quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Qual é o preço a pagar pelo poder das grandes empresas?

Este é o quarto de uma série de cinco textos sobre o que aprendemos acerca da inflação nos últimos três anos e o que podemos esperar para os próximos tempos. Os anteriores podem ser lidos aquiaqui e aqui.

Desde o início da guerra na Ucrânia, que fez disparar os preços da energia e de alguns bens alimentares, as cinco maiores petrolíferas cotadas do mundo – BP, Shell, Chevron, ExxonMobil e TotalEnergies – registaram lucros de 281 mil milhões de dólares e os dividendos distribuídos aos acionistas bateram recordes. Ao mesmo tempo, as maiores empresas comercializadoras de produtos agrícolas viram os seus lucros triplicar. Enquanto a maioria das pessoas enfrentava dificuldades para aquecer as casas e pagar a fatura do supermercado, multiplicavam-se os anúncios de lucros recorde por parte das principais empresas. O pior dos tempos para uns era o melhor dos tempos para outros. Como é que se pode explicá-lo?

No artigo “Sellers’ inflation, profits and conflict: why can large firms hike prices in an emergency?”, publicado no ano passado e descrito neste blog pelo Pedro Pratas, Isabella Weber e Evan Wasner apresentam uma caracterização detalhada do papel das empresas no fenómeno inflacionista. Em condições normais, as empresas evitam aumentar preços de forma unilateral devido ao receio de perder clientes para vendedores que concorrem no mesmo mercado. No entanto, há períodos em que este cenário se altera. Quando um choque num período específico gera um aumento dos custos das empresas num determinado setor, se estas quiserem manter as taxas de lucro inalteradas, terão de aumentar os preços que cobram em simultâneo.

Neste contexto, como todas as empresas do mesmo setor aumentam os seus preços, nenhuma corre o risco de perder clientes para a concorrência. Além disso, o tipo de constrangimentos da oferta que se registaram nos últimos anos, amplamente noticiados pelos meios de comunicação e referidos pelas empresas, contribuem para a sensação de “legitimidade” das subidas de preços. Desta forma, estes choques acabam por aumentar de forma temporária o poder das empresas para aumentar os preços sem afastar clientes.

Weber e Wasner resumem o surto inflacionista em três fases:

    • Impulso: constrangimentos da oferta de matérias-primas indispensáveis para muitas atividades económicas dão às (grandes) empresas desses setores um poder temporário para aumentar preços;

    • Propagação e amplificação: as empresas dos restantes setores procuram proteger (ou aumentar) as margens de lucro, aumentando os preços em simultâneo;

    • Conflito: os trabalhadores procuram recuperar, pelo menos em parte, o poder de compra através da negociação dos salários.


A chave para o desfecho deste processo reside no poder relativo de cada parte. Num contexto em que as taxas de sindicalização caíram para mínimos históricos e que a precariedade aumentou após as vagas de desregulação laboral, os trabalhadores têm muito menos poder para tentar proteger o seu poder de compra.

Por outro lado, o poder das maiores empresas tem vindo a aumentar. A crescente concentração dos mercados num pequeno conjunto de grandes empresas facilita a coordenação (mesmo que implícita) dos aumentos de preços em contextos em que há constrangimentos na oferta. Sem surpresa, os lucros extraordinários registam-se sobretudo em setores com características oligopolistas, como o setor da energia, dominado pelas grandes empresas de combustíveis fósseis, ou o setor agro-industrial, onde as cinco maiores empresas controlam 70% do comércio internacional.

Vale a pena regressar ao caso do chocolate, discutido no texto anterior. Se, por um lado, os pequenos agricultores nos países africanos que são responsáveis pela maior parte da oferta mundial de cacau enfrentam condições bastante precárias, o aumento dos preços do chocolate contribuiu sobretudo para engrossar os lucros de multinacionais como a Montelez (que fabrica os Toblerones e as bolachas Oreo), a Ferrero, a Mars ou a Lindt. Depois de já terem acumulado lucros avultados em 2023, estas empresas distribuíram, em média, 97% dos ganhos em dividendos aos acionistas. A subida acentuada dos preços tem impactos muito diferentes ao longo da cadeia de distribuição.

De uma forma geral, no conflito distributivo inerente à inflação, os trabalhadores foram os derrotados. Os dados publicados pelo BCE mostram que os lucros das empresas aumentaram de forma mais acentuada do que os salários na maioria dos setores entre o início e o auge do período inflacionista. Alguns estudos empíricos (aqui, aqui ou aqui) sugerem que as empresas conseguiram proteger as suas margens ou até, em alguns casos, aumentá-las. A presidente do BCE, Christine Lagarde, disse que a recuperação do consumo no pós-pandemia e os constrangimentos da oferta “deram às empresas mais margem para testar os consumidores com preços mais elevados”.


O que isto nos indica é que uma política progressista de combate à inflação também tem de ter em conta o conflito distributivo inerente. Contextos de crise e de escassez de produtos dão às maiores empresas uma oportunidade para obter ganhos avultados. Nesses contextos, justificam-se medidas como a limitação das margens de lucro (como aconteceu em Portugal, no início da pandemia, com a venda de máscaras e álcool-gel depois de os seus preços terem disparado) ou a introdução de impostos sobre lucros extraordinários.

Além de repensar o combate à inflação, os problemas que as economias enfrentam atualmente sugerem que se deve reavaliar a política económica de uma forma mais abrangente. Esse será o tema do último texto desta série.

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