quinta-feira, 11 de outubro de 2018
O que esperar de Jair Bolsonaro
É de leitura imprescindível o artigo de Brian Winter, publicado esta semana no Americas Quarterly, cuja tradução se transcreve aqui. Uma análise rigorosa, consistente e crua sobre o momento de vertigem em que o Brasil se encontra e na qual se identificam os quatro aspetos essenciais em que se deverá traduzir a presidência de Bolsonaro, caso venha a ser eleito: derramamento de sangue, política económica a favor dos negócios privados, alinhamento com a Administração Trump e erosão da democracia e das suas instituições.
O que esperar de Jair Bolsonaro
Brian Winter (Americas Quarterly, 9 outubro 2018)
«Tudo indica que Jair Bolsonaro está prestes a tornar-se no próximo presidente do Brasil, depois de vencer com 46% as eleições da primeira volta, no domingo passado. Enquanto se prepara para enfrentar Fernando Haddad, na segunda volta, a 28 de outubro, muitos observadores, investidores e cidadãos brasileiros estão atentos ao dia depois das eleições, interrogando-se sobre como irá governar o ex-capitão, de extrema-direita, se for eleito.
Acompanhei de perto Bolsonaro durante mais de dois anos. Entrevistei-o a ele e aos filhos (também eles políticos proeminentes) e mantive contacto com pessoas próximas da sua candidatura. Escrevi diversas crónicas e artigos a reportar a sua ascensão e passei a semana passada no Brasil, tendo conversado com os seus críticos e apoiantes e com agentes do tecido económico, jornalistas e membros de organizações da sociedade civil. Omitirei neste texto a minha visão pessoal sobre a candidatura e abordarei, nos termos mais frios e factuais que me é possível, como Bolsonaro poderá agir para enfrentar a maior crise económica que o Brasil já atravessou e a epidemia de homicídios, que já atingiu o número recorde de 63.880 pessoas em 2017, entre outras prioridades de ação política.
A partir da minha análise, e com a ressalva de que mesmo os planos mais sólidos mudam com frequência, considero serem quatro as tendências que poderão caraterizar a presidência de Bolsonaro:
1. Derramamento de sangue
Esta é, afinal de contas, a prioridade política de Bolsonaro: abrandar as leis e regras das forças de segurança, permitindo-lhes atirar primeiro e fazer perguntas depois (numa escala que supera o que hoje já sucede, considerando que a polícia já mata mais de 5 mil pessoas) por ano. O objetivo é intimidar e matar traficantes de droga, ladrões e outros criminosos - e dessa forma inverter o aumento constante do crime desde que a democracia regressou ao Brasil, em 1985.
Para alguém de fora, isto pode soar a histeria. Mas trata-se tão só de levar a sério as palavras de Bolsonaro e dos seus correlegionários. Há imensas citações que se poderiam invocar, como a de agosto passado, em que Bolsonaro afirma que os criminosos «não são seres humanos normais» e que a polícia deveria ser recompensada, e não punida, se «matar 10, 15 ou 20 de uma só vez». A multidão que o apoia culpa a ênfase excessiva nos direitos humanos na questão da violência no Brasil, defendendo que os criminosos são mais protegidos que os cidadãos comuns. E por isso querem, no essencial, um regresso às técnicas da ditadura que vigorou entre 1964 e 1985, quando as ruas eram mais seguras.
A maioria dos especialistas independentes alerta para o facto de esta abordagem estar condenada ao fracasso. A sociedade brasileira mudou muito desde os anos 80 e a militarização da segurança falhou estrondosamente no México e na América Central – mas também no Rio, desde fevereiro. Numa sondagem realizada em março pelo Ibope, 50% dos inquiridos manifestaram concordância com a expressão «um bandido bom é um bandido morto», um slogan muito popular entre os que desejam a repressão. Outros políticos, incluindo governadores de Estado, juntaram-se entusiasticamente nas últimas semanas a esta linha retórica de Bolsonaro.
Com esta abordagem, muitas pessoas morrerão – ou serão torturadas (outra técnica que Bolsonaro apoia de forma convicta e vigorosa). É muito provável que a repressão seja acompanhada por formas de violência extra-policial e pela intervenção de “milícias” e outros grupos do crime organizado ligados à polícia, que aproveitarão este ambiente social e político para acertar contas e intimidar os seus adversários. São de esperar mais casos como o de Marielle Franco, a vereadora negra e queer do Rio de Janeiro, cujo assassinato continua por esclarecer. Um correlegionário de Bolsonaro que que num ato público destruiu uma placa de homenagem a Franco recebeu mais votos, no passado domingo, que qualquer outro candidato à Assembleia Legislativa do Rio. É este o Brasil de 2018.
2. Política económica favorável ao mercado
Nos últimos meses, o jogo de salão preferido em Wall Street (e na Avenida Faria Lima) consiste em adivinhar que Bolsonaro terão depois das eleições: se o Bolsonaro que apoiou consistentemente políticas estatistas nos primeiros 25 anos em que esteve no congresso ou o Bolsonaro que, no último ano, prometeu uma política favorável aos interesses privados, centrada na imposição de austeridade e em privatizações.
Eu apostaria, com grande segurança, na segunda hipótese.
A verdade, porém, é que Bolsonaro não se interessa realmente por economia – a sua paixão foi sempre a «lei e a ordem», o que também inclui o combate à corrupção. Mas ele percebeu, há mais de um ano, que para ser presidente precisaria do apoio do establishment económico. E por isso escolhe Paulo Guedes, um economista ultra-ortodoxo da Universidade de Chicago, para ser uma espécie de «super ministro das finanças», que administraria quase todos os aspetos da economia.
«E se Guedes for embora?», questiona-se o mercado, com razões para alguma apreensão. O que ignoram, contudo, é que nesta fase o verdadeiro guru económico de Bolsonaro e dos seus apoiantes não é Paulo Guedes mas sim Donald Trump.
Riam-se se quiserem, mas a fórmula trumpiana de constituir uma forte aliança com o mundo dos negócios, a linha dura face ao crime, o nacionalismo sem escrúpulos e a retórica da liberdade económica é encarada pela direita brasileira como um teste bem-sucedido – e um exemplo a seguir. É uma espécie de evangelho para os intelectuais que apoiam Bolsonaro nos média e nas redes sociais (muitos dos quais, incluindo Olavo de Carvalho, moram nos Estados Unidos). Um assessor de Bolsonaro elaborou uma lista com os sucessos de Trump e mostrou-a ao seu chefe durante a campanha. E o próprio Bolsonaro ficou satisfeito com as comparações. O que não significa, porém, que Guedes - ou os interesses económicos em geral - venham a ter tudo o que querem. Alguns investidores mostraram-se preocupados ao ver no facebook, no domingo passado, Bolsonaro sentado ao lado de Guedes a prometer defender alguns setores «estratégicos» das privatizações. «Nós não vamos permitir que um qualquer país chegue aqui e fique com o nosso património», acrescentou Bolsonaro. O que é politicamente astuto, pois a privatização total da Petrobrás, por exemplo, seria uma decisão cujo radicalismo não seria tolerado pela maioria dos brasileiros, pelo menos já em 2018. E o comentário a «qualquer país» foi provavelmente mais dirigido à China – outro bicho-papão de Bolsonaro – que ao capital estrangeiro em geral.
Com o déficit a ultrapassar os 8% do PIB, a dívida nacional a aumentar e os indicadores de clima económico a colocar o Brasil em 125º lugar entre 190 países pelo Banco Mundial, uma forte dose de ortodoxia é seguramente necessária para retirar o país da situação em que se encontra. Caso se registe um desempenho da economia superior ao esperado pelos aliados de Bolsonaro, e pela direita em geral envolvida nas eleições de domingo para o Congresso, a reforma da Previdência e outras reformas passam a estar mais no horizonte. Mas existe o risco de as políticas de segurança de Bolsonaro, ou de as ações que façam retroceder a democracia (voltarei a esta questão de seguida), gerarem convulsões sociais e outras pressões políticas, que por sua vez prejudiquem o ambiente necessário para a concretização de reformas. No curto prazo, pelo menos, Wall Street terá razões para estar satisfeita.
3. Quase total alinhamento com a Administração Trump
Como acabei de referir, os Estados Unidos são uma espécie de estrela do norte para Bolsonaro e seus acólitos, a ponto de a sua candidatura ter prestado saudação à bandeira americana e gritado em coro com a multidão, num evento de campanha em outubro do ano passado em Miami: “EUA, EUA!”. Aquilo que teria sido um suicídio politico na carreira de qualquer candidato brasileiro nos últimos trinta anos deixou de o ser. Nos dias que correm, apoiar os Estados Unidos tornou-se numa espécie de linguagem de código que sinaliza a rejeição da ideologia de esquerda que governou o Brasil entre 2003 e 2016 e que conduziu o país ao atual desastre.
Estas atitudes estão longe de ter apenas um significado superficial. A equipa de Bolsonaro reuniu-se com autoridades dos EUA ao longo dos últimos meses – uma prática comum durante as campanhas - e deixou claro que, caso seja eleito, Bolsonaro será um parceiro especialmente leal da política externa Americana. «É como se (Washington) tivesse feito uma lista do que pretende do Brasil e eles, lendo a lista, tivessem concordado com tudo, palavra por palavra», referiu uma pessoa que teve conhecimento dos diálogos mantidos.
De facto, talvez seja necessário recuar até às relações de «unha com carne» do presidente argentino Carlos Menem, nos anos 90, para encontrar um governo da América do Sul tão entusiasticamente alinhado com Washington. Mas o que significa isso, na prática? Representa uma linha muito mais dura contra a Venezuela (e Cuba), cooperação total em questões relacionadas com drogas, a eventual mudança da embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém, a retirada do país dos Acordos do Clima de Paris ou o apoio entusiástico a Washington nas Nações Unidas e noutras instâncias internacionais.
Este posicionamento cai bem nas bases de apoio a Bolsonaro e alinha o Brasil, de modo mais sólido, com outros governos da América do Sul. A Argentina, a Colômbia, o Chile e (possivelmente) o Peru são países governados por presidentes de centro-direita sintonizados com Trump, ainda que com menor entusiasmo do que aquele que Bolsonaro provavelmente demonstrará. Outra vantagem: os entendimentos com Washington têm dado uma cobertura política e diplomática eficaz a regimes, como o da Guatemala, que têm violado princípios democráticos, sobretudo nos últimos tempos, sob orientação do Secretário de Estado Mike Pompeo e do Conselheiro de Segurança Nacional John Bolton.
O que nos conduz à quarta e última tendência:
4. Erosão da democracia e das suas regras e instituições
Aqui, novamente, não pode haver equívocos: Bolsonaro despreza a democracia, pelo menos a democracia que tem vigorado no Brasil nos últimos trinta anos.
Ao longo do tempo, Bolsonaro apelou repetidamente a que o Congresso fosse fechado, afirmando que o maior erro do último governo militar fora o de «torturar e não matar», e dizendo que, se fosse eleito presidente, «iniciaria uma ditadura militar de imediato». Mais recentemente, prometeu encher o Supremo com juízes alinhados. A sua desconfiança em relação aos políticos civis significa que o seu gabinete será fundamentalmente composto por ex-militares, segundo os seus assessores. O braço-direito de Bolsonaro, um general recém-aposentado, colocou a hipótese de um «auto-golpe», através do qual os militares ajudariam o presidente a ficar com mais poderes, em determinadas circunstâncias.
À medida que as eleições se aproximavam, Bolsonaro foi suavizando o tom, dizendo que as suas anteriores declarações não passavam de «figuras de retórica» e que os seus pontos de vista sobre a democracia (e a economia) tinham evoluído. Chegou a referir, no noticiário mais popular do país, na passada segunda-feira, que será um «escravo» da Constituição democrática de 1988 e que governará com autoridade, mas não com autoritarismo. O problema é que há demasiados indícios que sugerem que, quando enfrentar resistências, Bolsonaro irá ignorar ou atropelar as práticas e as normas democráticas para conseguir o que quiser.
Aliás, vale a pena notar que isso talvez nem seja preciso. O resultado eleitoral do passado domingo significa que Bolsonaro terá de lidar com um Congresso muito mais dócil do que se supunha, sobretudo se vencer a segunda volta com uma margem confortável que lhe dê um mandato forte. Uma parte significativa do sistema judicial poderá também apoiá-lo.
Bolsonaro terá assim um poder extraordinário para agir como quiser, pelo menos numa fase inicial. Depois da crise que se instalou nos últimos anos, muitos brasileiros passaram a encarar a democracia como sinónimo de caos, corrupção e complacência para com os criminosos. De acordo com uma sondagem do Centro de Pesquisas Pew, em 2017, apenas 8% dos brasileiros consideram que a democracia representativa constitui uma forma de governo «muito boa», num valor que é o mais baixo dos 38 países analisados. Um diplomata veterano que conhece bem a América do Sul comparou o atual clima que se vive no Brasil ao da Venezuela na véspera da eleição de Hugo Chávez. «O ódio ao establishment era tão forte que Chávez poderia fazer tudo o que quisesse», disse o diplomata. «As pessoas, pura e simplesmente, não queriam saber».»
Brian Winter, O que esperar de Jair Bolsonaro? (Americas Quarterly)
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