sexta-feira, 19 de julho de 2019

Credores e devedores


Na Conferência de Bretton Woods de 1944, em que foram criados o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional e estabelecidas as bases de funcionamento do sistema económico e financeiro internacional para as décadas seguintes, confrontaram-se duas visões opostas sobre a regulação dos desequilíbrios comerciais e financeiros internacionais. A proposta defendida pela delegação britânica, liderada por Keynes, considerava que uma vez que todo o défice externo corresponde a um superávite, o fardo do ajustamento em caso de desequilíbrio das contas externas deveria recair tanto sobre os países deficitários, que deveriam limitar a procura, como sobre os países superavitários, que deveriam expandi-la. Mas a visão que sairia vencedora foi a defendida pela delegação norte-americana, que defendia que apenas os países devedores devem ser obrigados a apertar o cinto, não devendo os países credores ser chamados a assumir a responsabilidade pela correção dos desequilíbrios.

Boa parte do sistema de Bretton Woods, em particular o regime de câmbios fixos, desmoronar-se-ia por iniciativa norte-americana em 1971, motivada entre outros fatores pela intenção dos EUA se libertarem dos constrangimentos à despesa no contexto da guerra do Vietname. Mas o princípio segundo o qual os desequilíbrios externos se corrigem através da imposição de contrações recessivas nos países deficitários, ao invés de expansões fiscais e orçamentais nos países superavitários, permaneceria em grande medida indisputado e viria a estar subjacente a numerosas intervenções de estabilização e ajustamento estrutural na América Latina, em África... e na periferia da zona euro.

Nos tempos mais recentes, a China e a Alemanha têm constituído dois dos principais pólos superavitários da economia mundial, isto é, duas grandes economias exportadoras geradoras de enormes superávites externos que, por essa via, se tornaram gigantescos credores mundiais. No caso da China, o desequilíbrio tem sido em grande medida bilateral: como contrapartida dos seus superávites comerciais face aos Estados Unidos, a China tem acumulado ativos financeiros que são direitos sobre a economia norte-americana, incluindo títulos de dívida pública dos EUA estimados em mais de um bilião (milhão de milhões) de dólares. Para a Alemanha, boa parte dos superávites e dos créditos têm correspondido a défices e dívida da periferia da zona euro, mas do auge da crise do euro em diante os desequilíbrios aprofundaram-se principalmente relativamente ao exterior da zona euro. Tendo a periferia da zona euro de alguma forma detido (ainda que não invertido) a sua tendência de endividamento, os superávites externos da Alemanha (e de mini-Alemanhas como a Holanda) expressam-se hoje em dia como superávites da zona euro como um todo face ao exterior.

Estes superávites são hoje os mais importantes – e potencialmente mais desequilibradores e nocivos – de toda a economia mundial. Segundo um relatório acabado de publicar pelo FMI sobre as dinâmicas dos desequilíbrios externos, a Alemanha é hoje, de longe, a mais superavitária das economias mundiais: 291 mil milhões de dólares de superávite externo em 2018, que por exemplo comparam com apenas 49 mil milhões de dólares de superávite da China. O que isto quer dizer é que, não tendo deixado de exportar, a China estimulou suficientemente o seu mercado interno para que a economia chinesa passasse igualmente a importar em quantidade suficiente para colmatar o desequilíbrio anteriormente existente face ao exterior. O mesmo não tem sucedido, nem parece estar em vias de suceder, no caso da Alemanha, que ao prosseguir inamovivelmente na senda da acumulação de superávites continua decidida a agravar o endividamento dos seus parceiros.

Para uma economia no fio da navalha como a portuguesa, a insustentabilidade de partilhar uma união económica e monetária com um mastodonte neo-mercantilista como a Alemanha só tem sido relativamente disfarçada pela política monetária hiper-acomodatícia que o BCE implementou nos últimos anos. Contudo, esta última também contribui por sua vez para o desequilíbrio credor da zona euro face ao resto do mundo, dando origem a tensões comerciais e económicas que logo se tornam também políticas. Bem melhor seria para todos que a zona euro se reequilibrasse tanto internamente como face ao exterior, mas para isso seria necessária uma de duas coisas: mais razoabilidade por parte das autoridades alemãs ou mecanismos mais eficazes de regulação e coordenação internacional. Nenhuma das duas coisas parece estar ao alcance.

(publicado originalmente no Expresso online)

9 comentários:

Jaime Santos disse...

Só há uma coisa que me deixa com a pulga atrás da orelha, Alexandre Abreu. A ideia de que o endividamento é uma lei da Natureza que obriga os devedores.

Todos sabemos que normalmente a dívida começa pelo sector privado e acaba por se propagar ao sector público em períodos de recessão.

Mas o Estado tem mecanismos, mesmo em Economias Abertas, para limitar esse endividamento, seja pela regulação do sector bancário, seja pela fiscalidade (impostos sobre o consumo, IRC sobre lucros a não ser que sejam dirigidos ao investimento), seja pelo cuidado com que se deve proceder ao investimento público ou à concessão de crédito pelo(s) bancos públicos.

Tudo coisas que se poderiam ter feito até à crise de 2007 e não se fizeram. Portugal é caso único? Não, na Alemanha o sector bancário também se portou muito mal, mas com o mal dos outros poderíamos nós bem não fossem eles os nossos credores...

Era capaz de estar na altura de se proceder a uma síntese das ideias de uns e de outros para percebermos o que poderemos fazer para estar melhor preparados em caso de nova crise. Lançar as culpas para os mais fortes não adianta mesmo nada porque mesmo que eles as tenham é como cita Varoufakis: 'os fortes fazem o que podem e os fracos sofrem o que devem...'

Os argumentos morais servem normalmente de pouco a não talvez para dar algum consolo moral aos fracos na sua agonia...

Jose disse...

Para além de investimento externo, que mais haveria a Alemanha de fazer, se excluir-mos a possibilidade de se tornar indolente e improdutiva?

Pedro disse...

É um facto.

A Alemanha destruiu o sonho europeu.

De certo modo ainda bem, porque provou que esse sonho era demasiado… onírico.

A fantasia não correspondia á realidade.

Confesso que hoje não me sinto nada identificado com os povos europeus e quero vão todos ás malvas. a começar pela Alemanha e pela Holanda.

Comecemos a pensar como sair da UE.

Ou então, algo que ainda nenhum proponente da saída se lembrou, comecemos a funcionar como uma "quinta coluna", contra a UE e a favor de russos, chineses e americanos, pensando apenas em negociar os nossos interesses com essas potências.

Aónio Eliphis disse...

Excelente artigo. Por vezes os ideologicamente facciosos apresentam-nos boas resenhas históricas. Falta dizer que os EUA abandonaram na administração Nixon Breton Woods para criar o sistema petrodólar, muito mais subtil e perverso.

Com referência às relações económicas externas, ninguém é obrigado a comprar produtos à Alemanha, e se os compram é porque têm qualidade. Chama-se mercado livre onde as empresas e os cidadãos são livres, dentro das suas naturais restrições (financeiras, geográficas, etc.) de adquirir os produtos que bem entenderem. Esquece ainda os bilhões que a Alemanha já injectou em fundos estruturais que ajudaram essencialmente a periferia.

Anónimo disse...

Por acaso o Pedrinho não saberá que a EU tem mandato exclusivo para negociar tratados comerciais com países terceiros? E que por isso o Brexit comporta esse elemento de "falésia", implicando que só depois de se sair se pode negociar novos tratados?

E por acaso não saberá o Pedrinho que funcionar como quinta coluna para outras grandes potências é o caminho mais certo para o conflito armado? E que a proximidade é um dos factores mais determinantes nas relações económicas?

Posto de uma forma simples, podemos escolher os amigos mas não os vizinhos. Chama-se a isto geopolítica de algibeira.

Pelo que fica patente que o Pedrinho é um mero agente provocador sem qualquer credibilidade, ou como alguém já lhe chamou, un "faux-naif".

Anónimo disse...

Argumentos morais?

A que ponto esta ex-social democracia chegou para dar assim de bandeja aquilo pelo qual se andou a bater durante tantos anos

Confessemos que durante muito tempo foram também argumentos como estes, que se tentou captar eleitorado e mostrar uma visão outra do mundo

Agora reduzidos a esta triste condição de falhados e submissos respeitadores da ordem pouco natural das coisas


Por isso Jaime Santos, como o outro político alemão, não gosta de "visões"

Anónimo disse...

É um facto que pedro não gosta deste blog e insulta os seus autores.

https://www.blogger.com/comment.g?blogID=4018985866499281301&postID=3510398794139535499

Pedro, aliás joão pimentel ferreira,no entanto teima em mostrar quão democrático é este sítio onde tenta fazer aquilo que mais sabe fazer

Pedro joão pimentel ferreira andou por aqui a cantar loas à UE. A Merkel, aos neoliberais e aos ultras. Depois dedicou-se à apologia do racismo,com um linguarejar tão abjecto como asqueroso

https://www.blogger.com/comment.g?blogID=4018985866499281301&postID=6626068256775829258

Incomodado com o facto de ter sido identificado como produto da união entre Dona Nonifácio e o Sr miguel Tavares, "pedro" pimentel ferreira mostra-se particularmente activo.E deseja mostrar trabalho, deitando mais poeira para cima para se camuflar e para continuar o que sabe mais fazer.

Volta a assumir agora o tom um pouco bronco e primário do primitivo pedro.

Com esta pérola, verdadeira amostra do que falámos

"Confesso que hoje não me sinto nada identificado com os povos europeus e quero vão todos ás malvas"

Lolol. Já sabemos. A não identificação com os povos é uma característica típica dos racistas e xenófobos. E o mandar às malvas pode ser o começo das "soluções finais" que estes tipos têm em mente

Anónimo disse...

As pérolas de "pedro" pimentel ferreira continuam, mais uma vez denunciando a retoma à versão "pedro" em modo menor. Abandona assim "pedro" aquela fluência aqui tão bem retratada

https://www.blogger.com/comment.g?blogID=4018985866499281301&postID=3510398794139535499

Diz "pedro":"Ou então, algo que ainda nenhum proponente da saída se lembrou, comecemos a funcionar como uma "quinta coluna", contra a UE e a favor de russos, chineses e americanos, pensando apenas em negociar os nossos interesses com essas potências.

O que dizer disto? Só mesmo alguém em desespero usa estas "coisas" como argumento para o que quer que seja.
Em desespero em busca do disfarce perdido.
Em desespero para nos impingir a sua visão da UE, que até precisa de uma quinta coluna blablabla

Demasiada idiotice para sequer prosseguir por aqui

Anónimo disse...

São os bilhões que a Alemanha já injectou em fundos estruturais que ajudaram essencialmente a periferia e é a conversa da treta mil vezes repetida... Voltámos aos tempos dos pobrezinhos mas agradecidos à Alemanha, que não pagava copos,mulheres e latinos. Passos andou um ror de tempo a papaguear o mesmo

João pimentel ferreira volta como aonio eliphis. Mandou primeiro o pedro fazer o papel de céptico europeísta profundamente idiota. Volta agora com o discurso pretensamente moderado de eliphis de orange.

Sem qualquer pudor tenta vender-nos a Alemanha e as benesses dum euro profundamente disfuncional. Mais uma vez.

Rasurará tudo o que já aqui se debateu?