O filme é repartido em 4 actos, escolhidos com a preocupação de encontrar uma linha comum, invisível, que una essas revoltas. Como se houvesse uma reacção química chamada revolta que pudesse ser analisada através de ratinhos brancos.
Género: (1) tudo começa por um pequeno incidente que não tem importância alguma; (2) alastra, amplia-se e generaliza-se de forma rotunda e decisiva; (3) a revolta bem sucedida leva à institucionalização da revolta que... (4) acaba por se corromper. Moral subliminar: não há revoltas puras e - se calhar - não vale a pena revoltar-se porque tudo conduzirá ao ponto de origem e à nova revolta que se seguirá.
Apesar desta ideia potencialmente paralisante, o filme é interessante porque relata revoltas que foram interessantes e porque estão no filme amplamente documentadas; porque essas imagens documentais são ricas no retrato do poder ao mostrar o duelo entre a violência da revolta e a repressão violenta cujas imagens superam qualquer análise; porque o realizador é dúbio nessa sistematização, ao colocar as revoltas em perspectiva e ao mostrar o valor da revolta, como uma nova realidade na realidade e que, por isso mesmo, acaba por revelar como as revoltas transformam a realidade de um dia para o outro, constituindo-se num factor universal de expansão das sociedades, mesmo que possam falhar. É um bom - e criativo - motivo de debate.
Vem isto a propósito de um recente artigo no Público do jornalista Jorge Almeida Fernandes sobre as rebeliões mundiais que tenta, de alguma forma, esse mesmo salto, mas acaba por ser um triste ensaio sobre a teoria geral de todas revoltas actuais... que, obviamente, não consegue encontrar.
O artigo é vazio em explicações gerais, embora nada inócuo.
O artigo releva as diferenças das revoltas: umas são levadas a cabo por jovens, outros por idosos. Os rastilhos são diferentes (!): o preço dos bilhetes de metro (Chile), das cebolas (Índia), das tarifas whatsApp (Argélia), garantias democráticas (Hong-Kong), resultados eleitorais (Bolívia)!! "Mas há um factor comum: a surpresa"(!). E são revoltas, não são revoluções. E a tecnologia substitui a ausência de líderes (!). E mais: ao não ter um programa, conduzem ao seu fracasso.
Há ainda um argumento falsamente económico:
"Quando o crescimento estagna, sobem a ansiedade e a frustração das mesmas classes médias – tanto nos países ricos como nos emergentes".Até já ouço o José Mário Branco às voltas no disco FMI, a imitar a conversa de café: "A culpa é do crescimento económico que não cresce..." Por que razão será que o "crescimento económico" não cresce? E mesmo que cresça, será que não cresce para todos? Não será isso uma ideia a explorar? Fica-se sem saber.
Cita-se Dominique Moïsi quando defende um "outro fio condutor para as contestações em curso":
“O que por toda a parte se exprime é a procura de dignidade e de respeito dos povos. Foram longamente humilhados, ignorados e desprezados pelas elites políticas, irresponsáveis, corruptas e longínquas.”E qual a razão dessa humilhação? Por que razão são as elites corruptas e distantes? Nada é desenvolvido. Parece que se quer evitar o elefante na sala: sim, há desigualdade, em nome de um projecto ideológico que é ineficaz em termos macroeconómicos, colectivos, mas muito eficaz quanto à apropriação privada de recursos públicos e à concentração da riqueza e direitos políticos em poucos cidadãos e grupos económicos ou de cidadãos. E que essa apropriação é mantida pelo exercício do aparelho do Estado que é colocado ao serviço do dispositivo gerador de desigualdade e de apropriação privado dos recursos públicos.
Ao contrário de outros artigos no mesmo sentido (ver aqui), o autor esquiva-se em todo o artigo sobre as revoltas a referir uma única vez a palavra neoliberalismo - que, na verdade, é uma simplificação das políticas económico-sociais que se densificaram desde a segunda metade do século XX, geradoras de um corpo de ideias que sustenta a transferência de rendimento dos mais pobres para os mais ricos, gerando mais desigualdade na desigualdade já existente na repartição do rendimento, tudo em nome de um investimento privado futuro e dos seus lucros, maximizado na ideia simplista "são as empresas que criam emprego".
E essa omissão parece apontar para uma ideia-base: não se procure apenas analisar as revoltas tendo como origem esses factores - como faz uma certa esquerda monolíquida - porque há mais revoltas e, como não há uma causa comum para todas, então de que vale criticar o neoliberalismo como causa?
Interessante verificar que as dúvidas que os cientistas poderão ter não as têm quem está no poder a querer executar esse ideário ineficaz. Veja-se o caso no Brasil em que Carlos Guedes e Jair Bolsonaro tentam à viva força - e de forma brutal e desumana - aprovar legislação que cerceie os direitos constitucionais para evitar que o efeito chileno ou boliviano contamine o Brasil, mesmo que seja matando e criminalizando as manifestações de rua, de protesto social, como algo que nada tem de democrático.
“Sejam responsáveis, pratiquem a democracia. Ou democracia é só quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua?”, disse Carlos Guedes.Algo que, aliás, já aconteceu no Chile de Pinochet quando o ideário da escola de Chicago pôde ser aplicado sem oposição, porque reprimida pelas forças repressivas do Estado, em nome do tal ideário que supostamente devia gerar felicidade colectiva. Veja-se o documentário Chicago Boys, para perceber que nenhum desses economistas norte-americanos convidados pelo regime chileno se apercebeu da repressão então levada a cabo...
Ou seja, cada vez mais parece haver o efeito circular de resultados negativos que, em vez de conseguir auto-justificar a vaga seguinte de medidas desiguais, acaba por gerar a perpetuação de baixa qualidade de vida colectiva que, resultando em frustração, ansiedade e impotência individuais, rebenta colectivamente ao mínimo protesto. Cercear bem-estar de forma violenta, através dos meios repressivos do Estado, usados como braço armado da desigualdade de direitos, apenas gera a acumulação da mesma força em sentido contrário, já impregnada da memória de experiências e de referências, a qual rebenta naquilo a que se chama revolta.
Como é que alguém com tanto conhecimento, não repara que - só por teimosia - gerou uma falsa complexidade para chegar a uma conclusão tão vazia e desinteressante?
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