Este é o terceiro de uma série de cinco textos sobre o que aprendemos acerca da inflação nos últimos três anos e o que podemos esperar para os próximos tempos. Os anteriores podem ser lidos aqui e aqui.
A mudança de ano costuma trazer mudanças de preços e 2025 não é exceção. O Expresso noticiou recentemente o caso do café: alguns empresários avisam que os preços deverão subir em janeiro para compensar a subida dos custos com os fornecedores. Vale a pena olhar com detalhe para este fenómeno, por aquilo que nos diz sobre o que podemos esperar da inflação nos próximos anos.
Os preços do grão de café nos mercados internacionais atingiram em novembro do ano passado o valor mais alto em quase 50 anos. A explicação para esta enorme subida dos preços está no clima: o Brasil (um dos principais produtores mundiais de café) foi assolado por um período de seca particularmente severa no verão, ao qual se seguiram chuvas extremas em outubro, afetando as colheitas. Este tipo de fenómenos também afetou a produção no Vietname, outro dos maiores fornecedores do mundo. Num produto com elevada procura como o café, a escassez da oferta levou ao aumento do preço dos grãos e os efeitos vão repercutir-se no preço que pagamos nos cafés ou no supermercado.
Este é apenas o último exemplo de como os fenómenos meteorológicos extremos, que têm sido amplificados pelas alterações climáticas, estão a afetar a produção agrícola e, com isso, os preços que pagamos pelos produtos. O índice produzido pela Bloomberg para os preços agrícolas, que rastreia a evolução do custo dos produtos usados na pecuária e na produção de alimentos, registou em setembro a maior subida desde a invasão russa da Ucrânia, devido ao impacto que as secas e chuvas severas têm tido na produção de produtos como o açúcar, os cereais ou o café.
Esta tendência também já tinha sido registada, no início de 2024, com o cacau. As más colheitas nos dois principais produtores – Gana e Costa do Marfim –, devido à sucessão de chuvas intensas e períodos de seca severa, que agravaram a propagação de doenças e prejudicaram as plantações, levaram a uma escassez histórica de cacau e a uma subida dos preços nos mercados internacionais. A subida acentuou-se devido à dinâmica dos mercados financeiros, onde os especuladores começaram a apostar que os preços subiriam ainda mais.
Fonte: The Wall Street Journal
A variação do preço do cacau afeta os custos de um dos produtos mais consumidos nesta altura do ano – o chocolate. O preço dos chocolates nos supermercados e nas lojas tem aumentado um pouco por todo o mundo. Em Portugal, o diretor da Arcádia afirmou que “a magnitude do aumento do preço do cacau, que em abril esteve cotado ao triplo do preço a que estava em janeiro, obrigou-nos a ajustar os preços e as gramagens de alguns produtos".
O que é certo é que este tipo de choques que provocam disrupções na produção alimentar se têm tornado mais frequentes devido às alterações climáticas. Os preços do azeite aumentaram entre 50% a 70% desde o ano passado, em grande medida devido à seca e às ondas de calor seco que afetaram os países do sul da Europa. No Reino Unido, os níveis de precipitação acima da média alagaram os solos e afetaram a produção de vegetais e frutas. Os preços do sumo de laranja bateram recordes este ano depois dos fenómenos meteorológicos extremos que atingiram as colheitas no Brasil e na Flórida terem reduzido a oferta de laranjas. E a lista podia continuar.
Um estudo publicado este ano por investigadores do Banco Central Europeu concluiu que, em 2022, as temperaturas recorde registadas no verão aumentaram a inflação dos alimentos entre 0,43 a 0,93 pontos percentuais. E os investigadores avisam que “estes impactos podem ser acentuados nos próximos vinte anos pelas alterações climáticas”. Com o aquecimento projetado para o continente nos próximos anos, poderá haver um aumento da taxa de inflação dos alimentos de até 3,2 pontos percentuais, o que levaria a uma subida de até 1,2 pontos percentuais na taxa de inflação total.
Este fenómeno pode ser descrito como “shockflation” – inflação provocada por choques que afetam a produção (e os preços) em setores específicos e depois se repercutem no resto das atividades económicas que dependem destes. Foi isso que esteve na origem da subida generalizada dos preços nos últimos anos. A disrupção das cadeias de produção, primeiro provocadas pelos períodos de confinamento e depois amplificadas pela guerra na Ucrânia, geraram um aumento expressivo dos preços da energia (petróleo e gás) e de bens alimentares como os cereais, que foram os principais motores da inflação registada. Sobre este fenómeno, vale a pena ler economistas como Joseph Stiglitz, Isabella Weber, James Galbraith ou Servaas Storm.
Com o impacto das alterações climáticas e o acentuar de tensões geopolíticas, é provável que este tipo de choques se torne mais frequente no futuro. Se os preços da energia já eram tipicamente voláteis, há novos focos de vulnerabilidade. Os custos de transporte são um bom exemplo: a redução dos níveis de água no canal do Panamá tem limitado o número de navios autorizados a atravessá-lo, enquanto os ataques a navios no Médio Oriente criaram incerteza sobre a travessia no canal do Suez; em ambos os casos, os constrangimentos ao transporte afetam as cadeias de distribuição globais.
Outro exemplo é o das matérias-primas críticas: face à possibilidade de novas tarifas aduaneiras impostas por Trump, a China anunciou que iria proibir as exportações dos minerais gálio e germânio para os EUA. Estas matérias-primas são necessárias para a produção de inúmeros produtos, desde smartphones a semicondutores ou painéis solares, e a China é o maior produtor mundial (no ano passado, foi responsável por 60% da produção mundial de germânio e 80% da produção de gálio). Restrições mais significativas podem traduzir-se num aumento dos preços dos produtos que dependem destas matérias-primas.
O BCE parece estar ciente destes riscos. No ano passado, a presidente do banco central, Christine Lagarde, reconheceu que estes choques inflacionistas colocam desafios novos e existem respostas diferentes dos bancos centrais para assegurar a estabilidade dos preços. No entanto, o principal problema é que as taxas de juro não são o instrumento adequado para lidar com choques do lado da oferta, pelo que não são os bancos centrais que são a instituição adequada para lhes responder.
Os riscos colocados pelas alterações climáticas e pelas tensões geopolíticas requerem medidas alternativas. Propostas como a criação de stocks de reserva de bens alimentares e matérias-primas, que permitam aos países estabilizar a oferta e evitar oscilações excessivas dos preços, voltaram a estar em cima da mesa (nos EUA, já existe uma reserva estratégica de petróleo para este efeito). A isto, juntam-se os investimentos na transição energética: investimentos em áreas como a ferrovia, a renovação de edifícios ou a descarbonização da indústria permitem reduzir a dependência dos combustíveis fósseis e reduzir a exposição a choques de preços destas matérias-primas.
Para que o combate à inflação seja socialmente justo, também é preciso que se reconheça o conflito distributivo inerente. Os últimos anos tornaram mais claro o enorme poder das maiores empresas para definir aumentos de preços e proteger (ou aumentar) as suas margens de lucro em contextos em que a maioria das pessoas atravessa dificuldades. O próximo texto aborda em mais detalhe este fator.
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