Sou um firme crente no progresso das sociedades, mas sei que há retrocessos que são fatais para muitos, se bem que eventualmente superáveis com ação coletiva persistente. Quando penso em retrocessos, penso, por exemplo, na ferrovia e no jornalismo, penso no jornalista Carlos Cipriano, no seu notável trabalho ferroviário ao longo de décadas no Público.
Sei que isto não vai lá com tudólogos, embora conseguir fazer ligações seja crucial, dado que a verdade talvez se encontre na totalidade. Há cada vez menos jornalismo especializado, como o de Cipriano. Lá está, retrocesso e logo melancolia.
Portugal acumulou um atraso fatal na ferrovia, fruto de uma política neoliberal, iniciada no cavaquismo, ao serviço do automóvel. Esta política decapitou conhecimento, capacidade de produção industrial e recursos localizados no meio de transporte do futuro. Os prejuízos foram multidimensionais: da fatura energética à poluição, passando pela balança corrente, pela qualidade de vida.
Da China a Espanha, sempre se soube participar na aventura de descoberta que é planear nesta área. No Portugal dominado pelas elites vende-pátrias, moderno era encerrar linhas e empresas industriais nesta fileira. Moderno era destruir a administração pública. Moderno era “desplanear”, expressão do saudoso engenheiro João Cravinho, logo em 1983.
Moderno era imitar os EUA. Afinal de contas, a muito influente Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, perdão, a Nova School of Business and Economics, passou a dominar com base na socialmente custosa americanização da Economia e da economia (economics e economy...), secando quase tudo à volta. Para isso, houve que destruir centros de conhecimento, como o Gabinete de Estudos Básicos de Economia Industrial (GEBEI) junto do ministério da Indústria.
Os economistas convencionais, com influência crescente nas políticas públicas, têm pesadas responsabilidades e contaminaram demasiados engenheiros, gente que tinha uma saudável cultura desenvolvimentista e que hoje fala tristemente na televisão e não só, como se tivesse engolido um mau manual de economia pública, com conversas sobre “incentivos” e “externalidades” e outras trampas genéricas, maleáveis pelos grandes interesses. A televisão é uma janela distorcida, bem sei, por isso deixei de ter e de ver. Tenho tido a felicidade de conhecer grandes engenheiros. Derivo, mas não muito.
Bom, só no comboio de alta velocidade, insisto, acumulámos um atraso que já vai em três décadas com Espanha, aqui ao lado. Para um país com a localização de Portugal é obra. O país tinha já de ter um eixo vertical, de norte a sul, com ligação à Galiza e à Andaluzia, mais um eixo horizontal ao centro, com ligação a Madrid. E Viseu, onde tenho raízes, repito, é a maior capital de distrito europeia sem ligação ferroviária desde 1989, ano fatídico em várias escalas, à sombra do qual se viveu e se sobrevive. Foi preciso odiar-se muito o povo deste país, de resto.
Com a austeridade permanente, imposta de fora e aceite pelas elites de dentro, tudo se tornou pior, já lá vão mais de duas décadas desde o mito do país de tanga, alimentado pelo fulano que foi para a Goldman Sachs, não quero lembrar-me do nome dele.
Tardiamente, lá se recomeçou a pensar em investir na ferrovia. Houve umas oficinas que reabriram e tudo.
Quando há um arrastamento penoso, o interior é particularmente sacrificado. A linha da Beira Alta está encerrada para modernização desde abril de 2022, com aberturas sucessivamente adiadas. Há mais de três anos que as populações têm de usar autocarros, lá estão eles à saída da Estação de Coimbra B, ela própria um espelho do estado a que se chegou. Há obras agora, à boleia do tal autocarro a que chamam metro. Diz que a linha da Beira Alta vai abrir até ao final do ano. Já se disse isso de outras vezes. Há-de reabrir. Abrir linhas novas fica para depois. Qual é a pressa?
É o interior, conta pouco. É o país, conta pouco. Pouca terra.
1 comentário:
ERRATA- Foi preciso odiar-se muito o povo - Também mas ... Foi preciso o povo odiar-se muito, para eleger continuamente o bloco centrão de mamões que trata das suas vidinhas e destrata tudo o resto.
Como alguém perguntou, que fazer quando o povo vota contra si próprio?
Responda quem souber.
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