quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Censos, alojamento local e crise de habitação (III)

Um dos resultados que mais surpreendem nos dados preliminares dos Censos de 2021 tem que ver com a diminuição do número de alojamentos em Lisboa na última década. De acordo com a informação censitária, trata-se de uma variação negativa inédita face aos censos anteriores e que traduz uma perda de cerca de 7 mil alojamentos face aos recenseados em 2011. Isto é, uma redução do número de habitações na ordem dos -2,1%, valor que contrasta com a variação registada, no mesmo período, na AML e no continente (com acréscimos, respetivamente, de +0,5% e +1,4%).

Uma das razões que explicam esta quebra (como já assinalámos aqui e aqui), tem que ver com o impacto do alojamento local na estrutura residencial da cidade, e de forma particular nas freguesias do seu centro histórico (nomeadamente Misericórdia e Santa Maria Maior), onde o peso relativo das unidades de alojamento local, no total do alojamento residencial e turístico (AL), oscila, nessas freguesias, entre os 30% e 40%, sendo também significativo (superior a 10%) nas freguesias de Santo António e de São Vicente.


Globalmente, o que se constata é que se, no limite, toda a oferta de alojamento local fosse destinada a habitação, Lisboa não teria registado as perdas de alojamentos que registou na última década, antes se verificando um aumento na ordem dos 12 mil fogos (+3,7%), face a 2011. O que significa, por seu turno, que para ter mantido, em 2021, o número de fogos de 2011, teria seria necessário que o atual número de unidades de alojamento local na cidade se situasse em 12 mil e não em 19 mil. Isto é, que representasse cerca de menos 1/3 da oferta atualmente existente.

Sabemos bem, é claro, que o alojamento local permitiu recuperar muitos fogos devolutos que, de outro modo, se teriam provavelmente mantido nessa situação. Tal como é inegável o contributo do alojamento local para a reabilitação e revitalização urbana, o turismo e o emprego e, de modo mais amplo, a economia da cidade. Mas a verdade é que também se torna evidente, face a estes dados, que Lisboa dispunha de um potencial de oferta que poderia ter sido mobilizado, pelo menos em parte, para fins habitacionais, mas que acabou por ser reorientado, de forma concentrada e excessiva, para a função turística, comprometendo o acesso à habitação. O equilíbrio é de facto, nestas matérias, um princípio essencial a acautelar.

7 comentários:

TINA's Nemesis disse...

No Ladrões já se enalteceu Viena como um exemplo de política de habitação…

https://ladroesdebicicletas.blogspot.com/2020/12/combates-pela-historia-da-economia.html

… será que não é altura de nós pensarmos seriamente em seguir o exemplo Vienense?
Viena tem turismo mas não foi o turismo que permitiu dar habitação com condições dignas à população, não foi o turismo que acabou (se existiam) com os prédios devolutos, é extremamente raro encontrar prédios devolutos em Viena…
Viena é ano após ano considerada a melhor cidade para se viver, e não é uma cidade cara.
Acham mesmo que isto não tem a ver com a política de habitação?

Eu sei, aquilo que se alcançou em Viena foi o resultado de um certo contexto, num tempo em que os Socialistas deixaram marcas profundas na cidade, marcas que perduram mesmo nestes tempos neoliberais... mas não será caso que nós chegamos a um tempo em que necessitamos de soluções ambiciosas pois tal é a magnitude dos problemas?

É desolador ver uma sociedade com graves problemas e mesmo assim a indolência da população se mantém, devem estar à espera que o Deus “mercado” os acuda...

Como eu gostava que a ambição dos Socialistas Vienenses dos anos 20/30 do século passado fosse realidade em Portugal, mas este país só merece “socialistas” como António Costa, Francisco Assis…

Anónimo disse...

"Lisboa dispunha de um potencial de oferta que poderia ter sido mobilizado, pelo menos em parte, para fins habitacionais, mas que acabou por ser reorientado, de forma concentrada e excessiva, para a função turística, comprometendo o acesso à habitação. O equilíbrio é de facto, nestas matérias, um princípio essencial a acautelar."
Falta dizer como.
Com os preços dos terrenos e dos locais devolutos a serem fixados pelo mercado imobiliário sem contrapesos e com a impossibilidade de se construir fogos com áreas decentes não se consegue ser competitivo para a classe média que encontra mais barato na periferia, não se consegue construir para as classes baixas porque é impossível em construção nova ou renovada manter preços de 100 a 200€ por apartamento, e ninguém da classe alta pensa sequer em viver num apartamento com menos de 50 m².
O AL local não é o único ator na cidade, existem também hotéis a ocupar parte significativa da cidade.
Junte-se a isto que está a acontecer no centro da cidade o que acontece no interior: os serviços de apoio à população, como escolas, centros de saúde, bancos, estações de correio desaparecem por falta de clientes o que leva a que os lugares ainda percam mais atratividade, o que leva à diminuição de população e ao fecho de mais serviços.

Anónimo disse...

Gostei do comentário do TINA's Nemesis.

De facto, já se construía/reabilitava habitação em maior escala, mas a preços de venda mais próximos do custo de produção e não com as margens abusadas que andam por aí. De facto, o setor público devia fazer muito mais, como neste blog já se referiu várias vezes. Estamos à espera de quê para uma política dessas a sério aparecer num programa político? Isso teria enorme aderência eleitoral.

Jose disse...

Equilibrem as leis de arrendamenteo/alojamento e o mercado faz o resto.
Porem os senhorios a fazer segurança social é a negação do Estado Social e confirmação do Estado predador.

Anónimo disse...

Será possível comparar Viena com Lisboa, neste contexto?
Foi Viena uma cidade onde existiram barracas nas periferias, como aconteceu em Lisboa nos anos setenta? Houve casos análogos em Viena como aquilo que aconteceu no Alto dos Moinhos ou Bairro de Serafina?
Será melhor, talvez, entidades como TINA e outros pensarem com os pés assentes nesta cidade e nesta terra portuguesa, onde a ganância fala mais alto em tempos de mercado e especuação.
Se continuarmos assim, Lisboa será uma cidade fantasma.

Anónimo disse...

Essa dos senhorios a fazer segurança social é de rir às gargalhadas. A maior parte apenas se dedica à cobrança das rendas. Quanto a obras ou ajuda ao arrendatário é para dia de São Nunca, à tarde.

Anónimo disse...

Caro amigo Nuno Serra, veja hoje no telejornal da manhã da RTP-1 o caso dos moradores do bairro do Bonfim, no Porto, como exemplo daquilo que arrendatários têm de sofrer à conta de senhorios desonestos e sem escrúpulos. A peça de reportagem deve ser repetida pelos telejornais da RTP-1, hoje, dia 6 de setembro de 2021. Um abraço e bom trabalho.