sábado, 15 de abril de 2017

Quaresmas passadas


Lembro-me de uma quaresma perdida algures no tempo. Decorria a semana santa e eram projetados numa tela colocada no altar principal da igreja, nos finais de tarde, episódios de uma série sobre a vida de Cristo, que culminava com a paixão e ressurreição. Os momentos mais impressivos eram, naturalmente, os que retratavam a via sacra, a flagelação e a crucificação. Conhecendo bem o argumento, lembro-me de sentir uma angústia crescente à medida que se aproximavam os momentos mais violentos, acompanhada do desejo de que estes passassem e dessem lugar àquela paz que a Páscoa instala, como se de um ansiado pós-guerra se tratasse. Recordo os soluços que se ouviam durante a exibição dos «mistérios dolorosos», e que vinham sobretudo da parte de trás da igreja, mais envolta na escuridão, dos lugares que as mulheres ocupam, algumas envoltas em xailes negros e a dedilhar terços durante a projeção.

No rosto dos mais novos espelhava-se um misto de angústia e medo silenciosos, que davam lugar a um crescente sentimento de culpa. Sim, era-nos explícita e implicitamente incutido que também nós tínhamos culpas naquele cartório. Que aquele nazareno flagelado e crucificado tinha morrido por nossa culpa, para nos salvar, ainda que nada lhe tivéssemos pedido. E era assim inevitável não sentirmos em cada flagelo, em cada espinho e em cada prego o gesto cruel da mão dos nossos pecados. Era pois a minha culpa que aquele homem também carregava, a culpa dos pecados que já tinha cometido e dos que ainda iria cometer. A minha culpa, a nossa culpa, a culpa deles, a culpa de todos, mortos, vivos, nascidos e vindouros. Lembro-me de um dia ter chegado a pensar que, assim sendo, talvez pudéssemos pecar livremente, uma vez que estava tudo pago por adiantado.

Demorei a perceber que a Igreja, em sentido demasiado lato, necessitava da culpa para formatar o seu sentido do mundo como o diabo de almas para encher os infernos. Levei tempo a perceber que um Deus que reconhecesse como tal, a existir, não era aquele. Precisei de tempo, e literalmente de distância, para dar conta do absurdo que há em pensar num Deus assim, que sacia o seu sentido de justiça com sofrimento, pago pela humanidade. Ou melhor, pelo seu filho, na impossibilidade de esta o fazer. Percebi que este Deus se assemelhava a um merceeiro sádico, incapaz de perdoar sem castigo, de compreender e aceitar as fragilidades da natureza humana sem a compensação e o deleite proporcionados pelo sofrimento físico e espiritual dos seres. Um Deus assim, apaziguado pelo sofrimento, foi-se tornando cada vez mais estranho, ausente e inconcebível. Não estou a falar do Deus do Velho Testamento, porque é este o significado e a doutrina que ainda hoje - apesar do Papa Francisco - se apresentam para a paixão e ressurreição de Cristo. É isto a remissão dos pecados, é disto que se trata quando se fala em redenção.

A história de Cristo como a história de um homem que nos legou um código ético admirável e intemporal, independentemente da dimensão religiosa que o envolve, foi-se convertendo na interpretação mais sensata para o entender na história do mundo e dos homens. Face ao contexto social, cultural e religioso, é sobretudo a dimensão subversiva do seu discurso e da sua prática - e o modo como afrontou leis e instituições, religiosas e políticas - que constitui a explicação mais plausível para a sua condenação à morte, sem necessidade de recurso a insondáveis desígnios divinos. Aliás, a insondabilidade dos desígnios divinos sempre me soou a justificação tosca para a ausência de sentido das coisas. Cristo morrera condenado na cruz por subversão, como tantos do seu e de outros tempos, às mãos da mesma violência e crueldade.


(A versão original deste escrito remonta a março de 2004, suscitada pelo filme de Mel Gibson, «A Paixão de Cristo», que recuperava - como talvez nenhum outro filme o tenha feito - o Deus da culpa e do sofrimento, do ajuste de contas e do castigo, da instigação contra o mal, uma vez estabelecida a divisão maniqueísta entre bons e maus, convertidos e infiéis, iluminados e bestas satânicas. Curiosamente, o filme surgia no tempo das «armas de destruição maciça» e da invasão do Iraque, do «eixo do mal» e da Cimeira das Lajes. Imbuído, portanto, do espírito do tempo).

4 comentários:

Jaime Santos disse...

Parece-me que está a ser algo injusto com o Cristianismo ao querer reduzir a doutrina da expiação dos pecados da Humanidade por Cristo na cruz a um mero instrumento de manipulação da culpa dos crentes. Porque, tanto quanto eu a entendo, pelo menos, a Paixão procura igualmente tornar o sofrimento, não apenas o Mal moral, mas igualmente o Mal físico, bem mais difícil de apreender, inteligível. Orwell escreveu uma vez, num ensaio chamado 'linguagem religiosa', creio, que o problema do Socialista com a transcendência começa depois de saciada a fome das pessoas. O Homem procura inevitavelmente sentido para uma existência que não parece tê-lo e depara-se aí com a agonia (combate, em Grego) do Nazareno. Era o Jesus histórico mais um dissidente político e religioso que se revoltava contra as injustiças do seu tempo e que deixou um legado em que se construiram as principais doutrinas político-filosóficas do Ocidente (incluindo aquelas que aparentemente o rejeitaram)? Se calhar era, mas a Fé dos crentes dá a esse seu combate uma dimensão metafísica que vai para além da simples procura da Justiça, comum a todos os seres humanos, e que se projeta naquilo que Unamuno chamou a fome do Homem pela Imortalidade...

José Fontes disse...

O nosso troll José meteu férias pascais.
Mas não deixou de trabalhar.
Ora leiam este seu artigo no jornal online Observador:
«Mas quem haveria de pagar?»
João Pires da Cruz
http://observador.pt/opiniao/mas-quem-haveria-de-pagar/
Reparem bem no sorriso de palerma e nos olhinhos de estúpido.
Grande cromo.
E o que é que poderia sair no artigo?
Mais uma peça da «teoria económica da merda», investigação a que o cromo se dedica desde há algum tempo para dar um contributo para a consolidação da economia de casino.
Que conclui o cromo?
Que os beneficiários do apoio do Estado à banca não foram os accionistas, nem os gestores, nem os trabalhadores bancários, fomos nós, que metemos o dinheiro dos nossos impostos mesmo que não tenhamos contas nem poupanças nos bancos.
Brilhante!
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Nota: Este é o José deste blogue.
No blogue Aventar é JgMenos - nickname que já usou aqui, por engano, e que, ao ser desmascarado, não negou que era a mesma pessoa.
Em tempos, quer no extinto blogue Arrastão, quer no ainda vivo Quarta República, que deixou de frequentar ultimamente, usava o nickname Tonibler.
O troll tem uma imaginação fértil.

Anónimo disse...

Tenho muita dificuldade em aceitar a existência de Cristo como “divindade” ou como “excelso” estou mais virado para o que o filósofo logico, Bertrand Russel, desenvolveu no seu livro “Porque não sou cristão”. Quanto às Quaresmas passadas, e já la vão 78, só vos digo que o homem, com ou sem batina, foi e´ e vai continuar a ser o único criador de deuses e aproveitador, por mal ou por bem, dos desígnios da Natureza. Se calhar há ainda quem acredite na separação das águas do Mar Vermelho! de Adelino Silva

Filipe Martins disse...

Eu, que não acredito em deuses, sinto necessidade de lhe apontar uma contradição, que o é pelo menos no meu entender:

«Percebi que este Deus se assemelhava a um merceeiro sádico, incapaz de perdoar sem castigo, de compreender e aceitar as fragilidades da natureza humana sem a compensação e o deleite proporcionados pelo sofrimento físico e espiritual dos seres.»

Não tenho simpatia pelo Soares dos Santos, mas quem torturou e assassinou Cristo não foi deus nenhum. Foram os mui humanos nós mesmos.

Sim, eu sei, «nós» não estávamos lá. Mas se se transportassem 10 mil de «nós» para esses tempos, imbuídos da mesma mentalidade e valores, o Cristo estava fxxxdo na mesma.

Neste ponto, acho que a Igreja tem razão.