"Bazuca", "dragon ball", "passo histórico". As metáforas superlativas para caracterizar o novo programa de quantitative easing (QE) europeu têm sido muitas, mas as certezas em relação ao seu impacto efectivo são bastante menos. É normal que assim seja: estão em causa mecanismos complexos num contexto que é ainda mais complexo. Na minha análise, o QE europeu não é exactamente o que parece. Não é uma bazuca, não tem uma escala sem precedentes e provavelmente não dará origem a uma expansão da massa monetária. Mas do ponto de vista político é um passo importante em direcção a uma solução possível para parte dos problemas da zona Euro. Vamos por partes.
O QE não é bem o que parece
À primeira vista, o novo programa de QE é uma programa não-convencional de expansão monetária, uma forma do BCE imprimir Euros a uma escala sem precedentes de modo a aumentar a oferta de moeda e actuar de forma contracíclica sobre a procura, estimulando a actividade económica na zona Euro e afastando o espectro da deflação.
Claro que não se trata de imprimir Euros literalmente, mas metaforicamente. A criação de moeda ocorre de forma escritural, através da concessão de créditos ao bancos (reservas adicionais que estes passam a deter junto do BCE) em troca de títulos da dívida pública de estados de zona Euro e de títulos de participação no BEI e em fundos como o Mecanismo de Estabilidade. Nesse sentido, o BCE propõe-se expandir a chamada base monetária, agregado monetário que é constituído pela soma das notas e moedas físicas com as reservas detidas pelos bancos junto do banco central.
E é aqui que encontramos o primeiro aspecto em que o QE não é o que parece: não é uma expansão da base monetária a uma escala sem precedentes. Os valores anunciados (€60 mil milhões por mês, €1,1 biliões no total) não representam uma mudança de paradigma ou alteração radical face à escala das expansões da base monetária da zona Euro levadas a cabo pelo BCE nos últimos anos. Em particular, a concessão de créditos de baixo custo ao sistema bancário no âmbito do programa Long-Term Refinancing Operation, ou LTRO , em finais de 2011 e meados de 2012, correspondeu a um aumento da base monetária em cerca de 700 mil milhões de Euros em poucos meses, o que não está longe da escala do QE agora anunciado.
Esses aumentos da base monetária levadas a cabo pelo BCE nos últimos anos (bem visíveis neste gráfico da Statistical Warehouse do Banco Central Europeu) recordam-nos entretanto de uma outra coisa: que o Banco Central controla a base monetária, mas não a oferta total de moeda, a massa monetária existente. Esta última é maioritariamente constituída pelos depósitos de diferentes tipos, que constituem o essencial dos meios de pagamento existentes na economia e que, como já tive ocasião de referir, são essencialmente criados através da concessão de crédito por parte do sistema bancário. E como se vê neste outro gráfico do BCE, o aumento da base monetária em 700 mil milhões de Euros, ou cerca de 60%, no âmbito do LTRO - e a sua posterior contracção num montante mais ou menos equivalente - praticamente não tiveram qualquer efeito sobre trajectória da massa monetária em sentido lato (aqui representada pelo agregado M3, que inclui os diferentes tipos de depósitos bancários). Ou seja, exactamente como afirma a teoria da endogeneidade da moeda, o banco central controla a base monetária, mas não controla a oferta de moeda. Esta última não é exogenamente controlada pelas autoridades monetárias, mas endogenamente determinada pela dinâmica da economia e, em particular, pelas expectativas de procura.
Ora, tal como o crédito de baixo custo (1%) concedido aos bancos no âmbito do LTRO de 2012 não teve qualquer impacto sensível na oferta de moeda (e, consequentemente, na procura agregada) na zona Euro, a criação escritural das novas reservas que passarão para os balanços dos bancos no âmbito do QE também dificilmente se traduzirá num aumento da massa monetária, principalmente porque as perspectivas económicas e a procura de crédito não melhoraram desde então.
O que é, então?
Se o QE não é um mecanismo de expansão monetária como vem nos manuais e nem sequer é um aumento sem precedentes da base monetária, quer isso dizer que não tem grande relevância? Não. O QE é na minha opinião bastante relevante, só que de outras formas - e para as apreendermos devemos olhar para um outro aspecto deste programa: não a expansão da base monetária que ocorrerá quando forem criadas as reservas pelas quais são trocados os títulos, mas a própria aquisição dos títulos. E esta é importante, em primeiro lugar, porque representa um aumento razoável da procura no mercado secundário dos títulos de dívida pública (um pouco mais de 10% da dívida pública total da zona Euro, que ascende a qualquer coisa como 9 biliões de Euros), o que fará baixar ainda mais os juros nos mercados tanto primário como secundário de dívida pública. Depois de ter desencadeado a descida vertiginosa dos juros da dívida pública europeia com as suas diversas intervenções anteriores, sobretudo a promessa no âmbito do OMT de comprar dívida pública conforme viesse a ser necessário (não, não foi a austeridade ou o Governo português o que provocou a queda dos juros da dívida pública portuguesa), o BCE anunciou agora que vai mesmo começar a comprar dívida pública dos estados da zona Euro a uma escala significativa. Um programa de aquisição correspondente a 10% do mercado não é uma bazuca, mas é relevante - pelo que o custo do financiamento do estados vai reduzir-se ainda mais.
Mas o aspecto mais importante de todos, pelo menos a meu ver, é que este programa de aquisição de títulos de dívida pública constitui um primeiro passo no sentido da monetização da dívida pública acumulada na zona Euro. Como o João Galamba já explicou no Expresso, a aquisição de dívida pública no âmbito do QE implicará que parte (para já esses tais 10%, mais coisa menos coisa) dessa mesma dívida pública passará a ser detida pelo Eurosistema (BCE mais bancos centrais nacionais, como o Banco de Portugal) os quais, por sua vez, são propriedade dos estados. A consequência é que parte dos juros que vierem a ser pagos pelos estados sobre a dívida que contraíram regressará aos cofres dos próprios estados. Em termos do serviço da divida, é na prática equivalente a umhaircut - ainda que o stock total da divida se mantenha inalterado. E é também, a par da inflação, uma das escassas soluções concebíveis para o problema do enividamento acumulado na zona Euro.
Para já, é um processo de monetização da dívida, um quase-haircut,relativamente pequeno: €1,1 biliões são pouco mais de 10% do stock total de dívida pública da zona Euro. No caso português, os €20-24 mil milhões de que se fala também andam por volta dos 10% do stock total. A poupança estimada ao nível do serviço da dívida a que isto poderia dar origem - cerca de €800 milhões anuais - não são despiciendos para a realidade portuguesa, mas também são apenas cerca de um décimo do montante total dos juros anuais que pagamos actualmente. E além de ser pequeno, este programa de aquisição de activos está sujeito a um conjunto de condições, aliás ainda pouco claras, que provavelmente limitarão ainda mais o seu alcance. No caso português, por exemplo, os títulos de dívida pública já detidos pelo Eurosistema deverão limitar significativamente a possibilidade de aquisição de títulos adicionais. Para além disso, sabemos também que este programa, mesmo a esta escala e com estas limitações, está já nos limites do aceitável para a Alemanha e diga-se, do que é permitido pelos estatutos do BCE. Tão nos limites que imagino que só tenha passado devido à proximidade da subida ao poder pelo Syriza, ao jeito de uma cenoura acenada ao novo governo grego no caso de se portar bem.
Mas é ainda assim importante, quanto mais não seja por mostrar que o problema da dívida é, fundamentalmente, um problema político e não económico. O QE não é uma bazuca, não é uma injecção de liquidez a uma escala sem precedentes, e é provável que não tenha grande impacto na massa monetária. Mas é um passo no sentido da monetização da dívida europeia. É por aí que, a meu ver, é importante.
(publicado originalmente no Expresso online na 4ª feira passada)
3 comentários:
Belo artigo. Obrigado por explicar.
"Dragon Ball"? Já anda a circular nas "raves" do BCE? Segundo parece, é uma mistura de cocaína, ácido e outras substâncias parecidas.Nunca consumi, mas o efeito deve ser realmente semelhante ao que o "quantitative easing" provoca nos " liberal-mercadistas" de serviço: euforia,alucinações,"purple haze"...Depois, o efeito passa e está tudo na mesma...
Artigo excelente de esclarecimento.
permitam-m só acrescentar que parece-me mais um puzzle bobble.
o celebre nivel 8, muitos poucos passavam daí.dava sim, mas tinha que se meter mais um crédito.
Resta mesmo é saber quando vai rebentar esta bolha, pois ela acabava mesmo por rebentar :)
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