domingo, 8 de novembro de 2020

Maldita máscara

Rui Rio disse que apenas faria acordos com a extrema-direita se a extrema-direita deixasse de ser extrema-direita.

A extrema-direita nacional disse que não viabilizava a direita no poder se a direita não a ajudasse a rebentar com esta República. Mas afinal o PSD aceitou fazer acordos com a extrema-direita aparentemente sem exigir nada em troca. E a extrema-direita alinhou com a direita sem dizer por que aceitou.

Pelo caminho, soube-se que ambos querem reduzir o número de deputados açorianos e o de beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI), supostamente por exigência da extrema-direita.

Mas esta dita reivindicação da extrema-direita não é nada original.

Reduzir o tamanho do Parlamento ou criar círculos uninominais é um velho sonho da direita para que não haja as nuances da política no poder. O que importa são as ideias maiores que tendem a tornar-se únicas ou harmonizadas ou dualizadas para que se escolham sempre os mesmos sabonetes.

E então reduzir os apoios aos pobres - que não sejam os restos do supermercado - é uma ideia ainda mais antiga da direita. Foi precisamente a direita tradicional portuguesa que teve a magnífica ideia de cortar apoios a quem mais precisava em plena recessão de 2011-2013 (aprofundada pelas políticas de direita com a cobertura da troica), precisamente com o argumento que a extrema-direita hoje usa: o de que se trata de gente preguiçosa que não quer trabalhar com o suficientíssimo ordenado mínimo (ou menos), durante as horas que for necessário, mesmo para lá do período normal de trabalho fixado na lei, porque afinal "são as empresas que criam emprego" e "é melhor ter um mau emprego do que estar no desemprego". Ou até que estar desempregado até nem é assim tão mau, porque se pode mudar de vida. (Passos Coelho dixit).

A única diferença é que a extrema-direita acrescenta que esses madraços são ciganos. Por que de resto, a política é a mesma.

Em 2012, o Governo PSD/CDS contratou inspectores para vigiar os madraços e com as poupanças feitas pagou pensões. Ou seja, colocou os mais pobres a pagar aos pobres. Em 2013, o ministro do CDS do governo PSD/CDS lembrou que havia demasiada gente a "viver à sombra do Estado". Em 2014, o mesmo ministro disse que, afinal, sempre se cortou no número de pessoas apoiadas porque... não se quiseram inscrever no centro de emprego (!) Era uma questão de "rigor", porque se quis separar os bons pobres dos pobres preguiçosos, ("separar o trigo do joio").

Então porquê agora o escândalo? A direita é flexibilidade, plasticidade, fará o que for necessário para sobreviver e aplicar o seu velho programa. Ou melhor, o programa que lhe deram internacionalmente. Se o país saiu fragilizado de quatro décadas da mesma política - levada a cabo sob os auspícios de organizações internacionais (FMI, UE) e aplicada até por pessoas de esquerda -, a direita zanga-se consigo própria e assume as formas que forem necessário, para cavalgar o descontentamento larvar e não perder votos. 

A política da extrema-direita não será diferente da política da direita tradicional. Apenas mais sonante no rasgo das vestes, mais bruta na violência, mais inconstitucional na segregação racial, mais escarrapachadamente exploradora. Mas a sua existência até torna a direita tradicional civilizada. Por isso, Marques Mendes não vê grande problema desde que Rui Rio saiba "explicar muito bem" o que o levou a fazer este acordo. Acordo esse que só tem um problema, diz ele: é que assim pode fazer fugir o centro-resquerda do PSD... Onde andará a "social-democracia avançada" de Cavaco Silva?  

Por isso, a direita tradicional não se zanga se dentro de si outra direita sair do armário em que se amarfanhou tantos anos. E com razões de queixa. Desde que saiu dos assentos da Acção Nacional Popular no hemiciclo para, passados curtos meses, se ver a assinar o Pacto MFA-Partidos em que se preconizava uma sociedade portuguesa rumo ao socialismo, a direita já sofreu demais e agora quer libertar-se desta máscara insuportável. Sobretudo em tempos de Covid...

Um jornal para combates urgentes


Está em curso uma batalha decisiva na saúde em Portugal. Décadas de desinvestimento público no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e nos seus profissionais alimentaram cada vez mais os privados com transferências do Orçamento do Estado (41% do bolo da saúde), num quadro de níveis já elevados de pagamento directo pelas famílias (29,5% das despesas totais da saúde em 2018). Este desinvestimento, que agora fragiliza muito a resposta à pandemia, foi preparado pelos neoliberais sem que a generalidade da comunicação social os questionasse sobre os problemas estavam a ser criados à defesa da saúde pública, sobre a natureza ideológica das escolhas em curso, sobre o despesismo e as injustiças que essas escolhas geravam ou, muito menos, sobre os interesses privados que alimentavam. Agora, de repente, os jornalistas passaram a fazer algumas destas perguntas, mas apenas a quem sugere rumos contrários ao neoliberal. Há uma verdadeira campanha na comunicação social para gerar alarmismo sobre a resposta do SNS e das autoridades públicas de saúde à segunda vaga pandémica, não para melhorar essa resposta, mas para os privados da saúde aumentarem os seus lucros.

Início do editorial de Sandra Monteiro no Le Monde diplomatique - edição portuguesa deste mês, que pode ser lido na íntegra na página do jornal. O número deste mês é particularmente forte em economia política e em política económica: da análise de Nuno Teles ao Orçamento do Estado para 2021 à desmontagem do mito do congelamento das rendas, feita por Ana Cordeiro Santos e Nuno Serra, passando pelo artigo de Robert Boyer sobre os futuros dos capitalismos em contexto pandémico, no seguimento do último livro de um dos fundadores da chamada escola da regulação.

sábado, 7 de novembro de 2020

Isto


«É mais fácil ser pai esta manhã. É mais fácil hoje dizer aos teus filhos que o caráter importa. Importa. Dizer-lhes que a verdade é importante. Que ser uma boa pessoa importa. E é mais fácil para muitas pessoas. Se fores muçulmano neste país, já não tens que te preocupar se o presidente não te quer aqui. Se fores um imigrante, já não precisas de te preocupar com a possibilidade de os teus bebés te serem arrancados ou com o repatriamento sem motivo. É uma reparação para muitas pessoas que realmente sofreram. O “não consigo respirar” não é apenas sobre George Floyd. Imensas pessoas sentiram que não conseguiam respirar.»

Da reação emocionada de Van Jones, a ver na íntegra, depois do anúncio da vitória de Biden (via Maria João Pires).

Paula White in da house


Na sequência do post de ontem do João Ramos de Almeida, uma versão demasiado irresistível da «oração» da pastora tele-evangelista Paula White, conselheira espiritual de Trump e crente da Teologia da Prosperidade (que defende que «a riqueza é um sinal da graça de Deus»).

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Hoje, apresentação do DataLABOR


Desenvolvida pelo COLABOR (Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social), é hoje apresentada a DataLABOR, uma plataforma inovadora «que agrega e permite cruzar dados estatísticos e jurídicos sobre o trabalho e emprego, a proteção social e a economia social e solidária em Portugal», à escala nacional e internacional, tendo em vista contribuir «para a formulação de políticas públicas baseadas no conhecimento e apoiar a tomada de decisão de entidades privadas e associativas».

A apresentação tem hoje lugar na Fundação Calouste Gulbenkian, a partir das 15h00, e pode ser acompanhada em direto aqui. Intervém na sessão Isabel Mota (Presidente da FCG), Manuel Heitor (Ministro da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior), Manuel Carvalho da Silva (Coordenador do CoLABOR) e o Primeiro-Ministro António Costa. A apresentação da plataforma está a cargo de Catarina Cruz e Renato Carmo.

White Paula

O video do dia, se bem que esta imensa e desvairada ovação tivesse sido feita quando Trump perdeu Wisconsin e Michigan para Biden. Paula White, uma evangelista conselheira de Trump, a invocar todos os anjos de África e da América do Sul para que voem sobre o país e concedam violentamente a vitória, vitória, vitória, vitória, vitória. O mundo dos evangelistas na senda do poder enquanto alguém passeia por trás dela, de toalha no braço (como se tivesse saído da casa de banho) a ler um jornal ou algo assim.

A realidade é uma belíssima peça de teatro!


E depois uma versão muito mais criativa e... que Paula White consideraria demoníaca, embora pareça estar impregnada dela...


Contra importações do império em declínio


Digam que Portugal é um país racista e apouquem com este ou outro epíteto os vossos concidadãos, chegando a considerá-los “deploráveis”. 

Apodem a classe operária de “indivíduos sem qualificações”, já que as pessoas imprescindíveis adoram que as desqualifiquem, e continuem a defender que a universidade é o caminho universal para o sucesso dito meritocrático. Reduzam tudo à velha aposta liberal das “carreiras abertas aos talentos”, até porque não há nenhum problema que não se resolva com educação. 

Apodem de reacionário ou de pior quem ache que tantos trabalhadores sofrem uma pressão concorrencial excessiva, devido à globalização dos fluxos, e de irrealista quem queira recuperar o protecionismo e tornar a fronteira economicamente relevante, por forma a gerar alguma segurança social e a recuperar alguma soberania democrática. Digam que isso equivale à autarcia. Oponham a isso o cosmopolitismo do cidadão dito global. E invistam tudo nos Estados Unidos da Europa, já que a cópia do império liberal pode ser muito melhor do que o original. 

Promovam os “activistas” e secundarizem os militantes, os que nos sindicatos e nos partidos se dedicam ao paciente e disciplinado trabalho de organização, da acção coletiva que persiste no tempo. Elogiem a diversidade pulverizadora, a que culmina na anti-política primeira pessoa do singular. Falem de todas as desigualdades menos da que mais conta, a de classe. 

 Promovam políticas assistencialistas, com condição de recursos, para os “pobres” ou invistam nas quotas para as “minorias”, abandonando a igualdade cidadã e as políticas universais que lhes subjazem, do pleno emprego aos serviços públicos para todos, sem distinções. 

Importem para a vida nacional a perversa retórica minimalista dos “direitos humanos”. Falem dos vossos concidadãos como falam dos refugiados, vítimas sem agência. 

Invistam recursos políticos no apoucamento do patriotismo, promovendo a autoflagelação histórica.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Erro no decreto presidencial

(imagem do decreto presidencial)

Senhor presidente da República, eminente jurista da Faculdade de Direito de Lisboa,

O conceito "colaborador" não existe em Direito Laboral em Portugal. "Colaborador" é um conceito que não consta do Código do Trabalho nem da jurisprudência judicial relativa aos contratos de trabalho por conta de outrem. Pior: encaixa na tentativa ilegal e fraudulenta de "transformar" trabalhadores em falsos prestadores de serviços.

Legalmente, não há, pois, "colaboradores": há trabalhadores, assalariados, funcionários (se o forem), operários (se o forem), ou outra expressão. Não há contratos de "colaboração": há contratos de trabalho. Trabalhador não é um conceito marxista: é uma realidade, prevista na lei.

E que, por isso, senhor presidente da República, agradece-se que corrija esse erro no borrão de decreto presidencial, sob pena dessa disposição não se aplicar a ninguém, senão aos "bujos", "sabujos", "colaboracionistas" e outras pessoas menos rectas, que não os trabalhadores.

Como vê, ele há erros que vêm por bem e há quem escreva direito por linhas tortas e nem é Deus.

Da pulverização do risco

1. Nas últimas semanas desfez-se, num certo sentido, uma hipótese otimista sobre a evolução da pandemia na UE, em que a segunda vaga se caraterizaria por um acréscimo exponencial de novos casos mas com o número de óbitos num aumento apenas ténue, quase impercetível. E se é verdade que esse perfil se manteve entre o início de julho (quando começa a segunda vaga) e meados de setembro, desde então os óbitos entraram novamente numa visível dinâmica de crescimento, como consequência inevitável de um surgimento continuo, exponencial e mais difuso de novos casos.


2. Importa ainda assim assinalar a diferente progressão face à primeira vaga. Se nesta o pico de novos casos diários (32 mil) foi atingido em 65 dias e o pico de óbitos (4 mil) em 70 dias, na segunda vaga esse mesmo valor de novos casos foi atingido em 71 dias, situando-se o atual número de óbitos diários (a rondar os 1.700) felizmente ainda aquém do máximo da primeira vaga, apesar de terem já transcorrido 116 dias depois do início da segunda. Ou seja, dado o número de novos casos já atingido (209 mil no final de outubro), sem que se vislumbre ainda o pico da segunda vaga, perspetiva-se que esta tenha uma duração superior à primeira, podendo o volume de casos críticos acabar por colocar de novo em causa, mesmo que de forma mais gradual, a capacidade de resposta dos serviços nacionais de saúde.

3. Para lá do número incomparavelmente maior de testes realizados (que ajuda a explicar o aumento vertiginoso de novos casos), e da redução da média etária dos infetados (que contribui para explicar o menor aumento de internados e óbitos), parece igualmente assistir-se a uma mudança dos contextos e formas de contágio, que assumem agora «uma base sobretudo de cariz familiar» e de «transmissão crescente do vírus na comunidade» (passando a explicar, no caso português, quase 70% dos novos casos). Ou seja, de uma lógica de contágio mais associada a padrões de aglomeração e a contextos sociais mais desfavorecidos (a par de surtos pontuais em empresas), passou-se - com o desconfinamento e a progressiva retoma do quotidiano - para lógicas mais difusas e reticulares de propagação do vírus.

4. Estas alterações comportam - até pelo volume de novos casos diários - uma complexidade acrescida no combate à pandemia, desde logo comprometido pela menor capacidade de rastreamento das cadeias de contágio. Ou seja, perante um padrão mais difuso, e em micro-escala, de propagação do vírus, os comportamentos individuais e de pequeno grupo constituem hoje um fator ainda mais crítico. Aliás, percebe-se agora melhor o despropositado destaque mediático a eventos únicos e territorialmente localizados (do Avante a Fátima, passando pelo 1º de Maio) - em que é sempre mais fácil assegurar o cumprimento de regras - face a dinâmicas de pulverização dos focos potenciais de contágio (como a realização de funerais, festas em família ou eventos na comunidade).

5. É também por tudo isto que não se compreendem algumas das reações negativas às medidas adotadas no passado fim-de-semana, marcado pelo dia de finados (em que há deslocações significativas por todo o país e aglomerações de pessoas associadas às cerimónias e a encontros de família alargados). Tal como suscitam perplexidade algumas propostas mais liberais, como a de Susana Peralta no Público de dia 30, sugerindo que se adotasse o sistema de semáforos por concelho (em função do ponto de situação da pandemia), cabendo aos cidadãos decidir, com essa informação, que municípios cruzar. Isto é, como se não estivesse em causa uma questão de saúde pública (idêntica à que recomenda a vacinação obrigatória), ou como se fizesse sentido bastar colocar uma bandeira vermelha, amarela ou verde nas praias, deixando depois as pessoas decidir se vão apenas molhar os pés ou nadar e mergulhar.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Sintomático, simples e complicado


Acho muito sintomático que o CDS, em linha com a economia política neoliberal que domina as direitas, tenha agora proposto uma “via verde” para a suposta recuperação na saúde através dos sectores privado e social. A pandemia é uma oportunidade, realmente, para minar o Serviço Nacional de Saúde (SNS), substituindo-o cada vez mais por um Sistema de Negócios da Doença (SND).

Lembrem-se que o Grupo Mello, o dos hospitais CUF, vendeu este ano uma grande fatia da sua participação na Brisa ao capital estrangeiro. Fê-lo para se focar, entre outros, no capitalismo da doença, até porque melhor negócio, já o sabemos, só mesmo a indústria do armamento.

E daí a campanha político-ideológica em curso, do actual Presidente ao futuro candidato presidencial das direitas: Paulo Portas anda, qual sabonete, já a ser vendido com impressionante antecipação e regularidade na TVI. E não se esqueçam do saco do Expresso e do que lá vem dentro.

O CDS vem agora também tentar ajudar este e outros grupos. Tudo muito simples.

Entretanto, o Governo começa a ceder, tendo já assinado novo protocolo com a CUF. Tudo muito complicado.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Marcelo requisita RTP

(Foto roubada do Facebook ao Jorge Heitor) 
 
No dia em que só se falava do novo decreto de estado de emergência, Marcelo Rebelo de Sousa quis ser entrevistado pela RTP. 
 
Toda a gente pensou que iria fazer uma declaração ao país.
 
Afinal, a entrevista foi o seu primeiro acto como candidato a Presidente da República e, para isso, o candidato Marcelo usou a RTP. 

Numa estranha entrevista, Marcelo quis - qual o seu homónimo (com quem tinha relações de cumplicidade antes do 25 de Abril) - ter apenas uma conversa em família, sem ser entrevistado, em que o director de informação da televisão pública deveria ter aceitado cumprir o seu papel (de embrulho) de seguir o monólogo de Marcelo Rebelo de Sousa, como antes acontecia a quem estava com ele quando Marcelo era comentador da TVI e RTP. António José Teixeira quis interrompê-lo por diversas vezes, mas Marcelo resistiu e retomou no ponto onde tinha ficado.

Marcelo falou de tudo e de nada, chegou a dizer "eu agora estive a ler um livro, deixe-me dizer, estive a ler um livro sobre a peste bubónica", "e o merceeiro da minha área dizia é preciso fechar tudo!", que foi o enfermeiro que lhe disse para despir a camisa para ser vacinado ("e levei na cabeça!" - claro que levou porque foi ele quem deixou a câmara continuar a filmar...), falou dos riscos das pessoas que convivem juntas "às dúzias" - "eu uso a máscara sozinho porque podem tirar uma fotografia e dizer que tenho uma multidão atrás"-, "podem estar dez mil pessoas rigorosamente distanciadas (...) sem haver o risco de estarem em fila, podem em teoria, podem haver cem mil, cem mil, que vai dali de Lisboa ao Carregado", "não vale a pena comunicar se é percebido ao contrário", "há uma parte que continua a seguir, mas outra parte cansa-se e as pessoas não percebem (...) as pessoas dizem 'então é uma coisa e agora é outra' e não percebem que foi há 3 meses", "agora estou a ser comentador de bancada (...) a dizer em voz alta o que as pessoas pensam em voz baixa e já não pensam em voz baixa, pensam em voz alta", "quem é eleito é eleito para ser punido, não é para ser louvado [voz esganiçada] (...) há um cheiro a crise política desde o início da pandemia e desde que surgiu a crise económica e social (...) mesmo o Churchill que ganhou a guerra foi corrido a seguir (...) o Governo Passos Coelho, o doutor Passos Coelho, não encaminhou a crise anterior no sentido de uma solução e depois teve maioria absoluta para poder governar, a maioria que tinha, não teve" [como se a crise gerada pelo Governo Passos Coelho tivesse tido a mesma natureza desta...], "eu disse em 2018 se, em 2020, tivesse havido uma tragédia de incêndios igual à dos incêndios de 2017, eu não me recandidatava, não me recandidatava. Porquê? Porque tinha acontecido uma primeira vez, (...) acontecia um ano depois, dois anos depois nos mesmos exactos termos, com a mesma gravidade a tragédia, quer dizer que eu tinha... a minha voz tinha sido perdida no deserto e aquilo que eu tinha dito e o que eu achava fundamental quer fosse mudado - e coisas foram mudadas, podemos discutir muitas, poucas, mas foram mudadas - agora estamos no meio da pandemia... eu fui eleito para ser presidente até ao fim do mandato, não foi para pensar na minha recandidatura. Portanto, eu vou pensar naquilo que interessa aos portugueses - é a pandemia (...) até ao fim do meu mandato, que é 9 de março, continua a pandemia. Portanto, eu tenho obrigação  [e o Governo?] de tratar da pandemia, da crise económica e social até lá. E não fazer cálculos eleitorais até lá"... 
 
Enfim, uma conversa em que o Presidente deu mostras de estar desvairado, de olhar esgazeado, descompensado, quase aloucado, autocentrado e quase autista, a oscilar entre a lucidez e o desvario, sem controlo ou filtro, que quase pôs também louco o director da RTP.
 
Poderia ter sido um episódio do programa de Ricardo Araújo Pereira - hilariante e non sense - se o momento não fosse demasiado importante.

Mas no final, foi uma entrevista em que a mensagem principal - por muito baralhada que aparentou ser - pode ter sido esta: "Isto é muito complicado, é tudo muito difícil e se isto não está a correr bem é porque é muito difícil. Eu sou o primeiro responsável [é mesmo? Não é o governo?], mas não me culpem. [Culpem o governo!] Eu não falhei, a culpa não é minha". E porque tudo é muito difícil, vou ter mesmo de me candidatar à Presidência da República. "Não posso anunciar agora, mas estou a anunciar agora."
 
E a televisão pública foi mobilizada para esta tarefa - de interesse pessoal - , para esse seu primeiro gesto como candidato. Entrevista em prime time, gratuito e com audiência garantida. Nem o Baron Noir! Bravo!

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

No mínimo keynesianos

 

Estamos numa armadilha de liquidez global [em que as taxas de juro são tão baixas quanto podem ser e a poupança é elevada, sendo a política monetária ineficaz a não ser como suporte à política orçamental] (...) A política orçamental deve desempenhar o papel principal na recuperação, contrariando o défice de procura agregada. As facilidades no crédito instituídas pelas autoridade monetárias só asseguram o poder de emprestar, mas não o poder de gastar (...) As autoridades públicas devem apoiar activamente a procura, através de transferências monetárias e de grandes investimentos nas áreas da saúde, da infraestrutura digital e da protecção ambiental. Estas despesas públicas criam emprego, estimulam o investimento privado e criam as bases de uma recuperação mais forte e ambientalmente sustentável (...) A importância dos estímulos orçamentais nunca foi tão grande, porque o multiplicador da despesa – o efeito em termos de crescimento do investimento público – é muito maior num quadro de armadilha de liquidez.
 
Gita Gopinath, economista-chefe do FMI, Financial Times [minha tradução] 

É claro, como já por várias vezes se sublinhou, que não é keynesiano quem quer, mas sim quem tem poder no FMI. É preciso sempre distinguir as prescrições gerais das prescrições concretas para os países periféricos e semiperiféricos em concreto. De qualquer forma, é preciso pegar nestas ideias e traduzi-las para português, acrescentando, por exemplo, o controlo público de sectores estratégicos ou os direitos de quem trabalha. Temos de ser todos pelo menos keynesianos, em versão teoria monetária mais ou menos moderna.

domingo, 1 de novembro de 2020

The Durutti Column - Spent time


Estamos em pandemia, não estamos?

(Roubado no Facebook a António Rodrigues)

Numa ilha, o vulcão está em erupção, mas os donos dos barcos privados - que dizem querer "ajudar" a população - não a deixam embarcar enquanto não se fixar um preço por embarcado. Contudo, a Lei de Bases da Saúde de 2019 - a tal votada contra a opinião da direita - prevê taxativamente que o Estado pode requisitar os barcos privados para a população se salvar. Mas os donos dos barcos resistem, pressionam, lembram que os barcos do Estado não chegam para todos e que estão a morrer mais do que se morria antes: "Nós temos aqui tanto espaço, venham para aqui". Só que os advogados dos donos dos barcos exigem que o Estado compre um bilhete por cada lugar no barco. "Aceitamos que nos paguem o que vos custa por cada lugar nos vossos barcos", diz um deles. "Não é para lucrar com a desgraça. Mas tem de se encontrar preços justos. A ministra tem de ser ministra da Saúde e não do SNS", disse esta noite o ex-porta-voz dos governos Cavaco Silva, Marques Mendes, no seu espaço da SIC. E os membros do governo abanam. 

Mas frise-se os termos da Lei: 

Ponto 2: "Para defesa da saúde pública, cabe, em especial, à autoridade de saúde: (...) d) Proceder à requisição de serviços, estabelecimentos e profissionais de saúde em casos de epidemias graves e outras situações semelhantes."

Não se fala de "pode" ou "deve": é uma determinação política: "cabe". Ora, atenda-se que uma pandemia parece ser ainda mais grave do que uma epidemia, porque está a ocorrer em todo lado simultaneamente.

Na Lei de Bases acrescenta-se: 

"3 - Em situação de emergência de saúde pública, o membro do Governo responsável pela área da saúde toma as medidas de exceção indispensáveis, se necessário mobilizando a intervenção das entidades privadas, do setor social e de outros serviços e entidades do Estado." 

 

Dir-se-á: "Mas essa não é vocação do sector privado, o Estado é que deve cuidar de todos. O sector privado, em caso de desgraça, não pode perder dinheiro tratando do povo". Então nesse caso, se essa é uma tarefa apenas do Estado, então o Estado deve dotar-se de todos os meios para o fazer para que possa atingir essa sua finalidade colectiva. O bem geral deve estar bem acima da vontade do dono da porta. A porta pode ser mobilizada em nome do bem superior da colectividade. Por isso, a lei dá todos os meios para o Estado não se sentir capturado pela vontade dos interesses privados e egoístas. 

Se o direito constitucional à greve permite o seu afastamento em nome de "necessidades sociais impreteríveis", por que não os direitos legais dos interesses privados na Saúde face à "necessidade social impreterível" de combater a pandemia? Caso contrário, seria como se o Direito servisse sempre para prejudicar os mesmos. 

Mas os responsáveis governamentais parecem não ter vontade alguma de lidar com essa possibilidade, como se não tivessem coragem de requisitar os barcos e colocá-los sob a sua gestão e seu comando. A ministra ainda chegou há dias a adiantar a possibilidade de usar "a figura da requisição", mas nunca mais se ouviu falar disso. Estará esse argumento a ser esgrimido em reuniões? Ou alguém sentiu um calafrio pela coluna já a imaginar o que lhe diriam em Bruxelas?  

A direita e o Presidente da República parecem estar a pressionar para que seja necessário decretar o "estado de emergência". Mas então convirá o sector privado da Saúde - e Marcelo Rebelo de Sousa, que tanto quer intervir em véspera eleitoral - estarem preparados para todas as eventualidades, incluindo a mobilização da "intervenção das entidades privadas, do setor social e de outros serviços e entidades do Estado."

O que falta mais? 

sábado, 31 de outubro de 2020

Da indignação dos hospitais privados

1. Em reacção às declarações do Ministério da Saúde, nas quais se denunciava a indisponibilidade dos privados para receber doentes com covid-19, a Comissão Executiva da CUF fez um comunicado onde afirma haver neste momento 17 internados com covid-19 nos hospitais da CUF de Lisboa e do Porto.

2. Como termo de comparação, só o hospital público de Almada tinha ontem internados 66 infectados - 55 nas enfermarias e 11 nos cuidados intensivos. 

3. Tal como aconteceu na primeira vaga, tenho recebido relatos em primeira mão (não li nas redes sociais, nem ouvi dizer que alguém disse) de que todos os dias chegam aos hospitais públicos doentes que são encaminhados pelos privados porque apresentavam sintomas mínimos de covid-19 (tosse e febre acima de 37 graus), sem terem sido sequer testados. 

4. As pessoas que conheço que têm espaço na comunicação social, quando falam em público sobre este tema, são inundadas de contactos de agências de comunicação ao serviço dos hospitais privados, numa atitude que varia entre a réplica e o bullying. 

5. Aos bullies convido para encherem esta caixa de comentários com o vosso trabalho dedicado, tal como fizeram quando aqui escrevi sobre este tema durante a primeira vaga. Sei que o farão, de qualquer forma.

Kalidás Barreto (1932-2020)

Faleceu ontem um dos imprescindíveis do movimento sindical português. Kalidás Barreto encarnou o ideal socialista de uma república democrática protagonizada pelos trabalhadores, partindo do combate antifascista para a construção de uma democracia digna desse nome, que não parasse à porta dos locais onde se trabalha. 

Curvo-me, curvamo-nos, perante a sua memória. Ficam excertos do seu percurso, tirados da página da CGTP-IN, de que foi um dos principais construtores: 

 “Contabilista de profissão, exercida no sector têxtil, em Castanheira de Pera, onde, em 1958, integrou a comissão de apoio à candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República. Foi dirigente do Sindicato dos Têxteis do Centro e, nessa qualidade, participou numa reunião da Intersindical, realizada em Leiria, antes do 25 de Abril. Foi também dirigente nacional da Federação dos Sindicatos Têxteis. Foi eleito Deputado pelo PS à Assembleia Constituinte, em 1975. Foi eleito, sucessivamente, para o Conselho Nacional e a Comissão Executiva da CGTP – IN, entre 1977 e 1996. Acérrimo defensor da unidade dos trabalhadores, contra o divisionismo sindical, teve um importante papel na realização do Congresso de Todos os Sindicatos realizado em Janeiro de 1977, no qual lhe coube a primeira intervenção em defesa da unidade sindical, consubstanciada na CGTP-Intersindical Nacional.”

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Pandemia e capitalismo


Um dos erros de análise da actual crise económica é considerá-la como causada por um factor exógeno, a pandemia, comparável a uma qualquer queda de um meteorito, sobre a qual não temos qualquer responsabilidade. Se as origens da actual pandemia ainda não são claras, o impacto da acumulação de capital na desflorestação e nas alterações climáticas está inegavelmente na origem de velhas e novas pandemias. Ou seja, a crise global não terá uma origem exterior à economia. Interessante é ver como o orgão oficial da finança internacional (o Financial Times) e um autor marxista, como Andreas Malm no seu recém publicado Corona, Climate. Chronic Emergency, convergem no diagnóstico.

Saco 2

Na sequência do post do João Rodrigues, sobre o slogan publicitário do novo Hospital da Cuf em Lisboa no saco do jornal Expresso (é todo um programa esta combinação de elementos), antecipam-se possíveis equívocos com os pacientes: 

- Pronto, se tem uma doença hoje, não venha, está bem? É só para as doenças futuras  

(Previsão: é possível que, assim, o Hospital fique vazio e o negócio apenas possa ser rentabilizado com a transferência de doentes do SNS subfinanciado, pagas pelas verbas do Orçamento de Estado, assim desviadas do seu propósito apesar das regras apertadinhas para que se cumpra o défice bruxelense)

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Está tudo no saco

No seguimento da denúncia feita por João Ramos de Almeida a mais um ideologicamente enviesado número do Expresso em matéria de política de saúde, peço-vos que reparem no saco onde vinha este jornal. É um dos principais “influenciadores”, para usar o termo mobilizado pelos médicos que defendem o SNS. 

Isto está de tal ordem que o marxismo mais elementar tem maior poder explicativo do que tudo o que passa por sabedoria convencional. É desgraçadamente simples na economia política desta imprensa: se a saúde for cada vez mais um negócio, há mais publicidade. 

No capitalismo realmente existente, de onde o Estado nunca esteve e nunca estará ausente, tanto a robusta CUF como a frágil Impresa recebem directa e indirectamente apoios públicos. E se o Estado não optar pela requisição civil de hospitais ditos privados, até perante a recusa destes em receber doentes infectados com Covid-19, é caso para dizer que já nem é preciso falar da sua autonomia sempre relativa, mas potencialmente real em democracia.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

A irresponsabilidade é um luxo


Não podemos ter pessoas de classe média ou média baixa a morar em prédios classificados.

Relativamente à Comporta tivemos, neste período, um aumento da procura por parte de clientes high-end, que procuram exclusividade, segurança e privacidade num ambiente de proximidade com a natureza, o que, no período em que vivemos, só nos dá ainda mais segurança e conforto para o desenvolvimento do projeto (...) A personalização da oferta é fundamental para conquistar o consumidor de luxo. Algo mais subjetivo e que se sente, sem se ver, ou seja, a experiência. Daí estarmos otimistas, talvez a pandemia tenha acelerado a transformação que já antecipávamos, ou seja, a democratização do luxo, o elitismo para todos. 

Miguel Guedes de Sousa, “Amorim Luxury Group - Founder CEO JNcQUOI”. 

Paula Amorim é a pessoa mais rica de Portugal e para lá do rentismo fundiário e do capitalismo fóssil aposta fortemente no mercado do luxo e da ostentação. Um dos exemplos recentes e mais expressivos do que apodei de porno-riquismo é realmente o clube de que é proprietária com o marido, Miguel Guedes de Sousa, na Avenida da Liberdade, o JNcQUOI. O francês rivaliza sempre com o inglês no consumo conspícuo em mais uma época de desigualdades pornográficas na história do capitalismo. 

Não consta que a festa em espaço fechado que aí decorreu com dezenas de jovens ricos de Cascais tenha sido interrompida à bastonada, ao contrário de outras festas de jovens pobres, em espaço aberto, mas distantes do centro da capital. 

Que digo eu, não foi de festa que aí se tratou, mas sim de “jantar com DJ”, segundo afirmou o clube, em reacção a dezenas de infecções por Covid-19. “Um escândalo na alta roda”, noticiou uma revista agora pouco cor-de-rosa. O distanciamento aí é sempre social, mas não terá sido físico. 

Dizem que com grande poder vem grande responsabilidade. No caso do grande capital vem sempre grande e luxuosa irresponsabilidade, na ausência de poderes compensatórios à altura. Aliás, a ficção do mercado livre, alimentada por batalhões de economistas, tem precisamente por função ocultar o poder e a responsabilidade. A pandemia e a catástrofe ecológica que com ela se imbrica expõem todas as grandes irresponsabilidades nesta forma insustentável de capitalismo. 

Como na Galp, de que a família Amorim é a principal acionista, vai ser preciso muito mais investimento em relações públicas, ou seja, em propaganda na comunicação social. E talvez a criação de uma cátedra Amorim em economia sustentável numa dessas faculdades de economia onde tudo se vende possa também ajudar no esforço de propaganda.

Deserções

Se há coisa que o Partido Socialista e António Costa não podem fazer é gritar que o Bloco de Esquerda desertou da esquerda para se aliar à direita. 
 
Discuta-se se é uma boa ideia votar contra a proposta de Orçamento de Estado, mas nunca aquilo que se disse ontem no Parlamento. Porque nesse capítulo há actores maiores.  

O Partido Socialista foi um dos principais obreiros das alterações à legislação laboral que foram sendo introduzidas desde 1976 e - como o próprio António Costa o disse - sempre para prejudicar os milhões de trabalhadores que o Partido Socialista diz defender. Costa afirmou-o quando se discutia o pacote contra a precariedade, que - veja-se lá! - se melhorou umas coisas, prejudicou ainda mais outras. Aliás, a sua aprovação foi feita com júbilo pelos deputados do CDS e do PSD para vergonha silenciosa dos próprios deputados socialistas que se viram engomados por esse rolo compressor. 
 
Tudo supostamente porque o Partido Socialista adere como uma luva perfeita a um modelo neocorporativo e governamentalizado, erguido para desvalorizar o trabalho, em que a concertação social - onde confederações patronais sem representatividade têm o mesmo peso dos trabalhadores e marcam as discussões e o conteúdo dos acordos, com o voto de uma confederação sindical onde pontuam... os socialistas. Um modelo que abusiva e inconstitucionalmente se sobrepõe ao próprio parlamento e acaba por esvaziar as suas competências, obrigando os deputados a aprovar o que quem lidera o patronato quer. 

Por causa disso, todas as iniciativas legislativas à esquerda no Parlamento, visando alterar a legislação aprovada à direita em 2003 (sem os socialistas), 2008 (com os socialistas) e 2012 (sem os socialistas) - e que visaram eficazmente desvalorizar o trabalho como forma ineficaz de criar ganhos de competitividade externa - foram sempre chumbadas pelo voto dos socialistas aliados aos do PSD e do CDS e aos dos demais grupos mais à direita ainda. Faça-se uma lista das vezes que o Partido Socialista se aliou à direita contra os partidos de esquerda e ver-se-á quão descabidas foram as palavras ontem de Costa. 
 
Aliás, ainda ontem Costa teve daqueles momentos em que disse numa frase uma coisa e o seu contrário. A defender a proposta do OE para 2021, elogiou a moratória de 24 meses para a caducidade das convenções colectivas porque assim se "impede a desregulação" para 3 milhões de trabalhadores. Palmas dos deputados socialistas! Disse mesmo, em resposta ao deputado de Os Verdes: 
 
"A garantia que demos protege 3 milhões de trabalhadores com a moratória da caducidade das convenções colectivas que assegura a protecção durante dois anos, evitando que os trabalhadores sejam forçados a renegociar a contratação colectiva numa situação de fragilidade e que, numa situação de crise, veja a sua posição negocial reforçada para manter o diálogo social e a negociação". 
 
Mais palmas! Mas fica a dúvida: se o impedimento da caducidade das convenções públicas é bom por 24 meses - porque ela impede a desregulação do mercado - por que razão se aprova uma moratória e não um impedimento permanente? O que vai acontecer daqui a 24 meses? Benignamente, dir-se-á que o PS está a abrir uma porta para, daqui a dois anos, dizer: "Correu bem, continuemos". Mas nunca se pensou nisso? Ou ter-se-á pensado agora, porque essa foi uma das propostas que surgiu na negociação e que o PS já se apropriou dela? Porque, na verdade, o Partido Socialista já votou tantas vezes contra o fim da caducidade das convenções colectivas e contra o princípio do tratamento mais favorável - que legitima que uma convenção pode ter normas mais recuadas que a própria lei! - dispositivos legais que deixam os trabalhadores a negociar em estado de necessidade (isto parafraseando José António Vieira da Silva em 2003).  
 
Ninguém questionou Costa sobre isso, mas para Costa esta frase parece ter sido dita sem se aperceber do alcance das suas palavras. Algo revelador da forma como certas medidas são tomadas, pensando-se apenas nos equilíbrios políticos de curto prazo, sem que se pense nos seus efeitos económicos e - pior, muito pior! - sem que se pense nos milhões de trabalhadores que estão na matriz da fundação do Partido Socialista. Refiro-me à primeira, porque a segunda foi outro assunto...   
 
Veja-se o caso da notícia que saiu hoje no Público (novamente assinada pela jornalista São José Almeida, como se tivesse sido debitada pelo Governo, sem contraditório) em que o Partido Socialista chantageia literalmente ainda o Bloco, sem pensar nas pessoas a quem a medida se destina e sem admitir que o Bloco possa votar a medida na especialidade:
 
"Algumas das alterações às leis laborais que o Governo se comprometeu a fazer, num documento que entregou ao BE durante o processo negocial sobre o Orçamento do Estado para 2021, ficarão sem efeito, no caso de o BE votar contra a proposta de contas do Estado na votação final global a 26 de Novembro" (...) "o mesmo responsável afirmou: 'É importante ter presente que o BE, ao decidir votar contra, decidiu também abdicar ou largar mão de tudo o que consta nesse documento sobre matérias laborais'.”

 
Em resumo: Se há deserção, essa tem sido a prática laboral em democracia do Partido Socialista. E friso o nome do partido por extenso porque creio ainda que os socialistas devem defender no dia-a-dia a construção de uma sociedade mais justa e menos desigual. E não dizer defendê-lo e fazer o seu contrário todos os dias.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Quinta-feira, a partir das 17h30


Segunda sessão do ciclo de apresentações do livro Financialisation in the European Periphery: Work and Social Reproduction in Portugal, coordenado por Ana Cordeiro Santos e Nuno Teles, que reúne contributos dos principais autores que, em Portugal, têm estudado a evolução financeirizada da economia portuguesa.

Nesta sessão, com início às 17h30 e que pode ser acompanhada por videoconferência, Catarina Príncipe, Helena Lopes e Sérgio Lagoa debatem o impacto da financeirização na (re)produção desigualdades sociais, tanto ao nível da organização do cuidado à comunidade como nas formas de organização do trabalho e distribuição de rendimentos.

Ao serviço do público

A carta dirigida à ministra da Saúde pelo bastonário da Ordem dos Médicos (OM) e cinco dos seus antecessores enquadra-se num movimento mais amplo de intervenções de “influenciadores” nos meios da comunicação social e em meios universitários, todas com a mesma orientação e a mesma substância. 

Começam por enunciar dificuldades reais do SNS, sobretudo derivadas da pandemia, ampliam-nas em tom alarmista e daí passam ao ataque político à ministra. Finalmente, e para culminar, chegam ao objetivo mercantil: perante tal “caos”, “desorganização” e “risco” há que recorrer aos serviços privados. 

Poderá haver médicos concordantes com essa carta, por coincidirem com os seus objetivos. Nós não. Não nos sentimos representados.

Início de uma resposta notável, de um grupo notável de médicos, que pode e deve ser lida na íntegra no Público. 

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Confusão

Na apresentação da proposta de Orçamento de Estado para 2021, coube a vez à ministra do Trabalho e segurança Social, Ana Mendes Godinho, defender hoje a sua pasta. 

O deputado socialista Tiago Barbosa Ribeiro fez uma intervenção política sobre a política de esquerda nas medidas previstas e, de certa forma, criticando a recente posição do Bloco de Esquerda, mas procurando voltar a dar a mão. 

E rematou com um pedido de esclarecimento para justificar a intervenção política que a ministra não soubera fazer até então: "Aprofunde estes compromissos nas matérias social e laboral, sobretudo para os trabalhadores, e de que forma estas marcas distintivas desta Orçamento nos posicionam claramente no espírito, no caminho e identidade do programa político que construímos em conjunto desde 2015".

Eis a resposta textual da ministra, de alguma forma pontuada - nem sempre era claro onde estavam as vírgulas. Pede-se alguma paciência: 

Senhor deputado, este é, de facto, um momento de alguma perplexidade. De alguma perplexidade, se já era expectável que do lado da direita houvesse uma oposição nomeadamente também aqui com alguma perplexidade quanto ao facto de dizerem que vamos longe demais e que é um orçamento despesista, mas depois vêm pedir que gastemos mais em vários públicos e não conseguem dizer... onde, qual dos públicos devemos optar; também neste momento há alguma perplexidade porque, depois de um trabalho intenso de muitas negociações e de muita evolução naquele que acreditamos que é um caminho de resposta ao país, num momento em que o país precisa de uma resposta, de uma resposta colectiva e de uma mobilização em conjunto da esquerda para respondermos ao momento que vivemos de uma forma diferente à forma como foi respondido numa outra crise e que todos nós creio que já aprendemos que não é a forma de responder a estas situações; no momento em que depois de evoluirmos, de negociarmos, de caminharmos em conjunto, procuramos aqui encontrar soluções seja ao nível de respostas de emergência, mas também de criação de uma nova forma de prestação social procurando chegar a um universo o mais abrangente possível nomeadamente também tendo em conta o momento que vivemos, também procurando chegar a quem mais precisa, e tendo em conta os rendimentos que têm, portanto que seja uma prestação do ponto de vista social também justa que responda a quem precisa, sendo uma prestação não contributiva; e por outro lado também procurando aqui chegar a um universo que respondesse aquelas que eram as preocupações dos partidos de esquerda, é de facto, penso ,num momento em que não se compreende que não estejamos todos juntos a conseguir a construir este Orçamento que responde ao país nesta fase que vivemos também com a preocupação de responder não só do ponto de vista orçamental mas também de uma agenda do mercado de trabalho contra a precariedade e da valorização do trabalho. E nesse sentido que trabalhámos e procurando encontrar aqui equilíbrios e dando uma resposta também aos trabalhadores e aos jovens que olham com expectativa para aquilo que Portugal lhes consegue oferecer em termos de futuro, seja quanto ao aumento do salário mínimo - e neste aspecto, aliás, demos logo um avanço em relação às bolsas do IEFP, aumentámos significativamente as bolsas de entrada do IEFP de entrada no mercado de trabalho, para que seja uma forma de valorizar quem entra no mercado de trabalho - seja também a moratória para as convenções colectivas, seja através de uma proposta de criação de instrumentos de dinamização da contratação colectiva  e da negociação colectiva, nomeadamente com a criação de instrumentos, de incentivos e condições de acesso a apoios e incentivos públicos como condição de majorações de... de... de... de uma contratação dinâmica, ou o alargamento da contratação colectiva a trabalhadores em outsourcing e a trabalhadores independentes ou ao combate ao recurso abusivo ao trabalho temporário quando não é manifestamente enquadrável legalmente. São estes alguns dos exemplos que procuramos caminhar também respondendo à expectativa que o país tem de conseguirmos andar em frente e construirmos, através deste orçamento, não só responder ao problema presente, mas construir um futuro que seja um futuro em que todos nós nos revemos que é um futuro de confiança, de responder também ao futuro. 

Sorriu e recostou-se na cadeira. 

Post Scriptum

Pode não ser nada de novo, mas neste caso assistir ao debate cria uma pilha de nervos. 

A ministra não pára de mexer em qualquer coisa - passa páginas, ajeita o microfone (várias vezes numa intervenção), passa a mão pelo cabelo - e as perguntas dos deputados não são respondidas: "Como é seu apanágio, respondeu, mas não àquilo que eu pretendia que respondesse (...) agradecia que respondesse de forma concisa e directa e sem rodeios (...) está aqui na proposta de lei, se calhar ainda não teve oportunidade de ler" (Ofélia Ramos, PSD), "Por favor, não volte a falar no programa 3 em linha" (Lina Lopes, PSD),"Sobre os sócios gerentes, a senhora ministra ainda não respondeu" (Isabel Pires, BE, na segunda ronda de perguntas), "Senhora ministra, eu vou ter de insistir" (Diana Ferreira, PCP), "Oh senhora ministra eu não pedi para desenvolver o tema do aumento das pensões mais baixas" (João Almeida, CDS), Inês Sousa Real, PAN, fala da precariedade e pergunta se está disponível para reduzir o período experimental e a ministra responde que concorda com ela, que juntos devemos caminhar contra a precariedade e que o Governo está disponível para alargar o subsídio de desemprego aos despedidos após o período experimental(!). 

Ou então as perguntas são embrulhadas em discursos como o retratado, as preocupações sobre a realidade são abordadas como meros tópicos de um intervenção política vazia de sentido e de pensamento, em que os temas são atamancados, confundidos, misturados, enrolados em listas de medidas que a ministra debita a ritmo a mata-cavalos, porque não sabe, não-sabe-que-não-sabe, e alguém acima de dele acha por bem deixar uma pasta tão sensível como a social e a laboral a pessoas com este grau de inconsciência, de incompetência técnica e política. 

Apenas é compreensível se esse alguém no Governo considera que os trabalhadores são, na verdade, a variável de ajustamento.  

Ajuda e lucro

A direcção do jornal - como, aliás, a do jornal Público - parece alinhar com a agenda de Marcelo Rebelo de Sousa: imiscuir-se nos assuntos governamentais e dar azo a uma intervenção musculada em véspera eleitoral. 

A nota reproduzida é sibilinamente aldrabona ao transmitir a  ideia de que Marta Temido não quer, por teimosia ou preconceito ideológico, a "ajuda extra do sector privado". Vários jornalistas do mesmo jornal já o afirmaram no programa Expresso da Meia Noite.

É aldrabona, primeiro, porque nem se trata de uma ajuda. 

Seria sempre uma intervenção em que o sector privado iria lucrar com o pagamento pelo Estado por fazer o que é sua obrigação e que apenas não é cumprido porque, mais uma vez ao longo de décadas, os Orçamentos de Estado subfinanciam o SNS. É como se os privados investissem sabendo que a sua capacidade instalada (como o recente Hospital do grupo Cuf em Lisboa ) vai ser - por certo e sem risco - preenchida e paga por fundos públicos. Mas os jornalistas do Expresso nem se lembram de discorrer sobre um efectivo e atempado reforço dos meios do SNS. Porque se assim fosse, será que não sairia mais barato aos cidadãos - e não contribuintes - portugueses?

Como disse uma vez, a ainda administradora do grupo Luz Saúde, Isabel Vaz (ex-Espírito Santo, hoje grupo Fidelidade, de accionistas chineses) não há nada mais lucrativo do que a Saúde, depois da indústria do armamento (ver em baixo). Naquela altura, era a inauguração do Hospital da Luz.


Depois, porque parece ter passado desapercebido uma chamada de atenção recente da ministra da Saúde em conferência de imprensa. Em resposta a uma pergunta da Rádio Renasncença sobre se o Governo não pensava fazer parcerias com o sector privado - por que será que as boas almas se encontram? - Marta Temido respondeu que o SNS ainda tinha oferta disponível, mas que se faltasse sempre se poderia recorrer "a figura da requisição" do sector privado. Mas talvez nesse caso o sector privado já não esteja tão interessado em prestar essa "ajuda extra", não é? 

É estranho como tão depressa a comunicação social se tornou um canal de transmissão de mensagens tão orientadas e interesseiras.

domingo, 25 de outubro de 2020

Negociações orçamentais


Fica longe


Por uma vez, estou de acordo com Vital Moreira“Já tínhamos o StayawayCovid, agora temos o IVAucher (jogando com a sigla IVA e a palavra inglesa voucher). O Estado junta-se assim, oficialmente, à tendência de jornalistas, economistas, etc. na adoção de termos ingleses ou de anglicismos, mesmo quando eles nada acrescentam à compreensão das iniciativas públicas em causa, salvo pretensiosismo. Infelizmente, hoje em dia, há muita gente nas elites cosmopolitas que cuida mais do seu Inglês do que do Português. Mas o Estado, esse, não tem o direito de desconsiderar a Língua.” 

É por estas e por outras que neste blogue estão proibidos os anglicismos e outros estrangeirismos. 

Seguindo o empresarialmente correcto, a bem denunciada tendência é a expressão linguística de classe da perda, que também é material, de independência política,  por sua vez filha da manifestação da globalização nesta parte do continente, ou seja, da integração europeia. 

E diz que isto já não é um bem um Estado, até porque parece que existe uma espécie de constituição supranacional e tudo. Enfim, as tais elites “cosmopolitas” gostam de se imaginar no centro, algures entre Washington e Bruxelas. Na realidade, são alunas acríticas de professores visivelmente desactualizados. 

Ana Vale

Faleceu recentemente, a 26 de setembro, Ana Vale. Técnica do gabinete técnico-jurídico da CGTP-IN entre 1974 e 1994, representou esta organização sindical no Conselho Consultivo da atual CIG, na Comissão Tripartida da CITE e na OIT. E o seu nome marcaria, de forma indelével, a Iniciativa Equal (2001-2009), «um programa de carácter experimental, dinâmico e evolutivo», de que foi gestora, orientado para o desenvolvimento de «novas soluções para combater as discriminações no mercado de trabalho e responder de forma mais eficaz aos problemas das comunidades e das pessoas em situação de maior desvantagem».

Num tempo de certa forma ainda não contaminado com os mantras estéreis das startups, dos empreendedorismos da moda, das inovações-porque-sim e dos simulacros de participação, a Iniciativa Equal apoiou projetos consistentes, em termos de conceção e funcionamento, na busca de soluções diferentes para velhos e novos problemas. Desde logo na constituição das parcerias, em que se promovia um diálogo efetivo entre conhecimentos técnicos e experiências de terreno, essenciais para identificar problemas e soluções, posteriormente desenvolvidas e sujeitas a experimentação e validação, num amadurecimento progressivo das respostas. Uma «filosofia» de intervenção pautada pelos princípios da igualdade e da emancipação, de que Ana Vale foi intransigente defensora.

sábado, 24 de outubro de 2020

"Nem dado"

(Apanhado no Facebook com o recado que está em título) 

Até parece que alguém está a pagar o livro requentado de um tardio Cavaco Silva, escrito para comemorar os 25 anos em que deixou o Palácio de S.Bento. Ninguém já se recorda, mas Cavaco Silva saiu de S.Bento envolto no tabu de deixar o poder entregue aos mais turvos interesses, ao que parece pressionado por provas entregues à comunicação social do enriquecimento ilegal de diversos ministros, na sequência do seu papel de introduzir - através de políticas deliberadas e desejadas - o projecto neoliberal em Portugal

Na sua autobiografia política, escreveu que se afastou porque se tinha vindo "cansando da vida partidária", que "estava a ficar farto", que os "comportamentos oportunistas e mesquinhos de alguns dirigentes partidários desenvolveram" nele "uma crescente sensação de fastio e vontade de reencontrar outras envolventes humanas, outras linguagens, outras atitudes" e que "era com sacrifício que participava nas reuniões dos órgãos de direcção do partido e escutava os discursos dos chamados barões ou de certos dirigentes".

E cita aquilo que, a 13/8/1994, na Festa do Pontal, disse: 

"No PSD, tal como nos partidos da oposição, também existem alguns barões que vêem nos partidos trampolins para alcançarem benesses pessoais"

Frase que, numa entrevista (“As revelações de Cavaco”, Público, 28/3/1995), voltou a abordar: 

“Sangue novo, novas ideias, novas atitudes...” – começou por dizer. Depois interrompeu-se e a seguir disse algo aparentemente estranho, que nada tinha a ver com o que estava a dizer - “...e defendendo que o partido não devia ser trampolim para benesses pessoais. Fiz este discurso no Pontal, depois do Pontal... e há momentos em que o exemplo tem de vir de cima”.

Que exemplo? O da deserção? O de ser cúmplice de benesses pessoais, eventualmente ilegais e criminosas? O de defender o partido acima de tudo, mesmo da lei? 

Ora, eis algo que sobre o qual nada diz no seu livro requentado. Mesmo passados 25 anos sobre esse tabu.  

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Faturar com a pandemia


Uma investigação exaustiva de jornalistas do Público deu a conhecer os gastos do Estado com os mais de 15 mil contratos públicos efetuados na resposta à pandemia. Na notícia, pode ler-se que "a GLSMed Trade, do grupo Luz Saúde, foi a empresa que mais facturou em contratos feitos pela Administração Pública para responder à pandemia. A principal cliente do grupo foi a Direcção-Geral da Saúde (DGS), que gastou 32,7 milhões de euros em compras à empresa de distribuição de produtos, equipamentos e dispositivos médicos do grupo Luz Saúde, detido pela Fosun e pela seguradora Fidelidade [...]".

Não está em causa a necessidade que o Estado pode ter de recorrer à aquisição de bens, equipamentos ou serviços a grupos privados num contexto de emergência sanitária. O problema são os termos em que os contratos têm sido efetuados. É por isso que há quem tenha defendido soluções como a da requisição civil, que permitiria ao Estado adquiri-los a preço de custo em vez de negociar o seu preço, privilegiando o serviço de saúde público em detrimento dos lucros privados.

Não surpreende que alguns grupos privados aproveitem para lucrar com a pandemia. Isabel Vaz, do Grupo Luz Saúde, já dissera que "melhor negócio do que a saúde só mesmo a indústria do armamento", o que dificilmente podia ser mais claro. O que surpreende é que muitos continuem a achar que o Estado deve promovê-los em vez de canalizar os fundos para reforçar o investimento no SNS.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Ideologia e medo têm um único fim?

Entrevista de Jorge Torgal ao jornal Público

Jorge Torgal, médico especialista em saúde pública, foi entrevistado pelo jornal Publico e a Rádio Renascença. Nela, o médico expressa certas opiniões que têm ido contra aquilo que tem sido veiculado, por diversos actores políticos, na comunicação social. Veja-se os sublinhados.

Mas por estranho que possa parecer, a parte da entrevista em que o médico critica os ex-bastonários da Ordem dos Médicos e a utilização política de uma ideologia, o papel do sector privado ou o medo que se está a criar, essa parte foi obliterada das peças da RTP e da SIC, passadas esta manhã. E porquê?

Porque, muito possivelmente, não estou certo, aqueles dois órgãos de comunicação social enviam às televisões os excertos que consideram mais relevantes - no seu ponto de vista ou no ponto de vista de alguém, de quem edita ou de quem coordena a edição. E as televisões montam a peça. Mas se assim for, e se ninguém consultar a entrevista toda - porque ainda leva tempo fazê-lo - as televisões apenas comunicam o que alguém por elas escolheu... Neste caso, alguém no Público e na Rádio Renascença. E, se assim for, é mais grave do que possa parecer, porque a informação acaba por estar ainda mais centralizada e condicionada, menos independente.

Neste caso, é ainda mais paradigmático. É que se manteve a parte em que Torgal defende um plano mais ousado do Ministério da Saúde para o Outono e Inverno e se pede uma "coragem forte" para mudar os planos seguidos quanto ao tratamento das patologias não Covid. Ora, estas ideias - com os cortes cirúrgicos introduzidos (os sublinhados) - passam a entroncar bastante bem na mensagem comummente passada pela comunicação social: o sector público não dá conta do recado e alguém tem de tratar das outras patologias que estão a ser deixadas sem tratamento. Algo precisamente contrário ao que o médico disse.

Sobre o orçamento

 «As previsões do Governo de um crescimento de 5,4% são de uma rápida recuperação. Ora, o aumento progressivo de despedimentos cuja dimensão ainda é difícil de prever devido ao layoff, aliado à incerteza nacional e internacional que a própria pandemia traz, é razão para ser cético. Por outro lado, este orçamento traz um esforço insuficiente e incerto do Estado no que toca ao investimento público (que cresce, mas vem de mínimos históricos). Este não é o orçamento contra-cíclico que se impõe face à gravidade da crise», refere. 

 Quanto à taxa de desemprego, o economista admite que as previsões «refletem o otimismo do Executivo não só de uma rápida recuperação, mas também do real impacto da atual crise, cujos efeitos estão ainda longe de serem claros, devido às medidas de emergência. Acresce que, dada a dependência do emprego recente de setores como o turismo, não é fácil ser tão otimista como o Governo». 

Também o aumento do endividamento é visto pelo economista como natural tendo em conta o atual contexto económico. Mas deixa um alerta: «Devido ao trauma do que foi a crise do Euro em 2011-12 há uma clara inibição do Governo em recorrer a endividamento para relançar a atividade económica. Pode parecer um bom princípio de cautela, mas não o é. Ao contrário do que aconteceu em 2011, o BCE está no mercado a comprar títulos de dívida pública dos diferentes Estados da zona euro, mantendo assim taxas de juro muito próximas do zero para países como Portugal». 

Mais difícil de compreender é, para Nuno Teles, a alternativa de um empréstimo do sistema financeiro nacional ao Fundo de Resolução. «Se cumpre o objetivo da não transferência orçamental, estamos a falar de empréstimos a uma entidade que está no perímetro do Estado, logo que contará para efeitos de défice. Na prática, o mais provável é que o financiamento do FdR será mais caro do que o financiamento que seria conseguido através de endividamento através de emissão de dívida. Por mera manipulação contabilística, arriscamo-nos a onerar mais uma entidade pública», conclui.

Excertos das declarações de Nuno Teles ao Sol. Se o Professor da Universidade Federal da Bahia não vem ao blogue, o blogue vai até ele, tentando resgatá-lo de tais companhias...