segunda-feira, 10 de julho de 2017

Síndrome da Nêspera

O meu editorial deste mês do Le Monde Diplomatique - edição portuguesa.

A síndrome da nêspera


Depois da instabilidade financeira e económica da Zona Euro, a economia europeia assiste à recuperação do crescimento económico, com ligeira diminuição do desemprego, exceptuando a Grécia. Esta estabilização económica parece ser acompanhada por um reforço do poder das elites políticas europeias, goradas que foram, quer a ameaça de uma vitória da extrema-direita na Holanda e em França, quer a novidade dos movimentos insurgentes, ideologicamente diversos, mas nascidos ou crescidos no auge da crise, o Syriza na Grécia, o Podemos, em Espanha, e o Movimento Cinco Estrelas, em Itália. Num movimento de recomposição partidária, total ou parcial, com a vitória do movimento de Emmanuel Macron e a mais que provável vitória do partido de Angela Merkel na Alemanha, agora numa aliança com os liberais, o programa político do «Consenso de Bruxelas» ganhou novo fôlego.

Não por acaso é este o tempo em que a Comissão Europeia, com aguçado sentido de oportunidade, apresenta um novo documento estratégico, onde sob o pretexto de colmatar as falhas diagnosticadas no euro aquando da crise, se propõe a passagem da «educação, a fiscalidade e a concepção dos sistemas de protecção sociais» para a alçada do «Semestre Europeu», maior condicionalidade política nos fundos estruturais, criação de um enorme mercado de titularização da dívida, etc. Juntem-se novas rondas de reformas laborais, já em curso em França, de recapitalização bancária e de liberalização do comércio internacional e conseguimos identificar as grandes componentes deste programa do que Tariq Ali apelida de «extremo-centro», que se traduzirá na contínua transferência de rendimento, social e internacionalmente regressiva, conforme à mercadorização de cada vez mais esferas da vida social. No entanto, a estabilização neoliberal da União Europeia não significa um recuo ao estado ex-ante da crise financeira internacional, nem económico, nem político.

A estagnação, dita secular, e a instabilidade financeira vieram para ficar, tornando as contradições do capitalismo financeirizado cada vez mais salientes. A União Europeia e suas instituições estão enredadas na tentativa de reanimar um regime de acumulação ferido e limitado pela crise, com um sistema bancário falido, permanentes desequilíbrios entre países do Sul e do Norte e níveis de endividamento que pairam como espada de Dâmocles sobre o nosso futuro.

Os problemas e contradições desta defeituosa retoma foram claros no recente Fórum do Banco Central Europeu, que teve lugar em Sintra. Mario Draghi mostrava-se preocupado com um estranho fenómeno: a economia europeia cresce moderadamente, o emprego parece recuperar, mas os salários teimam em não descolar, num fenómeno a que aliás Portugal não é alheio. Com salários e preços das matérias-primas estagnados, a taxa de inflação europeia está ainda longe do objectivo dos 2%. O presidente do Banco Central Europeu (BCE) vê-se em apuros, pois este contexto dificulta a reversão da política monetária expansionista, que mantém as taxas de juros próximas do zero, e o retorno a uma eventual «normalidade» económica e financeira, exigidas por um governo alemão preocupado com a rendibilidade dos activos financeiros que, naquele país, sustentam a provisão de pensões. Mais surpreendente foi a «confissão» de Draghi quanto à responsabilidade do desmantelamento da negociação colectiva sectorial à escala europeia, continuadamente promovida pelo próprio BCE, na difícil valorização salarial, já que coloca os trabalhadores e sindicatos numa posição negocial estruturalmente mais desfavorável. O BCE naturalmente não está preocupado com o rendimento dos trabalhadores europeus, mas antes com a «camisa de sete varas» em que a sua política monetária se encontra face às realidades diversas e conflituantes na Zona Euro.

Outro exemplo das contradições da presente situação diz respeito aos efeitos da situação nos mercados financeiros e da política monetária nas economias periféricas do Sul da Zona Euro. A política monetária expansionista, graças às baixas taxas de juro, permite aos países, como Portugal e Espanha, encontrar facilmente quem os queira financiar e, consequentemente, diminuir os custos do serviço da sua dívida, aumentado a margem de manobra orçamental no quadro das restritivas regras do euro. Acresce que, face a uma economia internacional com a procura deprimida e com poucas oportunidades de investimentos para os excedentes financeiros, estes países beneficiam de novos fluxos de capital estrangeiro que, em busca de rendimento rápido, encontram no imobiliário dos centros das grandes cidades uma fonte de valorização. É certo que este é um movimento que gera crescimento, emprego e receita fiscal, mas, aparentando ser a primeira fase de uma bolha especulativa, dada a evolução recente dos preços, o futuro deste movimento só pode causar preocupação, sabendo nós da volatilidade dos fluxos de capital financeiro que rapidamente se colocam em fuga ao menor perigo, real ou imaginado.

Em Portugal, o atentismo que se verifica perante a situação internacional e a recuperação económica nacional, de que o artigo do economista José Gusmão neste número nos dá conta (ver «A meia-morte da austeridade»), deve ser encarada com preocupação. Portugal parece ser o exemplo último do que o sociólogo alemão Wolfgang Streeck chama de «Estado de Consolidação», onde governos «sociais-democratas» (o autor está a pensar na Suécia), com renovada capacidade orçamental prometem reversão da austeridade, mas permanecem trancados no compromisso com: (1) um orçamento sem défice, ainda que associado a despesas de salários e pensões; (2) redução do investimento público e concomitante multiplicação das parcerias público-privadas; (3) degradação nos serviços públicos e introdução de mimetismo de mercado nestes sectores; (4) surgimento de poderosos actores privados e do terceiro sector no que eram até há pouco áreas de provisão pública.

Mesmo por outros meios, observamos como os processos impostos pela União Europeia aquando dos resgates financeiros continuam a fazer o seu percurso de esvaziamento das capacidades públicas e de individualização da provisão. O caldo económico e político que levou ao colapso de partidos sociais-democratas, de que o Partido Socialista francês foi o último exemplo e que paira agora sobre o Partido Social-Democrata alemão, está por isso longe de ter desaparecido. Depois de décadas de neoliberalismo, o sucesso na mobilização política contra o actual programa político em curso depende de um apurado diagnóstico e de arrojo na proposta. Exemplos como o do Partido Trabalhista, no Reino Unido, fornecem hoje novas pistas, inexistentes há poucos anos, mas o caminho a percorrer é demasiado longo para posições complacentes.

Ser trabalhador pobre não quer dizer...

... ser trabalhador menos cool.

Cobrindo uma lacuna do mercado, alimentado por uma gama de clientes cada vez mais alargada, já existem diversas marcas de produtos adaptados a uma "economia de marmita", em linhas atenuadas e elegantes, de design de qualidade, que aproveita os curtos espaços para a comida - não se deve comer muito entre dois turnos, que dá sono - e para os talheres, a guardar em pequenos estojos de borracha que podem ser laváveis quando chegar a casa.

E tudo em cores alegres, vivas, umas mais vermelhas, outras mais cristãs-democratas, outras anarquistas, dependendo das cores do clube ou do coração, que até dá gosto mostrar a marmita aos outros camaradas.

Cada objecto custa 3% do SMN? Vai ter de gastar uns 10% do SMN para usar o conjunto completo? Poupe um pouco mais. No fundo, tem de comer todos os dias e o preço dilui-se rapidamente. Não perca a alegria, já que perdeu a esperança.

É tão bom o capitalismo...

domingo, 9 de julho de 2017

Investidor soberano

O que sabemos por aquilo que aprendemos com revoluções tecnológicas passadas, por exemplo no campo da nanotecnologia, biotecnologia e internet, é que apenas quando o sector público cria directamente – não indirectamente – investimentos e define de forma ambiciosa áreas para apostar, é que diferentes sectores ficam entusiasmados acerca das possibilidades. Se aquilo que é feito é apenas reduzir os impostos sobre os ganhos de capital ou introduzir créditos fiscais, o que se faz é apenas contribuir para aumentar os lucros (…) Quando o sector público lidera, isso significa também assumir riscos elevados. Os banqueiros centrais falam das autoridades monetárias como credores de último recurso, eu vejo o Estado como um investidor de primeiro recurso. Mas se se é um investidor numa fase inicial, haverá sempre muitos projectos falhados e, por isso, é fundamental que aquilo que corre bem compense o que corre mal. Não podemos dizer “não interessa, percam aquilo que quiserem”, cria-se dinheiro através do banco central e aumenta-se os impostos. Portanto, o melhor é criar mecanismos de obtenção de retorno, entrando no capital das empresas, definindo condições de reinvestimento ou de preços, para garantir que o sector público é mesmo recompensado pela inovação que ajuda a criar. Isto é apenas utilizar princípios básicos de investimento, como partilhar riscos e prémios. Mas se não se considera o Estado como alguém que está a assumir um risco e apenas se vê o Estado como um corrector de falhas do mercado, então a questão nem se chega a colocar (...) Quando falo com Corbyn ou Elisabeth Warren nos EUA o que lhes digo é que aquilo que precisam de fazer para as pessoas ficarem mais entusiasmadas com os seus programas é não falar apenas de redistribuição, por muito importante que seja. Têm de virar o discurso para a ideia do Estado como um criador de riqueza. Ao fingir que é o sector privado que cria e que o Estado apenas redistribui, cria-se uma narrativa aborrecida para os cidadãos e incentiva-se uma visão egoísta dos problemas.

Excertos da entrevista que Sérgio Anibal fez no Público a Mariana Mazzucato, provavelmente a economista política crítica mais influente hoje em dia, uma das que mostra bem a perversidade intelectual e política de ver o Estado como um mero corrector de falhas de mercado. A sua visão institucionalista, bem mais realista, vê o Estado como criador de mercados. Infelizmente, o seu principal livro, O Estado Empreendedor, disponível aqui em inglês numa versão condensada de estudo da Demos, ainda não está traduzido entre nós. Obviamente, as suas mais relevantes ideias são para Estados soberanos.

sábado, 8 de julho de 2017

Pedrogão e Pavia não se fizeram num dia? (II)

1. Foi recentemente divulgado o estudo técnico do IPMA sobre o incêndio ocorrido em Pedrogão Grande a 17 de junho. Juntamente com a carta resumo, o relatório permite articular três conclusões essenciais. Por um lado, confirma a adversidade do quadro meteorológico previsto, a que se associa um elevado risco de incêndio, dadas as altas temperaturas e os baixos valores de humidade relativa registados. Por outro, confirma a elevada instabilidade atmosférica, com ocorrência de trovoadas, tendo sido sinalizados vários fenómenos convectivos na região (massas de ar descendentes a espalhar-se em todas as direções depois de atingir o solo, com ventos muito fortes). Por último, o dado mais relevante para compreender a singularidade deste incêndio, e que é devidamente assinalada pelo IPMA: a conjugação «entre o escoamento divergente gerado pelas células convectivas e o incêndio entretanto iniciado, conduziu a uma grande amplificação da pluma do incêndio, em termos de extensão vertical e velocidade de propagação», configurando uma situação inédita no nosso país.

2. Em artigo no Público de domingo passado, Teresa Firmino sintetiza de forma notável estas conclusões e destaca a importância das imagens do relatório que ilustram a propagação do fogo, ajudando a compreender o que ocorreu na Estrada Nacional EN 236-1, onde perderam a vida 47 das 64 vítimas mortais do incêndio. Às 20h10, a pluma de incêndio (constituída por fumo e materiais), aproximou-se da referida «estrada nacional e às 20h20/20h30 estava a passar por ela». Nesse período, «por causa de uma corrente de ar descendente extremamente forte, o incêndio foi oxigenado e empurrado pelo vento. Espalhou-se a grande velocidade — quase triplicando de dimensão» (isto é, passando a pluma do incêndio de 5 para 14 quilómetros na vertical, o que revela a intensidade e violência do fogo naquele período). Às 21h00, o incêndio tinha já deixado para trás a EN 236-1 (clicar na imagem para a ampliar).


3. O estudo do IPMA converge com algumas das análises mais robustas e fundamentadas sobre a excecionalidade das condições atmosféricas e a sua relevância para interpretar o incêndio, na sua génese, dinâmicas e consequências. Entre elas, destaquem-se dois textos de Emanuel de Oliveira: «A origem do grande incêndio florestal de Pedrogão Grande» e «A propagação inicial do grande incêndio florestal de Pedrogão Grande», bem como a reportagem de Hugo Séneca na Exame Informática, com «A radiografia do incêndio», ou ainda a edição de 27 de junho do programa 360º, na RTP3 (sensivelmente a partir do minuto 16), em que participaram Ricardo Ribeiro e Pedro Almeida Vieira.

4. Uma nota comum emerge de todas estas análises: trata-se de um incêndio inédito em Portugal, porventura o primeiro grande incêndio convectivo, que implica por natureza uma elevada complexidade em termos de combate, controlo e extinção. A este dado somam-se obviamente elementos como a adversidade da orografia e dos acessos, o tipo de florestação ou a acumulação de combustível. Bem como as questões estruturais de gestão da floresta e da prevenção ou as eventuais falhas circunstanciais no combate a um incêndio. O que não se pode relativizar é o caráter excecional das condições atmosféricas e geofísicas associadas ao incêndio de Pedrogão Grande, que devem sempre ser tidas em conta para enquadrar e compreender a sua propagação e as suas dramáticas consequências.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

A propósito de Marx, de Outubro, da selva...

... e do tanto que está por fazer!

A mais recente entrevista do Inspector-geral do Trabalho de Portugal ao jornal online Eco deixa uma ideia que não tem passado para a população.

A comunicação social, que era essencial para essa mudança, está altamente contaminada por essa selva contratual e de desregulação, como que amordaçada por medo e interesse, salvaguardando-se na teoria ligeira de que o que o mercado escolhe é melhor para todos. Tiveram o mérito, hoje, de o contradizer a Cristina Oliveira da Silva e a Paula Nunes.

Leiam, por favor, e depois discutamos por que não quer o Governo dar mais passos nesta realidade.

Quando os mais eminentes téoricos defensores da desvalorização salarial - como Draghi ou Blanchard - já dizem que é demais e há que inverter os factores que condicionam a subida salarial - em que o laissez-faire  da selva é um meio de o conseguir - por que é que um governo com o apoio parlamentar da esquerda - e que teria o apoio generalizado da massa assalariada - não se sente espaldado para a regular?

É porque não quer abrir essa barricada com a Comissão Europeia, enquanto a vence no terreno dos défices mais curtos? É porque quer ter o patronato sossegado, enquanto esmaga o PSD e o CDS politicamente? É porque, em parte, acha que não é capaz? É porque não acredita nos benefícios da contratação colectiva? É porque acredita nas mudanças em pequenos passos? É porque prefere brincar a lutar como o fazem os gatos bebés, que adormecem depois, cansados? O problema é que, mesmo politicamente, o actual governo arrisca-se a que um presidente de uma confederação patronal venha dizer aquilo que disse Van Zeller em 2008, sobre a revisão do Código do Trabalho...

Por uma sociedade mais justa sem guetos sociais, discuta-se esse ponto cada vez mais essencial para a vida e o futuro de todos, já que isso afecta a dignidade pessoal e o sanidade psicológica - e física - de quem trabalha, o tempo e a qualidade de vida como pessoas, a estabilidade da economia, a repartição de rendimentos, a emigração de quadros qualificados, a Segurança Social, o Serviço Nacional de Saúde...

«Para gerir um défice é preciso não querer acabar com o Estado»

«Quem tem saudades da troika está um bocado zangado com as "cativações". Pudera, uns descobriram tarde a água quente, outros sentem que o truque foi posto a nu. Gerir um défice obriga a cativações, não a cortes. Os cortes assustam quem investe, tiram rendimentos, logo, quebram a economia, acabam por ter efeitos contraproducentes no PIB e, por isso, no défice (sobre o PIB). As cativações são preventivas, não afectam quem investe e quem trabalha, não afectam o PIB e, à medida que o ano avança, sem crise, acabam por ser largadas. É isto. É difícil falar de economia sem se perceber o básico - isto quanto à água quente. Quanto ao truque posto a descoberto, é que os cortes eram o próprio do objectivo, não o meio de gerir o défice. Moral de uma história antiga: para gerir um défice é preciso não querer acabar com o Estado.»

Pedro Lains (facebook)

O problema alemão

Via facebook do Luís Gaspar, certeiro no seu comentário sobre o problema recorrente e crescente dos excedentes externos alemães:  "Só vem com oito anos de atraso".


Conjunturas e estruturas

Se esquecermos a adenda, com intuitos de mera provocação política– “a esquerda antieuropeísta deveria tornar-se convicta apoiante da UE” –, concordo com um ponto de Vital Moreira: a multa da Comissão Europeia à Google confirma o que é a integração supranacional no seu melhor: uma veladora ordoliberal da concorrência de mercado possível, de resto alargada a um número crescente de áreas, um princípio que não tem nada de esquerda, claro. Daí a dizer-se que uma multa de 2,4 mil milhões de euros a uma empresa com uma facturação anual de cerca 89 mil milhões de dólares, em 2016, muda alguma coisa nas dinâmicas de concentração e centralização de capital em curso vai uma grande distância.

Seja como for, a versão alemã do neoliberalismo convocada por Vital Moreira sempre se distinguiu teoricamente da Escola de Chicago, mais relaxada em relação à grande empresa, sempre potencialmente contestada e por isso supostamente obrigada a operar como se estivesse em mercado concorrencial, precisamente pela ideia de que a concorrência tem de ser uma realidade e só pode sê-lo através de uma aturada construção regulatória, o que passa por vigiar alguns comportamentos empresariais. Em ambas as visões neoliberais, os mercados são tudo, diferindo apenas na forma como o comportamento de mercado emerge.

Daí a dizer-se que a Comissão Europeia é um freio e contrapeso relevante, e ainda para mais o único, à acção das grandes empresas multinacionais vai outro um grande passo. Na realidade, a UE tem feito muito para promover as multinacionais, como se vê na banca, tentanto criar um mercado com escala europeia e a partir daí com escala global. É preciso nunca esquecer que a integração europeia é a expressão e o agente político da globalização neoliberal no continente, favorável às tendências de engrandecimento do capital, como se vê na sua apetência para promover acordos de liberalização económica.

Para a esquerda o mais importante sobre a UE é portanto aquilo que ela proíbe ou obstaculiza: acção desenvolvimentista dos Estados, capaz de controlar mercados, de os partir e condicionar através de instrumentos de política industrial, transformando as regras de propriedade em sectores considerados estratégicos e por aí fora. A UE só permite escolhas dentro do paradigma neoliberal.

Este problema afecta reformistas e revolucionários consequentes, para convocar uma caricatura de história política, por quem tem obrigação de se lembrar de mais e de melhor. Na verdade, a articulação política parlamentar e não só das esquerdas, numa conjuntura bem concreta, é fiel à melhor história da experiência das frentes populares. Em Portugal, antes e depois do 25 de Abril, do MUD à ideia da maioria de esquerda, passando pela revolução democrática e nacional, quem melhor pensou sobre estas questões foi revolucionariamente fiel a uma ousada política de alianças. Nada de novo, a não ser o mais importante: a relação de forças concreta e as possibilidades que ofereceu depois das eleições, aproveitada com toda a flexibilidade táctica pelos que sabem bem quais os interesses e os valores de que nunca se desiste, pelos que souberam estar à altura dos seus deveres, parando temporariamente o comboio que rumava em direcção ao abismo.


«Economia com Todos», hoje em Coimbra


O «Economia com Todos» é hoje apresentado em Coimbra, numa sessão em que participam José Reis, João Rodrigues e Jorge Bateira. É na Livraria Almedina - Estádio, a partir das 18h30. Apareçam.

Capítulos do livro: «Sempre a pedalar» (Ladrões de Bicicletas). . «O Neoliberalismo não é um slogan» (João Rodrigues). . «O desconserto da globalização» (José Castro Caldas). . «Estagnação e financeirização» (Nuno Teles). . «O papel do Estado no desenvolvimento das capacidades produtivas» (Ricardo Paes Mamede). . «Imprensa: A fábrica de chouriços vai ter robots» (João Ramos de Almeida). . «Flexibilizar para criar emprego?» (Diogo Martins). . «Estado Social e desmercadorização do bem‐estar» (Nuno Serra). . «O preço do Euro» (Jorge Bateira). . «Desvalorização interna e desequilíbrios macroeconómicos na Zona Euro» (Paulo Coimbra). . «À espera da reestruturação da dívida» (Eugénia Pires). . «Histórias do nosso futuro» (Alexandre Abreu). . «Macron, a Frente Nacional e a social-democracia europeia» (Hugo Mendes). . «Tornar possível o impensável» (José Guilherme Gusmão)

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Dois pesos e duas medidas

Desde a desgraça de Pedrogão e, mais recentemente, com o assalto a Tancos, a oposição tem insistido no corte de cabeças.

Mais recentemente a presidente do CDS decidiu a cabeça de dois ministros. A comunicação social tem insistido nessa tecla. Na entrevista de hoje o secretário de Estado Pedro Nuno Santos, o actual director do jornal Público, insiste e insiste nesse ponto.

Ora, quando a gestão pública é mal feita, tudo deve ser invertido para que corra melhor. Neste caso, toda a gestão orçamental e política deveria ser avaliada e seguida pelos cidadãos, caso houvesse meios transparentes de o fazer. Mas não há. O mal não é deste governo: todos os governos usam uma margem de opacidade que impede o cidadão de ter os mesmos meios de prova de um governante. Vai-se sabendo, mas não se pode saber tudo ao mesmo tempo. Fica sempre a sensação de a informação ser um instrumento de arremesso, de haver manipulação de informação. Isso impede uma discussão mais aprofundada das questões, as quais tendem a redundar sobre que cabeças devem rolar.

E como também a comunicação social não tem essa informação, insiste apenas no mais fácil: a guilhotina.

Mas essa opacidade é a mesma quando se passa na gestão privada ou partidária. Com uma agravante: não há meios de princípio nem legais que obriguem um accionista ou um gestor privado ou um dirigente partidário a mostrar a informação/prova da sua má gestão.

Por exemplo, o CDS e Assunção Cristas que é presidente do partido desde 13/3/2016. O partido continua nos piores valores de sempre nas sondagens políticas. E não consegue absorver a queda a pique do PSD. Porquê? Não se deveria demitir a sua presidente? Não se deveriam divulgar as actas das suas reuniões para ver o que tem feito a presidente? Não, não devia, mas seria interessante.

Por exemplo, no caso do jornal Público, durante muitos anos os representantes dos trabalhadores exigiram informação para poder julgar a gestão do jornal e poder aferir da razoabilidade das afirmações de que não era possível actualizar os salários ou de que eram imprescindíveis despedimentos. E ainda hoje isso se passa, quando o jornal não consegue evitar a utilização da velha técnica de gestão para endireitar prejuízos: reduzir custos de trabalho, com despedimentos e afastamento de pessoas, para manter o mesmo nível de prejuízos do passado. E a culpa não é dos trabalhadores. Não deveria o seu director - em funções desde há um ano - demitir-se?

Um dirigente partidário ou um director de jornal deveriam ter mais cuidado ao julgar a gestão pública, quando não usam na sua pessoa os mesmos critérios de responsabilização que pretendem que o Estado use. Se não o fazem, arriscam-se a que pareça que tudo se trata apenas de uma jogada política. E isso irá, a prazo, jogar contra si.

A taxa de desemprego e a crise social

O número de desempregados em Portugal tem vindo a descer desde o início de 2013 e nos próximos meses deverá ficar abaixo dos níveis pré-crise. Quando isso acontecer será com certeza motivo de celebração oficial. No entanto, o número de pessoas empregadas está ainda cerca 300 mil abaixo do que era em 2008 (o facto de haver menos desempregados não significa que as pessoas em questão tenham encontrado emprego). O desemprego em sentido lato (que inclui o subemprego e quem desistiu de procurar emprego, pelo que não é oficialmente considerado desempregado) continua a atingir cerca de um milhão de pessoas. Isto sem contar com aqueles que decidiram emigrar e não voltaram, nem com o aumento do peso do trabalho precário. Em suma, os números oficiais do desemprego são motivo de optimismo, mas arriscam-se a esconder a crise social que continua a assolar o país.


quarta-feira, 5 de julho de 2017

Luzes e sombras de um apagão

Momento da equipa da IGF e peritos a tentar encontrar resposta a uma pergunta directa do deputado Paulo Sá
Apanhei ontem a sessão parlamentar a meio e mesmo assim demorou mais quatro horas depois disso.

Foi uma sessão penosa para quem - como qualquer cidadão - não leu o relatório da Inspecção Geral de Finanças sobre o apagão de várias transferências financeiras para praças offshores. Um apagão que lançou suspeitas sobre a real intenção de o anterior secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, não ter divulgado - durante anos - as estatísticas fiscais sobre essas transferências.

O relatório não convenceu nem o Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, nem o Governo. A equipa responsável pelo relatório, se não foi capaz de detectar o que se passou - embora tenha dito que a aplicação informática adquirida pelo Estado não funcionava tal e qual como foi fornecida... (quanto se pagou por ela, quem foi essa empresa?) - foi muito peremptória a afastar a intervenção humana ("extremamente improvável"), contrariando as denúncias internas.

Mas para quem assistiu à sessão ficou a sensação de que:
1) o inspector geral das Finanças, de cada vez que havia dúvidas sobre o relatório, refugiava-se numa descrição dos acontecimentos que parecia um acumular de conceitos informáticos.
2) às dúvidas sobre os próprios termos do relatório, mesmo baseadas nos conceitos informáticos, deixavam a equipa desconfortável.

Exemplo disso, foi aquilo que se passou com uma pergunta do deputado comunista Paulo Sá. Perguntou ele: Se os ficheiros fornecidos pela Administração Tributária à empresa fornecedora da aplicação, para teste da aplicação, correram bem - tanto na versão inicial como na versão actualizada da aplicação - por que foi que não correram bem na Administração Tributária?

A essa pergunta, as fotografias acima retratam o que se passou. Por largas dezenas de segundos, a equipa falou entre si, sem dizer nada. A reggie do Parlamento foi dando várias planos desse momento. A questão foi finalmente respondida sem este espectador ter percebido a resposta. Paulo Sá também não pareceu ter achado a resposta clara, porque insistiu. Novo momento de silêncios. O inspector-geral acabou por dizer que as coisas não se tinham passado como a empresa fornecedora dissera que, no final, já não estava tão confiante como no início declarara...

Outro momento estranho foi quando a deputada do Bloco Mariana Mortágua perguntou se - desculpem a minha falta de conhecimentos informáticos - não era possível a intromissão de mão humana na alteração dos procedimentos na AT? Mais um momento confrangedor, largos segundos de espera. A equipa da IGF passou para os peritos do Instituto Superior Técnico - que, devido a um alargamento do âmbito da auditoria autorizada pelo SEAF, foram acopulados à equipa da auditoria. Foi um perito do IST quem respondeu com uma palavra: "Sim". Mariana Mortágua voltou à carga. Se "sim" então quem na AT tinha possibilidade de o fazer? Novo momento confrangedor, que foi salvo pelo inspector-geral de Finanças com recurso a uma resposta escrita, empregando aquele jargão informático que, sem parecer ter respondido à questão directa (aliás a deputada insistiu e ficou sem resposta), parecia estar a baralhar a compreensão de fundo do problema.

Se a auditoria pretendia clarificar o que passou, parece que não o conseguiu.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

A austeridade já acabou?


Steve Keen explica o básico e arrasa a teórica económica dos Tratados

O povo português tem sido levado a pensar que a palavra "austeridade" significa cortes nos salários dos funcionários públicos, nas pensões, nos serviços de saúde e educação e na redução do investimento público para que se obtenha um défice no orçamento que cumpra as metas prometidas a Bruxelas. Hoje, há quem pense que a austeridade acabou.

O que as TV e os analistas de serviço não dizem ao povo português é que, numa situação de desemprego (ainda por cima de enorme dimensão), a boa teoria económica ensina que o governo deve aumentar a despesa pública socialmente útil (em investimento e mesmo despesa corrente onde há carências) porque essa é a única forma de relançar a economia. Se os privados estão a poupar para pagar dívidas ou por receio do futuro, quem mais pode tirar a economia do buraco? Portanto, 'austeridade' tem um sentido mais amplo: significa reduzir o défice orçamental, retirando dinheiro da economia, no preciso momento em que esta mais precisa dele. Chama-se a isto política orçamental "pró-cíclica" porque agrava a recessão, em vez de a contrariar. É isto que está nos Tratados que temos de cumprir. A austeridade (nas suas diversas declinações) não é uma escolha do governo, é um modelo de política económica imposto pelo ordoliberalismo alemão.

Dir-me-ão que devem ser as exportações a puxar pela economia porque, caso contrário, boa parte da procura interna escoa-se para o exterior pelas importações. Claro, sobretudo a classe média-alta, gasta o que pode em produtos importados e viagens ao estrangeiro. É a liberalização comercial que temos, um regalo para os "cidadãos do mundo", numa zona euro "globalizada". Mas não era isto que o Tratado de Roma propunha. Porém, não só as exportações representam bem menos de metade da economia, mas também não podem crescer muito mais quando os outros países da zona euro estão sob pressão para reduzir a sua procura interna que comprará as nossas exportações. De facto, não podem crescer todos pelas exportações apesar de ser essa a orientação da UE. Esta política é um absurdo.

Porém, pertencendo à zona euro, Portugal só pode fazer isto que Centeno e Costa estão a fazer, e com resultados aceitáveis. Com a tolerância do Eurogrupo (desde 2015 porque havia eleições), a pressão para mais cortes abrandou na zona euro, o que tem sido favorável às nossas exportações. O Brexit, as sucessivas eleições nos grandes países da UE, e o crescimento da extrema-direita, têm permitido a Costa e Centeno alguma margem de manobra favorável à mudança de uma espiral recessiva para uma espiral virtuosa que está longe do que o país precisa. Mesmo modesta, falta saber por quanto tempo isso será permitido.

Com as reformas que já estão a preparar - incluindo um exército europeu (na prática comandado por alemães) - e o endurecimento das reformas ditas "estruturais", após as eleições alemãs, o que vai estar em causa é o seguinte: qual é o modelo de sociedade em que os portugueses querem viver?

É a absoluta precariedade dos empregos, a redução do Estado social ao mínimo, o aumento da desigualdade que já é intolerável, o agravamento da pobreza e da miséria? É essa sociedade que queremos, contra tudo o que nos prometeram quando aderimos ao euro? Queremos uma política económica comprovadamente perversa que atira a nossa economia para a condição definitiva de periferia pobre da Europa, a parte atlântica do grande Mezzogiorno europeu onde as classes médias do norte vêm passar férias e gozar a reforma, à custa dos baixos salários de um país de serviços turísticos? Os portugueses desistiram de Portugal?

Pensar no nosso futuro e preparar o dos nossos filhos e netos é uma responsabilidade a que não podemos fugir. Entristece-me pensar que pertenço a uma classe média que viveu razoavelmente bem aproveitando o tempo do enorme endividamento da economia portuguesa e, quando chegou a hora de assumir as consequências, preferiu meter a cabeça debaixo da areia. Preferiu a cobardia dizendo que tinha medo da alternativa. Imaginem se os Capitães de Abril também tinham pensado assim?

«Economia com Todos»: Apresentação em Coimbra


É já na próxima sexta-feira, 7 de julho, na Livraria Almedina - Estádio, a partir das 18h30. Intervenções de José Reis, João Rodrigues e Jorge Bateira. Estão todos convidados, apareçam.

(Entretanto, o Nuno Ramos de Almeida fez uma generosa recensão do livro, assinalando entre outros aspetos um dos objetivos do Ladrões de Bicicletas: debater os «principais campos de batalha da economia, como ciência humana com posições divergentes, de uma forma acessível e para o grande público, conseguindo abarcar o estado da arte da discussão nesta área», discutindo assuntos como «o neoliberalismo, a globalização, a financeirização, o papel do Estado, a situação da comunicação social, a flexibilização laboral, o Estado Social, o Euro, as políticas de austeridade, a reestruturação da dívida, previsões de futuro, o estado da social-democracia nos tempos pós-Macron, e os horizontes da política»).

Reformatação na continuidade


A Antena 1 forneceu hoje dois exemplos de como evoluiu o discurso de oposição de direita.

Os casos do incêndio de Pedrógão e o assalto aos armazéns militares de Tancos são o pretexto para a declaração de que se acabou o estado de graça da esquerda, porque mostraram que as funções básicas do Estado - protecção dos cidadãos e segurança - não estão a ser asseguradas.

Rui Ramos, na sua crónica semanal, defendeu que a solução não está no optimismo  (leia-se de António Costa), nem no pessimismo (leio eu, de Passos Coelho). A virtude estaria na lucidez, que funcionaria como uma nova lógica de olhar para os problemas. Já Helena Garrido, que foi uma entusiasta da aplicação do Memorando da Troika e uma opositora declarada nas crónicas da Antena1 da política seguida pelas forças de esquerda, sustentou salamonicamente que, se uns dizem que é melhor menos Estado (a direita) e outros mais Estado (a esquerda), a solução está em "melhor Estado".

Se passarmos ao largo do vácuo senso comum de ambas as declarações - ninguém defende uma solução política que não seja lúcida, nem que haja em Portugal políticas que redundem em "pior Estado" - aquilo que está a ser dito é "eu sou contra porque sou lúcido" e "eu defendo um menor Estado que seja melhor Estado". Ou seja, nada de novo à direita. Sobretudo quando se branqueia - por omissão - os efeitos da política económica de direita, na delapidação dos recursos públicos e na defesa de que as funções públicas são melhor executadas por agentes privados.

Geralmente, quem defende que não é de esquerda ou de direita - porque é lúcido -, é porque tem uma lógica de pensamento que se encaixa na direita. Em época de maré baixa, pode apresentar-se com aquela base eminentemente anos 30: "Eu não sou político, sou técnico" (ou seja, outra forma de ser lúcido).

A direita não gosta de ser de direita. Porque acha sinceramente que o poder (à direita) é O PODER. É o "arco-da-governação". Esse PODER é algo que tem séculos e que a direita não gosta de disputar, de ser relativizada a esse ponto, porque se vê uma emanação da natureza. E o Estado é o Poder. Se a direita suscita como essencial a questão do Estado é porque está contra aquilo que a intervenção do Estado pode fazer nas questões essenciais na sociedade - e que a direita não resolveu porque não está na sua essência resolver: a igualdade na repartição de rendimento.

O que parece, pois, estar a acontecer é uma reformatação do discurso das franjas da direita, para que continue a ser direita sem o parecer.

Apenas uma nota final: Curiosamente, nenhum dos dois intervenientes considerou o apagão dos dados das transferências para os offshores como um sinal da quebra das funções do Estado. É assim, a visão lúcida da direita.

domingo, 2 de julho de 2017

Não deveria, não poderia


A União Europeia deveria ser como o Canadá, onde a multiplicidade étnica é o factor determinante para a construção de uma identidade nacional. Onde todos os cidadãos, independentemente do seu país de origem, se identificam orgulhosamente como canadianos.

Respondo a Celso Felipe, inusitadamente insensato no Negócios: não sei se deveria e estou certo que não poderia. Não sei se deveria, porque na história do Canadá há vários detalhes esquecidos: do tratamento dado às nações originais, cujas populações ainda hoje são vítimas das mais severas discriminações, ao vulcão adormecido do nacionalismo no Québec.

Sei que não poderia, porque a Europa é um continente composto por múltiplos Estados nacionais consolidados, que continuam a ser as comunidades de destino mais relevantes para a esmagadora maioria. A sua tentativa de unificação degenera sempre em projetos imperiais, em autênticas prisões dos povos, onde impera a lógica disciplinar.

Hoje temos uma moeda funcional para o neoliberalismo, mas não teremos um orçamento federal que valha 15% do PIB da Zona, nem dívida pública comum, como no Canadá. Experimentem perguntar aos alemães se querem tal coisa, com as responsabilidades financeiras associadas. E eu sei que não quero as contrapartidas políticas que nos aproximem de tal coisa, não quero ser parte de uma nação original, cada vez mais condenada a viver da bondade de estranhos e de baixos salários, o lugar que nos cabe neste projecto.

Por cá, temos e teremos o uso dos instrumentos supranacionais para atentar economicamente contra a soberania dos Estados, e logo contra a democracia, aliás com o apoio de federalistas como Celso Filipe, que gostam de falar de liberdade, mas gostam também das chamadas reformas estruturais, impostas de fora, que diminuem as liberdades dos de baixo.

sábado, 1 de julho de 2017

David Sylvian - Manafon



Vergonha


Sexta-feira, no Porto, ao lado da Câmara Municipal, às 22h30m.

Julguei que a "austeridade fofinha" já tinha terminado com este tipo de assistência. Infelizmente, para vergonha de todos nós, a miséria dos necessitados e a miséria do assistencialismo estigmatizante continuam.

sexta-feira, 30 de junho de 2017

Vampiros

Imagem da Emissão do Jornal da TVI e aquela que se poderá ver depois de usar os óculos de Carpenter no filme "Eles Vivem", de 1989

A rarefacção de jornalistas nas redacções está a criar situações insustentáveis de pluralismo político e até de consistência da informação na comunicação social. Já nem é por causa da mensagem anticomunista primária - como se tratasse de uma doença sexualmente transmissível - ou da idiotice pegada de quem achou por bem escrever este "oráculo", à laia de poética bonita. Fernando Medina até há-de achar bom para a sua campanha, porque se ele não é anti-comunista, tão pouco é comunista. E, no fundo, estão a falar dele.

É apenas e tão-só por causa da mensagem subliminar de condicionamento político-estupidificante, numa emissão televisiva que ocupa um espaço público, concessionado a um agente privado que o está a usar deficientemente e contra o conteúdo do contrato de concessão.

Hoje e amanhã, nos 100 anos da Revolução de Outubro


Promovida pela Cultra - Cooperativa Culturas do Trabalho e Socialismo e pelo MOB – Espaço Associativo, a sessão integra-se no ciclo de debates que assinalam os 100 anos da Revolução de Outubro de 1917. Intervenções de Luís Farinha, José Soeiro, Rita Silva, António Louçã, Mário Tomé, Irina Castro, Adriano Campos, Sérgio Vitorino e Beatriz Gomes Dias. No final, Workshop com Pedro Rodrigues. É no Espaço MOB (Rua dos Anjos, 12 F, em Lisboa), hoje e amanhã.

quinta-feira, 29 de junho de 2017

Distopia social

Rui Tavares denunciou na segunda-feira uma distopia social – a “sociedade custo-benefício”, ou seja, uma sociedade onde a dignidade humana corre o risco de ser posta em causa por quem julga que sabe o preço de cada vez mais coisas, quando apenas está a obscurecer muito do seu valor.

Na realidade, a análise custo-benefício é uma derivação não tanto da gestão, mas essencialmente da filosofia espontânea da economia convencional, o utilitarismo. É um guia ideológico para as políticas públicas, mas que passa por neutro, e que tem múltiplos problemas, como Ana Costa e eu defendemos num artigo publicado há quase uma década. Infelizmente, creio que pouco mudou nesta área.

É então preciso distinguir o esforço de deliberação racional, que passa também por uma avaliação dos custos e dos benefícios, em sentido amplo e multidimensional (sabendo que o que é visto como custo e como benefício depende de uma estrutura prévia de direitos e obrigações), da ilusão perigosa de que todos os custos e benefícios podem ser reduzidos a uma mesma métrica de natureza pecuniária, como se os mercados idealizados estivessem por todo o lado, o que apodámos de nexo comensurabilidade-mercadorização.

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Draghi, Temer, Macron e Centeno

As reformas estruturais que reforçaram a negociação salarial ao nível das empresas podem ter tornado os salários mais flexíveis para baixo, mas não necessariamente para cima.”

A afirmação não é de Manuel Carvalho da Silva, mas de Mario Draghi, na sua intervenção no Fórum do BCE, que se realiza até hoje na Penha Longa, em Sintra.

Há alguma ironia, como assina Sérgio Aníbal neste artigo do Público, de ver o presidente do BCE a criticar a excessiva moderação salarial. Mas a sua preocupação não tem directamente a ver com a vida desgraçada de quem recebe baixos salários, na sua vida em gueto social que força a um injusto adiamento do seu futuro, ou no futuro de países em desigualdade social, sem pleno emprego, em desequilíbrio constante e submisso por inerência.

Os macroeconomistas, uns certos macroeconomistas, têm esta carapaça associal que os faz aceitar a desgraça alheia sem revolta, porque supostamente as suas ideias serão melhores para esses desgraçados. A sua preocupação não está no desemprego que provoca esses baixos salários, mas no facto de que a retoma não está a traduzir-se em mais inflação, o que implicaria um fim mais rápido das polémicas medidas expansionistas (taxas de juro muito baixas e compra de dívida pública nos mercados).

Draghi até pode estar sinceramente tenso. Mas o problema é que esse tipo de reformas estruturais ainda se encontra em preparação por todo o mundo, como que conduzido por uma batuta geral, impregnada de uma filosofia vitoriosa. Não se trata de uma questão de eficácia económica e social, mas de uma questão de poder social, do enfraquecimento social de uma determinada visão do mundo, aquela que Corbyn gritou no festival Glastonbury como sendo possível caso a maioria da população lesada se mantenha unida.


É, aliás, significativo que aquilo que Draghi assinala - com punhos de renda - seja precisamente o que visam as reformas laborais defendidas por Temer, Macron (aprovada hoje) e até por... Mário Centeno, fosse ele ministro da área laboral. Aliás, resta saber se o adiamento para 2018 das mexidas na legislação laboral portuguesa não se prenderá, tanto com pressões comunitárias para nada mexer na reforma de 2012, como para evitar medidas mais gravosas, sem fazer perigar o entendimento parlamentar à esquerda.

Veja-se um resumo dos vários programas.

O que defende Temer?

Aldous Harding - "Imagining My Man"


Em Lisboa, lá para o final de Novembro.

A União Bancária morreu?

No passado Domingo soubemos de mais um resgate bancário na Zona Euro. O Estado italiano comprometeu-se a pagar até 17 mil milhões de euros na resolução de dois "pequenos" bancos: o Veneto Banca e o Banca Popolare di Vicenza. Depois de anos de resgates milionários nada aqui parecia muito estranho numa UE povoada por bancos zumbis. No entanto, o facto de termos um resgate público do Estado italiano, pouco mais de um ano depois da entrada em vigor da União Bancária na Zona Euro, desfere um aparente golpe na última.

A criação de uma União Bancária Europeia servia dois propósitos explícitos: 1) impedir que sejam os Estados a arcar com os custos de bancos em falência, penalizando em alternativa os credores destes últimos (entre eles, os grandes depositantes); 2) quebrar a excessiva proximidade da banca com os diferentes Estados europeus, fonte de instabilidade monetária na zona Euro (um euro num banco alemão está mais seguro e, portanto, vale mais do que um euro num banco grego).

Em Portugal, a União Bancária teve efeitos ainda antes de entrar em vigor. O BANIF foi vendido rapidamente, a preço de saldo, ao Santander por forma a evitar os custos para os depositantes e o Novo Banco aparentemente foi vendido à pressa ao "fundo abutre" Lone Star devido ao calendário imposto pela UE.

Ora, os dois bancos italianos escaparam ao "mecanismo de resolução europeu", já que este não considerou que estes colocassem algum risco sistémico à banca italiana e europeia. Em alternativa, a falência destes bancos foi gerida e financiada pelo Estado Italiano, que se apressou a garantir que depositantes e credores seniores, nomeadamente outros bancos italianos, não seriam atingidos. Ou seja, o Estado Italiano interveio por forma a evitar o risco sistémico, cuja hipotética ausência serviu de subterfúgio para a não intervenção europeia. Confuso, não?

Ao abrir excepções tão flagrantes ao seu funcionamento, a União Bancária parece ter falhado estrondosamente nos seus propósitos. Tudo permanece como dantes? Não. A solução encontrada para estes bancos italianos vai de encontro ao projecto do BCE para a banca europeia: integração da banca regional e nacional em grandes conglomerados europeus. Em Portugal e Espanha (com o Banco Popular) foi o Santander, em Itália é o Intesa Sanpaolo, um grande banco italiano, que irá ficar com os activos de qualidade destes bancos e não terá de arcar com os custos dos seus empréstimos a estes dois bancos.

Finalmente, importa notar que, se o objectivo da União Bancária é criar grandes conglomerados europeus, esta política tem com consequência (ou causa?) um tratamento político diferenciado dos países da zona euro, favorecendo as grandes economias, com bancos de tamanho suficiente para terem um alcance europeu, como agora se testemunhou com o tratamento de excepção dado a Itália.

Adenda: Sobre União Bancária fica aqui a minha intervenção num recente seminário sobre "Integração Financeira na Europa" organizado pelo IDEFF da FDUL.


terça-feira, 27 de junho de 2017

Da ironia

A página do Público apresenta hoje “conteúdo patrocinado” pelo Banco Popular sobre literacia financeira. Na apresentação do projecto “Conversas Soltas Popular” lê-se: “As Conversas Soltas Popular vão ‘ocupar um território muito interessante. Capaz de enaltecer e enriquecer o público-alvo, munindo-os de conhecimento muito especifico e direccionado. Capacitando-os de ferramentas para que possam tomar as melhores decisões. Habilitando e posicionando o Popular como um Banco diferente e capaz de entender o mercado.’”

O Banco Popular foi à falência há duas semanas.

Mais a sério, se quiserem saber mais sobre o papel da promoção literacia financeira na individualização e mercadorização em curso, favorável ao sistema financeiro, este artigo sobre o tema, escrito pela Ana Cordeiro Santos, é muito recomendável.

Aniversário

The Guardian, 26/6/2015
O Facebook tem destas coisas. Propõe-nos efemérides para gerar movimento na plataforma. Mas apenas na plataforma. No resto, é para ficar tudo na mesma.

Foi há dois anos e pensou-se que algo iria abanar. Depois, o BCE fechou a torneira numa manobra de chantagem, fazendo lembrar aquela citação de Mark Twain sobre as eleições ("Se votar fizesse alguma diferença, eles não nos deixavam fazê-lo"). Os gregos acorreram aos bancos e Tsipras sentiu um calafrio pela espinha. Apesar disso, a maioria dos gregos - sobretudo os mais pobres - apoiou-o. Já ele não e ficou com o pensamento dos que perderam.

Entretanto, a Grécia retomou os seus planos de austeridade, aprofundou-se a sua situação catastrófica e - ao que parece, ainda não li - Varoufakis escreveu um livro a contar tudo o que lhe apeteceu dizer e não disse há dois anos (mais referências do Público aqui e aqui). Tsipras deve ir todos os dias para a cama a pensar no que estaria hoje diferente se ele tivesse dado corpo ao resultado do referendo.

Este é o problema das opções. Nada fazer é igualmente uma opção, embora nem sempre boa.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Exame viciado

O Homem que matou Liberty Valance, John Ford
Mário Draghi, presidente do Banco Central Europeu, veio a Lisboa, ao Instituto Superior de Economia, para dar uma aula. Segundo a RTP, as perguntas dos estudantes foram seleccionadas pelo Banco de Portugal. Draghi deve ter tomado conhecimento prévio das perguntas...

Não parece um exame justo.

domingo, 25 de junho de 2017

Perguntar não ofende


Em artigo [no Público] recente, o ministro das Finanças Mário Centeno faz um balanço (...): «A mais relevante alteração das condições de funcionamento da economia portuguesa prende-se com a estabilidade financeira, hoje, finalmente, uma realidade. Os bancos foram capitalizados e provaram a sua capacidade para atrair capital de todo o mundo, refletindo a confiança dos investidores internacionais na solidez da economia e numa estabilidade política, tantas vezes questionada, mas que, hoje, é invejada em muitas partes da Europa. Portugal não deve ter vergonha de ser um exemplo». O governo português tem, na realidade, fortes motivos para ter vergonha por ter consentido com um padrão de acentuado reforço do controlo estrangeiro na banca que a deixa mais vulnerável numa próxima crise internacional. É sob as periferias que as instituições financeiras internacionais privadas fazem recair os primeiros custos do ajustamento, através de retiradas de capitais e de contracções de crédito mais súbitas. Pior do que a banca privada nacional, que resultou das privatizações e que tão eficaz se revelou na destruição de capital e na geração de endividamento externo, será a banca privada estrangeira. A experiência das periferias da economia mundial nas últimas décadas mostra como, nos casos em que o sector bancário é dominado por capital estrangeiro, qualquer crise é exacerbada por este regime de propriedade. Exemplos como os do Sudoeste Asiático, em 1998, da Argentina, em 2001, ou da Europa de Leste, em 2009, mostram como a banca estrangeira esvazia rapidamente a suas sucursais de recursos na ânsia de limitar as perdas em mercados não estratégicos.

Excerto do artigo, O caso do Novo Banco: nacionalizar ou internacionalizar?, que o Nuno Teles e eu publicamos no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Junho.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Pedrogão e Pavia não se fizeram num dia? (I)

Entre outros vídeos, igualmente disponíveis na net, há dois que elucidam de forma impressionante as condições meteorológicas excecionais registadas no passado sábado, dia que ficará assinalado de forma trágica na nossa memória coletiva. Cheguei a eles através da Maria João Pires. O primeiro, filmado em Pedrogão Grande, tinha já sido assinalado aqui (não deixem de ver). O segundo é o que se reproduz de seguida, captado em Pavia, no Alentejo, podendo ainda fazer-se referência a um terceiro, que mostra logo no início as trovoadas desse dia.



Curiosamente, apesar das longas horas de emissão dedicadas ao incêndio, marcadas pela repetição incessante das imagens devastadoras da tragédia, não tenho visto nenhum deles (ou outros vídeos), passar nas televisões. Tal como não me pareceu que tenha sido dado particular destaque televisivo à confirmação, pelo IPMA, das circunstâncias «que determinaram situações no terreno de excecional gravidade», resultantes «da conjugação da dinâmica do próprio incêndio e dos efeitos da instabilidade atmosférica», gerando um fenómeno, raro, de «downburst». Isto é, um «vento de grande intensidade que se move verticalmente em direção ao solo» e que, depois de o atingir, «sopra de forma radial em todas as direções». Frequentemente confundido com um tornado, este fenómeno assume «um grande impacto em caso de incêndio florestal, por espalhar fragmentos em direções muito diversas», amplificando assim, caótica e exponencialmente, a propagação do fogo, que fica fora de controlo.


Estas condições são de facto essenciais para responder a muitas das questões que o incêndio de Pedrogão Grande suscita. Basta imaginar o que terá acontecido, em termos de propagação do fogo, quando se vêem as imagens do vídeo aí captado pelas 18h00 do passado sábado (a cerca de 30 Km da tragédia), confirmadas que estavam as previsões meteorológicas (temperaturas muito altas, que chegaram a atingir os 42-45ºC, níveis muito reduzidos de humidade relativa, vento e trovoada). É assim que se pode começar a conseguir compreender o inconcebível e o inimaginável, com a voracidade inusitada do incêndio, acelerada pelas condições climatéricas e pelo downburst, a alterar por completo o «quadro convencional» de combate. A estrada que num dado momento seria segura a subitamente deixar de o ser; a multiplicação rápida de frentes de incêndio a retirar capacidade de resposta a todos os pedidos de ajuda; as armadilhas do fogo a tornar-se imprevisíveis e, em muitos casos, inultrapassáveis. Muitas das questões que normalmente são centrais, como a causa da ignição, tornam-se aliás, perante este fenómeno, irrelevantes.

Para se ter uma ideia do impacto que estas condições pode assumir, em termos de intensidade e propagação das chamas, recorde-se que foi este o fenómeno responsável pelo incêndio de grandes dimensões que destruiu a cidade de Fort McMurray, na província de Alberta, no Canadá, em maio de 2016, onde cerca de 80 mil pessoas tiveram de ser retiradas, devido ao avanço descontrolado das chamas, e mais de duas mil casas ficaram em cinzas:



Quer isto dizer que as causas deste incêndio, o maior da última década, e o mais grave em termos de número de mortes, se reduzem a um fenómeno climatérico excecional? Não, evidentemente que não. A isso junta-se o vasto e pesado rol de problemas estruturais da floresta portuguesa, há muito identificados e estudados. Aliás, a excecionalidade das circunstâncias climatéricas do incêndio do Pedrogão Grande, que será ainda necessário melhor compreender e detalhar, permite sobretudo enquadrar, e ajudar a compreender, a excecionalidade das suas dramáticas consequências, não retirando por isso um grama de importância e gravidade a esses problemas estruturais. Pelo contrário, redobram a necessidade e a premência de sobre eles agir, por pelo menos por duas razões: porque estaremos sempre a falar de mudanças num tempo longo, que importa impulsionar o quanto antes, e porque, estando as condições metereológicass excecionais associadas a alterações climáticas (como se pensa que estejam), a tendência será para a sua crescente repetição.

Neoliberalismo para totós

Tendo como pano de fundo as eleições legislativas britânicas, a The Economist sintetizou assim a história recente da economia política do país: “Nos últimos quarenta anos, o Reino Unido foi dominado pelo neoliberalismo, um credo que procurou adaptar algumas das posições do liberalismo clássico do século XIX a um mundo onde o papel do Estado tinha aumentado”. Esta constatação de facto foi acompanhada pelo mais parecido que o eleitor encontrará ali com uma autocrítica, ou não estivéssemos perante uma revista que condensa semanalmente os argumentos neoliberais sobre tudo que é humano, tendo uma forte influência ideológica em tantos editoriais em Portugal.

As “mudanças sísmicas” associadas ao Brexit e ao suposto abandono da herança de Margaret Thatcher pelos dois principais partidos seriam então uma resposta aos “fracassos do neoliberalismo”: da maior crise financeira desde a Grande Depressão ao aumento significativo das desigualdades de rendimento e de riqueza, passando por privatizações que geraram piores e mais caros serviços públicos, mas mais lucros privados, tornando popular a renacionalização de vários sectores.

Entretanto, é de registar o inusitado rigor analítico com que o termo neoliberalismo é usado, em linha com o melhor conhecimento nas ciências sociais e humanas, mas em contraste com a repugnância que tal termo ainda causa na ignorante ou cínica sabedoria convencional. O neoliberalismo é de facto a visão do mundo hegemónica nas últimas quatro décadas entre as elites e não só. As suas origens intelectuais remontam aos anos trinta do século XX, começando por ser um esforço minoritário para renovar o liberalismo clássico, tentando dissociá-lo das ideias do laissez-faire e do Estado reduzido a um guarda-nocturno, consideradas incapazes de fazer face aos vários “colectivismos” desglobalizadores que floresciam num contexto de crise generalizada.

O resto do artigo pode ser lido no Público.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

"Isso é muito abstracto para as pessoas..."

Jornal da noite da TVI, 20/6/2017. Entrevista ao primeiro-ministro sobre os incêndios. Mas sobretudo sobre um tipo de questões.

(...) Judite de Sousa (JS): É isso que lhe pergunto: se vai retirar esse tipo de ilações agora?

António Costa (AC): No final do ano passado, de 2016, tivemos uma época de incêndios também muito grave. E em 2016, eu disse: "É altura, agora, de fazer a reforma na floresta ao nível do que fizemos há dez anos na protecção civil". E ao longo deste ano, trabalhou-se. Eu sei que é muito pouco mediático. Mas o que é verdade é que, no dia 27/10/2016, reunimos um conselho de ministros especial sobre o tema da floresta, colocámos um conjunto de diplomas em discussão pública; no dia 21/3/2017, foram aprovados doze diplomas, sete deles já estão publicados em forma de decreto-lei, há cinco propostas de lei que estão pendentes na Assembleia da República...

JS: Isso é muito abstracto para as pessoas, senhor primeiro-ministro.

AC: Eu sei que é abstracto, mas se me der o bocadinho mais de tempo...

JS: Claro que sim!

Uma História por fazer

Há uma vantagem no SIRESP, aquele sistema que deveria ter custado no máximo 100 milhões de euros, mas que o Estado aceitou pagar quase 500 milhões, tendo por intermediários aquela fina-flor dos actores mais badalados quanto a fraudes por julgar.

É que, com a sua compra, veio à borla um pacote eficaz de detergente e anulador de maus cheiros cuja patente deveria ser registada.

Apesar de tudo, apesar dos nomes dos personagens que se repetem, das quase evidentes cumplicidades aos mais diversos níveis patentes em todas as coincidências dos processos, apesar da trama que se entretece e que se pressente a emergir naquelas comissões que transitam pelos paraísos fiscais e naqueles financiamentos públicos obscuros a entidades políticas, apesar de tudo isto, o sistema é suficientemente opaco para impedir um Ministério Público de espetar asas no painel da investigação.

Está, pois, por ser feita a História Negra das Privatizações e de todas as Parcerias Público-Privadas.

O interessante de todo este processo de evangelização das virtudes do sector privado, da função espartana do lucro na afectação dos recursos e na supervisão da sua aplicação, da ideia da falta de vocação natural do sector público para exercer funções essenciais para a vida em comunidade, é que todos esses argumentos foram lançados e partilhados por todos aqueles, cujas caras nos vamos habituando a identificar como impróprios. Perversamente, são essas pessoas - tal como uma deficiente gestão dos entes colectivos - que dão a má imagem ao Estado, a qual justificará a jogada seguinte contra o sector público.

Nada, pois, como um sector privado, com uma actividade sem risco, em que o seu empreendorismo reside em montar esquemas - com a parceria necessária de pessoas a ocupar altos cargos políticos - para melhor assaltar o aparelho público ou o OE, financiados essencialmente pela maioria que quase nada tem. Ou seja, conquistar o Estado para, qual vírus, subverter a sua função redistribuidora e transformá-la numa função perversa de redistribuição invertida do rendimento.

Por que não é possível haver uma gestão correcta e eficaz do sector público, em que o valor acrescentado é de todos e não de uma grupo selecto de accionistas? 

Mudanças e continuidades na finança

Nos próximos dias 27 e 28 de junho, no ISEG, terá lugar um Seminário Internacional intitulado "Changes and Continuities in Post-2008 Finance". Uma ocasião privilegiada para conhecer e debater alguma da mais recente investigação feita sobre estes temas a partir de perspetivas críticas e pluridisciplinares. O programa detalhado está no cartaz em baixo.


quarta-feira, 21 de junho de 2017

Até logo


O «Economia com Todos» foi hoje Livro do Dia na TSF (escolhido e apresentado por Carlos Vaz Marques) e será mais logo lançado em Lisboa, numa sessão em que participam José Gusmão, Ana Drago, Vítor Dias e Pedro Nuno Santos. É  na Casa Independente (Largo do Intendente, 45), a partir das 18h00. Estão todos convidados, apareçam.

Capítulos do livro: «Sempre a pedalar» (Ladrões de Bicicletas). . «O Neoliberalismo não é um slogan» (João Rodrigues). . «O desconserto da globalização» (José Castro Caldas). . «Estagnação e financeirização» (Nuno Teles). . «O papel do Estado no desenvolvimento das capacidades produtivas» (Ricardo Paes Mamede). . «Imprensa: A fábrica de chouriços vai ter robots» (João Ramos de Almeida). . «Flexibilizar para criar emprego?» (Diogo Martins). . «Estado Social e desmercadorização do bem‐estar» (Nuno Serra). . «O preço do Euro» (Jorge Bateira). . «Desvalorização interna e desequilíbrios macroeconómicos na Zona Euro» (Paulo Coimbra). . «À espera da reestruturação da dívida» (Eugénia Pires). . «Histórias do nosso futuro» (Alexandre Abreu). . «Macron, a Frente Nacional e a social-democracia europeia» (Hugo Mendes). . «Tornar possível o impensável» (José Guilherme Gusmão)

A (falta de) consciência de classe no outro lado do espectro

Grande parte das pessoas com quem me dou no dia-a-dia diz-se da classe média. Muitas estão convencidas de que o bem-estar com que vivem deriva fundamentalmente do seu mérito. Poucas têm consciência de que os seus rendimentos as colocam entre os 20%, 10% ou mesmo 5% das famílias mais ricas do país (é mais provável do que parece, façam as contas). E ainda menos estão dispostas a reconhecer que muitas das oportunidades que tiveram na vida se devem ao seu contexto familiar e social de origem (e também à sorte). Isto ajuda a explicar o modo como se insurgem contra os impostos que pagam ou contra o facto de não poderem deduzir no IRS todas as despesas que fazem com serviços de educação ou saúde. Um pouco mais de consciência de classe (não exactamente a de que Marx falava) não lhes faria nada mal - nem a elas nem à redução das desigualdades neste país.

Este excelente texto ("Parem de fingir que não são ricos") é sobre a Inglaterra e os EUA, mas com as devidas adaptações aplica-se bem a Portugal. O mesmo se verifica com este ("Como a classe média-alta enriqueceu e prejudicou a mobilidade social"), sobre os EUA.

terça-feira, 20 de junho de 2017

Férias


Leituras


(Via Maria João Pires, vídeo de Ricardo Robalo: «um pouco do vento que veio de Pedrogão Grande e que originou os incêndios... Passámos do sol com 44 graus, para uma trovoada seca, e vento forte... Um fenómeno que aconteceu em poucos minutos... Imaginem agora o vento a empurrar o fogo»)

«Quem tenha assistido de perto, como já me aconteceu, a grandes fogos, como o do Chiado e a vários fogos florestais, sabe que há momentos em que nem com todos os meios do mundo, aéreos, pedestres, subterrâneos, seja o que for, se controla um incêndio, uma inundação, um tornado, um terramoto, um tsunami, uma erupção, um meteorito. Pode acontecer que, depois de muita destruição, seja possível de novo controlar a calamidade, mas pode haver dias, horas, meses, em que nada se pode fazer a não ser minimizar os efeitos e esperar que acabe. Isto é a primeira coisa que deve ser dita, de forma geral e abstracta. Dito isto, há um segundo aspecto, aquele que é mais importante — é que qualquer calamidade natural (mesmo com origem artificial) desenvolve-se numa paisagem e numa ecologia que é quase toda construída pelos homens, moldada por actividades humanas, seja do domínio da agricultura, da indústria, da energia, do espaço habitável, das construções, etc. E aqui já as calamidades não são puramente naturais, mas sim ajudadas ou desajudadas pelo modo como manipulamos o espaço natural em que vivemos.»

José Pacheco Pereira, Natureza, homem, obra, vida ou morte

«Face à falta de meios linguísticos (e de tempo para qualquer elaboração mais cuidada) e porque a televisão pratica quase como ideologia jornalística um realismo ingénuo que acaba por nunca produzir o desejado efeito de real, os repórteres ou debitam lugares-comuns que não têm nem valor expressivo nem descritivo, ou recorrem aos testemunhos. Põe-se um microfone e uma câmara diante de pessoas em estado de choque e pede-se-lhes que elas testemunhem, que elas descrevam, que elas superem a afasia em que a situação as colocou. A violência é inominável e a televisão torna-se patética, no duplo sentido da palavra: porque quer mostrar o pathos, dê por onde der; porque exibe a estupidez na mais elevada expressão. (...) Esta maquinaria é totalitária, expansiva, reduz tudo a uma peça integrada. Este jornalismo é um aparelho ao serviço da lógica da “partilha” da comunicação, da informação e da opinião da nossa época. A utilização dos drones realiza na perfeição esta atitude predadora de quem se acha munido do olho de Deus: o olho que abarca, na vertical, a totalidade do mundo.»

António Guerreiro, As vítimas dos incêndios e da televisão

«O colunista tem de escrever. O silêncio não é a sua profissão. Mas se o colunista não faz do seu estilo a estetização do terror e da morte, se o colunista procura mais a secura das palavras no meio da tragédia, se não procura o seu lugar entre as carpideiras e prefere a comoção discreta e solitária, resta-lhe pouco para escrever. Morreram 64 pessoas. É impossível imaginar o terror de cada uma delas. E nós pensamos nisso até porque pensamos no terror que sentiremos quando chegar a nossa hora. (...) O problema deste tempo é que é tudo tão rápido que em vez de silêncio temos gritos que se sobrepõem e nos impedem de pensar. Há um tempo para as coisas. Este é o tempo dos mortos. Não é o tempo para discutir política florestal, falar dos meios e muito menos de procurar culpados, se eles existirem, e pedir demissões, se for caso disso. Agora é o tempo para chorar, curar e enterrar. Porque precisamos disso e estamos a deixar de saber fazê-lo, sempre com pressa de ser os primeiros a dizer coisas relevantes. Nada tenho de relevante para dizer. Hoje, pelo menos.»

Daniel Oliveira, Agora, o silêncio