sexta-feira, 11 de junho de 2021

Desfocagem e manipulação de informação?

 

A manchete de hoje do Expresso é feita para vender. E revolta pela manipulação. 

O título é sobre um estudo patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian que segue um questionário europeu, realizado há muitos anos, e desta vez foi da autoria dos académicos Alice Ramos e Pedro Magalhães. O questionário é do mais questionável possível - de enviesado que é - e deveria ser pegado com pinças por jornalistas. Mas no Expresso - como em toda a comunicação social - não há tempo para pensar. 

Primeiro. Um jornal de referência, ainda que encostado à direita, coloca levianamente em manchete - abaixo de um anúncio de praias! - uma formulação tão equívoca como o que se pode ler acima. Pior: na entrada da manchete, sem qualquer explicação do termo "líder político autoritário" (que, como se explicará mais adiante, não aparece no questionário), acrescenta-se: 

"Há 20 anos que rejeição da autocracia [outro conceito não explicado] está a descer. Portugueses entre os mais desconfiados da Europa. Ciganos, toxicodependentes e alcoólicos são os menos desejados como vizinhos. Marcelo alerta para xenofobia".

Não era possível melhor manifesto sound-byte da extrema-direita xenófoba ou do professor Marcelo. Mas revela bem o desnorte em que caiu a direcção editorial do principal jornal do país. Tudo se faz para cavalgar uma onda, mesmo que seja ao arrepio do que devia ser um jornal, produto de jornalistas, salvaguardado por uma Constituição que proíbe taxativamente organizações xenófobas.  

Essa preocupação de gritar mais alto fez com que os jornalistas do Expresso tivessem pegado unicamente em duas perguntas entre dezenas que o estudo tem e escolhessem precisamente esses temas - uma resposta à uma das perguntas sobre o regime político preferido - optando-se pelo sublinhado a um suposto "líder político autoritário" - e outra sobre segregação racial ou religiosa.

Caso se procure a metodologia seguida pelo estudo europeu, encontrar-se-á (ver Master questionary) questões sobre emprego, salários, sobre trabalhar sem receber, sobre o que é importante num emprego, sobre religião (um pouco orientada), segregação racial no trabalho (muito orientada), sobre interesse em política, divisão esquerda/direita (orientada para a neutralidade), polémica indivíduo/Estado (orientada para o indivíduo), desempregado/emprego (muito orientada para forçar o desempregado a aceitar qualquer emprego), sobre o futuro (pergunta idiota orientada para a resposta "mais crescimento"), sobre prioridades políticas (idiota orientada para o combate  à inflação, ordem e dar a palavra "às pessoas"), sobre a importância de sectores sociais (igreja, forças armadas, imprensa, sistema educativo (!), sindicatos...), sobre a democracia, várias e variegadas questões. 

Mas o Expresso escolheu aquelas. 

Segundo, pela notícia não se entende qual foi a exactamente pergunta feita aos inquiridos - e não aos "portugueses", já que se refere a um estudo com 1215 respostas em 3032 lares inquiridos - que permitisse chegar àquela conclusão, montada para ser vendida como pãezinhos (veja-se o eco que teve noutros orgãos de comunicação social). 

E as perguntas são essenciais nos estudos de opinião:  


Quando se chega à página 8 - que não é lida nas bancas  nem nas notas de rodapé das televisões - percebe-se um pouco mais, mas mesmo assim  não se percebe muito. 

Vamos fazer ao contrário. Primeiro, vamos dar-lhe a pergunta - depois de consultada a metodologia que se pode encontrar na internet. Trata-se da pergunta 43. 

Antes, perguntou-se (pergunta 39) sobre o que se considera mais importante entre nove possibilidades, das quais a primeira possível era: "tributar os ricos e sunsidiar os pobres". Depois, perguntou-se (pergunta 40) "Quão importante é para si viver num país governado democraticamente? (pergunta muito orientada porque todos somos democratas). E a seguir perguntou-se (pergunta 41) "quão democraticamente governado é hoje o seu país?" Depois, pergunta-se (pergunta 42) numa escala de 1 a 10, "quão satisfeito está com o sistema político que funciona no seu país presentemente"?

E, finalmente, chega-se à pergunta 43 em que se descreve "vários tipos de sistemas políticos" em que o inquirido é chamado a qualificar entre "muito bom", "bom", "mau" e "muito mau" quatro tipos de regime: 1) "Ter um líder forte que não precisa de se preocupar com o Parlamento e eleições" (Having a strong leader who does not have to bother with parliament and elections, ou seja, já em si, uma frase muito equívoca de múltiplo sentido); 2) "Ter especialistas e não um governo a tomar decisões sobre o que eles melhor para o país"; 3) "Ter o exército a governar o país"; 4) "Ter um sistema político democrático". 

Ora, onde é que no questionário se refere "líder político autoritário"?

Ou seja, como diz Sir Humphrey, os académicos autores do estudo ou os jornalistas desvalorizaram o resto e puxaram pelo assunto que mais lhes interessava - mesmo que menor - , puxaram-no para manchete e colocaram no título um conceito que aparentemente não é usado no questionário, pelo menos, não aparece na metodologia anterior (e se se mudou, essa é que deveria ter sido a notícia). Ora assim sendo, tudo aponta para manipulação de informação. E muito orientada. 



Agora, sabendo isto, mas não sabendo os resultados das respostas, apenas de algumas, vamos à notícia.

Os portugueses [conclusão abusiva] rejeitam cada vez menos um líder autoritário [conceito não definido e não referido na questão feita] que não responda perante o Parlamento ou o voto popular. 

É autoritário porque não responde perante o Parlamento ou o voto popular? É tudo uma redundância? "Preocupar-se com eleições" é o mesmo que evitar o "voto popular"? Não se percebe. Já se sabe que a pergunta em si era bastante equívoca, mas o jornalista nem se preocupou em descodificar esse aspecto nem em criticar o questionário. Engoliu-o por completo e acrescentou confusão. 

Mas depois os mesmos "portugueses" que são cada vez mais defensores de "um líder político autoritário", estão contra um Governo de técnicos não eleitos ou regimes militares (não eleitos). Mais: nove em cada dez dos inquiridos acham positivo "ter um sistema político democrático". Que valor tem então um aumento da percentagem de quem prefere um "líder forte", se a esmagadora maioria quer um regime democrático? Que sentido se deve dar à palavra "forte"? Um que tenha maioria absoluta? Isso dá tudo um novo significado, não é? imagine-se a manchete: "Portugueses querem líder com maioria absoluta"... 

Terceiro, a escolha das palavras.

"Líder político autoritário", "líder forte", "líder autoritário que não responde perante o Parlamento ou o voto popular". Diria que estas palavras foram escolhidas com que preocupação? 

José Sócrates era um líder político autoritário? Toda a gente que conviveu com ele dirá que sim. Mas era um líder forte? Duvida-se. E, apesar de tudo, tinha de respeitar o Parlamento... e as eleições! Cavaco Silva era um líder autoritário que, porque teve duas maiorias absolutas, não tinha de se preocupar com o Parlamento? E Pedro Passos Coelho, com aquela atitude, perante um milhão de portugueses na rua contra os cortes de salário de 7% (através da subida da TSU), de não pedir desculpa nem de se demitir? Não revela um autoritarismo de "quero, posso e mando!" e "daqui não saio"? Passos Coelho era tão "autoritário" que até governava contra a Constituição (tal como Cavaco Silva). Mário Soares, tão violentamente descrito por Rui Mateus no seu livro Contos proibidos, não queria que tudo fosse como ele desejava, mesmo contra a opinião da direcção do seu partido? Era um líder político democrata ou um autoritário? 

Mas foi nesse sentido que o Expresso usou a palavra "autoritário"? Duvida-se muito. Até porque a palavra é dúbia e muito mais politicamente. "Autoritário" - segundo vários dicionários consultados - pode significar: 

"arrogante", "dogmático", "dominador", "impositivo", "impulsivo", "violento". Mas a palavra pode também ser usada com o sentido "absolutista", "arbitrário", "despótico",  "imperial" e... melhor que tudo...  "ditador". 

Por que não se usou no questionário original - e os académicos por arrasto - , por exemplo em vez de "forte", palavras como "arbitrário", "despótico" ou melhor que tudo,"ditador"? 

Se calhar, se fosse usada a palavra "ditador", as conclusões do estudo seriam diferentes. As pessoas não gostam de ditadores. Os portugueses não gostam de ditadores (como se viu relativamente à questão da democracia). Rapidamente, mostrariam um sinal negativo ao questionário e colocariam tudo em causa. Por que razão os autores do estudo europeu não usaram então uma formulação menos equívoca e mais clara? Como cientistas tinham tudo a ganhar. Por que razão preferiram a desfocagem à precisão? 

No caso do Expresso foi mesmo "ir além da troika". Como se disse, o questionário nunca menciona a palavra "autoritário"! Preferiu-se, antes, uma palavra que mistura um leve laivo de arbitrariedade com o sentido positivo que a palavra "autoridade" genericamente tem. Os mesmos dicionários dão como sinónimos de "autoridade": 

"alçada, apoio,  aptidão, braço, capacidade, competência, dignidade, direito, disciplina, força, governo,gravidade, influência, ordem, peso, poder, poderio, potência, predomínio, pulso, reputação, superioridade". 

Ora, o Expresso ao escolher a palavra "autoritário", introduziu uma carga de legitimidade naquele que tinha tudo para ser, na verdade, alguém despótico, instalado ao arrepio da vontade colectiva. Será que - isto pensando benignadamente - quiseram aproximar-se do que acham que é a matriz do novo pensamentos do cidadão comum, supostamente cansado de democracia? Não estarão a ajudar a que a profecia se concretize? 

Sem qualquer análise do estudo, venderam-no tal e qual. E como tal foram apenas agentes publicitários de uma nova corrente de pensamento - até europeia - que se começa a formar, a querer organizar, promovida pela comunicação social, pelo destaque desproporcionado que lhe é dado. Só que é demasiado perigosa para que se brinque com ela. 

"Líderes políticos autoritários" precisam de ser "autoritários" para impor programas de austeridade. Está na sua matriz: impopulares, injustos, criadores de desigualdades, ineficazes face aos objectivos pretendidos, eficazes na transferência de rendimentos e riqueza dos portugueses para alguns. 

E é arrepiante para quem viveu mesmo o fascismo, para quem lutou contra ele, para quem deu anos da sua vida, por que foi preso ou estragou a sua vida ou a sua vida profissional impedido de ser funcionário público, professor, por exemplo, lutando pela liberdade e pela democracia. Pela liberdade de imprensa! 

Arrepia deveras ver jornalistas a brincar à ditadura, dando fôlego a uma maré negra, como se fosse mais um brinquedo que podem alinhar contra o governo socialista, mesmo que de socialista tenha apenas o nome, já que é um muito desequilibrado partido social-democrata, alinhado no essencial das políticas do neoliberalismo europeu, o qual está precisamemnte na base do fracasso económico e social que fomenta esta procura de "salvadores da Pátria". Não: de "líderes políticos autoritários"... 

 

8 comentários:

Miguel Madeira disse...

Desculpem lá, mas "Ter um líder forte que não precisa de se preocupar com o Parlamento e eleições" é um líder autoritário.

Hélder Rocha disse...

Estava a ver que ninguém dizia nada sobre isto. Bastava ver o resultado de outras perguntas para ver que aqueles 37% têm muito que se lhes diga.

João Ramos de Almeida disse...

Caro Miguel,
O problema é a escolha inopinada do conceito de "autoritário" e o que poderá ter querido o Expresso querer dizer, já que o termo "autoritário" não aparece no questionário de base usado noutros anos. Como se pode ler no texto, desenvolve-se essa questão e as diferentes de sentido que pode haver entre um "líder forte" ("strong leader") e um "líder autoritário".

Na minha interpretação e pelas escolhas de perguntas feitas, o que o Expresso pretendeu foi "mostrar" que o povo de Portugal está cada vez mais próximo de um regime "autoritário"... outra forma para designar "ditadura", uma conclusão totalmente abusiva face às outras respostas apuradas pelo próprio estudo!

José Neves disse...

Para além do título do Expresso, que é a habitual marca da casa, o que deveria ser questionado é a credibilidade do estudo.

Já o escrevi em outras ocasiões, esse estudo e as suas cpnclusões não merecen credibilidade. Nem sequer questiono a formulação das perguntas, onde haveria muito para dizer.

Mas quem leva a sério um trabalho de inquério com um questionário com 104 perguntas, sendo que a muitas delas tem mais outras tantes perguntas derivadas?

Fazer o questionário completo demora, na melhor das hipóteses mais de trinta minutos. Isso não é um inquérioto é uma prova de resistência à paciência dos inquiridos que a partir dos 5 minutos respondem a despachar e qualquer coisa para acabar com a tortura.

Conclusão: credibilidade do estudo = Zero.

Natália Santos disse...

Comprei o Expresso durante mais de 40 anos, mas sempre o achei tendencioso e manipulador. Comprava-o por gostava de vários cronistas, mas há poucos anos desisti, em nome da minha saúde mental .E quanto a este estudo, depois de darem a entender que queríamos uma ditadura, dizem afinal, com 86%, que os portugueses consideram a democracia o melhor regime e esse número tem aumentado nos últimos anos. Enfim, querem fazer-nos de tolos.

Augusto disse...

Pagaram aos entrevistados para responder...duvido que alguem se desse ao trabaho de responder a cento e tal perguntas, sem pagamento.

Sandro Marques disse...

Comparando o questionário em várias línguas e países (alemão na Áustria e na Alemanha, inglês para o Reino Unido, francês para a França e Português) verifica-se uma economia na forma como a questão foi apresentada. Em alemão para a Alemanha (origem do estudo) opta-se pelo termo chefe de estado onde na Áustria se refere Líder. O termo Führer seria na Alemanha imediatamente identificado com ditador. Na Áustria, optou-se por utilizar esse termo para que não restassem dúvidas: Chefe de governo ou líder forte que não responde ao Parlamento ou vai a eleições é um ditador. Isto por comparação com os outros sistemas políticos alternativos (demmocracia liberal, ditadura militar, tecnocracia). Na questão para Portugal os autores portugueses da tradução e responsáveis académicos pelo estudo resolveram omitir a parte do sistema político a classificar como forma de governo para o país. O título do expresso diz que só 37% rejeita um ditador? Eu já desconfiava. E quem é o líder político de Portugal? Resta acrescentar que o estudo foi realizado em Portugal entre 11 de Janeiro e 1 de março de 2020 pela Metris. Perguntem a Alice Ramos do ICS. Depois disso veio a pandemia e António Costa sempre a subir na popularidade. Viva o ditador socialista português, António Costa! LOL


Áustria

Q43 Ich werde Ihnen nun verschiedene Typen von politischen Systemen beschreiben und fragen, was Sie von jedem einzelnen als Regierungsform für unser Land halten. Sagen Sie mir bitte jeweils, ob Sie eine solche Regierungsform für unser Land sehr gut, ziemlich gut, ziemlich schlecht oder sehr schlecht finden.

Man sollte einen starken Führer haben, der sich nicht um ein Parlament und um Wahlen kümmern muss

Alemanha

[Q43]
Folgend werden verschiedene Typen von politischen Systemen beschrieben. Würde Sie bitte für jedes System ngeben, ob Sie eine solche Regierungsform für unser Land sehr gut, ziemlich gut, ziemlich schlecht oder sehr schlecht finden?

Man sollte einen starken Staatschef haben, der sich nicht um ein Parlament und um Wahlen kümmern muss.


UK

Q43 I’m going to describe various types of political systems and ask what you think about each as a way of governing this country. For each one, would you say it is a very good, fairly good, fairly bad or very bad way of governing this country?


Having a strong leader who does not have to bother with parliament and elections

França

Q43 Je vais vous décrire différents types de systèmes politiques et vous demander ce que vous en pensez pour gouverner ce pays. Pour chacun, veuillez me dire si cette façon de gouverner le pays serait très bonne, assez bonne, assez mauvaise ou très mauvaise.

Avoir à sa tête un homme fort qui n’a pas à se préoccuper du parlement ni des élections

Portugal

Q43 Diga como avalia cada uma das seguintes formas de governo para Portugal

Ter um líder forte que não tenha que se preocupar nem com o parlamento nem com as eleições.

Miguel Madeira disse...

João Ramos de Almeida, mas o inquérito não fala só em "líder forte", fala em "líder forte que não tenha que se preocupar nem com o parlamento nem com eleições" (se a parte do parlamento ainda pode ser interpretado no sentido de preferir governos como maiorias absolutas ou então presidencialismo - mas mesmo isso já tem algo de autoritário - na parte das eleições nem há volta a dar).

É verdade que não usa a expressão ditador (tal como na Alemanha não usa Führer), mas isso é exatamente porque a maior parte das pessoas estão culturalmente condicionadas para recusarem a expressão "ditadura", portanto se na pergunta aparecesse "ditador" iam responder "não" por puro reflexo condicionado; assim, para ver o que realmente as pessoas pensam, é preciso perguntar por outras palavras (que não ativam a tal reação quase instintiva).

No fundo, é como os inquéritos sobre o racismo - se perguntarem às pessoas se são racistas, toda a gente vi dizer que não, por isso tem que se fazer a pergunta por outras palavras.