelos por se ter respeitado a vontade de umas eleições?
Dirá JS:
"se foi assim que eles se prepararam para a pandemia, esperem só por um Brexit sem acordo, já ultrapassaram os 50.000 mortos).
Péssimas notícias para JS. Parece que a França e a Itália se aproximam dos 48 000 mortos.
O Brexit gaulês e o italiano à espreita pela certa
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