As alterações aprovadas pelo governo em matéria de reclassificação de solos, visando converter rústicos em urbanizáveis, não constituem apenas um retrocesso grave nas práticas e instrumentos de planeamento e ordenamento do território. Traduzem, igualmente, uma opção ineficaz e contraproducente face ao objetivo pretendido (aumentar a oferta de terrenos para baixar o preço das casas). E revelam, por último, um desconhecimento da natureza da atual crise de habitação ou, pior ainda, uma irresponsável cedência a interesses alheios à defesa do bem-comum.
O facto de o número de alojamentos e de famílias quase não se ter alterado na última década, mesmo em contextos onde a pressão da procura é maior, deveria bastar para assumir que o cerne do problema não está na falta de casas e de terrenos, mas sim no surgimento de novas procuras de habitação, internas e externas, que encaram os alojamentos como um investimento (para fins turísticos ou rentabilização de poupanças). São as novas procuras, tendencialmente especulativas e potencialmente inesgotáveis, que explicam o essencial da crise. Por mais que se construa, não é líquido que os preços baixem e melhore o acesso das famílias a uma habitação compatível com os seus rendimentos.
Note-se, aliás, que não só o governo apenas exige que 70% da construção em terrenos hoje rústicos que passam a urbanos resulte em fogos a preços ditos «moderados», como o próprio conceito de «moderado» é ilusório, dado que o respetivo valor de referência é o da mediana do preço praticado no mercado (já de si elevada e a aumentar de forma consecutiva) e não o rendimento das famílias. Mais: como assinala António Leitão Gil, a indexação à mediana nacional e do concelho permite até, em alguns casos, que os preços de venda possam subir ainda mais, reforçando o efeito de «arrastamento» que já hoje se verifica, impulsionado pelo maior poder aquisitivo das novas procuras.
Como já acontece com o conceito de «renda acessível», não é a indexação aos preços (com a fixação de um patamar de 20% abaixo do valor do mercado), compensada com benefícios fiscais para o proprietário, que torna os alojamentos verdadeiramente acessíveis para as famílias, uma vez que os seus rendimentos não acompanham a subida das casas. O desalinhamento significativo e crescente entre os preços da habitação e os rendimentos dos agregados - que se regista desde 2013, em virtude do surgimento das novas procuras - na prática esvazia de sentido, para as famílias, a ideia de preços «acessíveis» ou, na formulação do atual governo, a ideia de «preços moderados».
Como se não bastassem os recuos do governo em matéria de regulação (como sucede no caso do Alojamento Local), a par da centralidade atribuída às medidas de subsidiação da procura e da oferta, cujos efeitos são já percetíveis na recente aceleração da subida de preços, o governo avança agora - embalado pela ideia, tão simplista quanto errada, da «falta de casas» - para uma transformação urbana de solos rústicos segundo uma lógica de «bar aberto». Isto é, sem cuidar de aferir das reais necessidades, em cada concelho, de recorrer a solos rústicos para, complementando as necessárias políticas de regulação, responder à crise de habitação.
Em vez de reforçar as políticas de reabilitação do edificado existente nos espaços urbanos, através de incentivos à regeneração e penalizações fiscais no caso de devolutos (em Lisboa são cerca de 26 mil os fogos que estão vagos sem ser para vender ou arrendar), e de promover a construção em solo já classificado como urbanizável, o governo opta por incentivar a edificação em áreas agrícolas e florestais, fomentando lógicas de expansão urbana dispersa e gerando deseconomias onerosas tanto em termos ambientais como de tempos de transporte, qualidade de vida, custo de novas infraestruturas e agravamento da segregação socioespacial.
O que está em causa, com as alterações do governo, é a «mudança estrutural» de que fala o ministro Castro Almeida. Só que se trata de uma mudança estrutural de profundo retrocesso, ao subverter - como oportunamente assinalou Helena Roseta - princípios basilares do regime jurídico em vigor desde 2015, orientado para inverter a tendência, que prevaleceu nas últimas décadas, «de transformação excessiva e arbitrária do solo rural em solo urbano», tendo em vista «contrariar a especulação urbanística, o crescimento excessivo dos perímetros urbanos e o aumento incontrolado dos preços do imobiliário». E com a agravante de o governo não resolver, mas sim piorar, a crise de habitação, privilegiando o rentismo fundiário e a especulação.
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3 comentários:
O regime atual tinha como objetivo cristalizar a situação atual. É fundamental continuar a planear cidade. É exatamente isto que a alteração faz. Sendo que ao contrário do que é afirmado, está em linha com as melhores práticas internacionais ao criar condições para o crescimento urbano ser ordenado. A alternativa é continuar a fingir que está tudo bem e que vamos resolver o problema da falta de casas recorrendo à reabilitação que tem custos por m2 muito mais elevados. A quem está contra esta lei eu só pergunto. Como vão disponibilizar mais casas a custos acessíveis. Onde, quantas e a que custo. Mas têm de o demonstrar com factos, não teorias.
E para agravar, segundo a legislação que regula as habitações a custos controlados, qualquer pessoa que compre uma habitação pode vende-la passados 5 anos sem qualquer limite ou regulação ao preço de venda... já se está a ver o filme, os tais investidores rapinadores a compra-las para as meter 5 anos no mercado de arrendamento a "render" e de seguida venda a preços de mercado!!! Já devem estar a esfregar as mãos!
Nao ha falta de casas em Portugal.
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