Nem todos os países crescem da mesma forma. Nos países que aderiram ao Euro, criou-se uma clivagem entre dois modelos de crescimento distintos: um assente em exportações e na procura externa e outro assente no endividamento e no consumo. A Alemanha constituía o exemplo mais emblemático do primeiro modelo: com a adoção de uma moeda subvalorizada face às suas características estruturais, a economia alemã cresceu com base nas exportações, comprimindo os custos salariais internos para garantir a competitividade do seu setor industrial e acumular excedentes comerciais. Por outro lado, os países do sul (Espanha, Portugal, Grécia e Itália) representavam o segundo modelo, em que o crescimento era assente no crédito e os países acumulavam dívida externa.
A seguir à crise financeira de 2008, a clivagem entre os modelos tornou-se menos evidente. As políticas de austeridade impostas às economias do sul reduziram os custos internos com o objetivo de orientá-las para as exportações, à imagem do modelo alemão. Embora o peso das exportações tenha aumentado, sobretudo em Portugal, isso aconteceu maioritariamente em produtos de média-baixa tecnologia ou serviços de baixo valor acrescentado como o turismo, o que coloca questões sobre os seus benefícios.
Na entrevista, Baccaro aborda vários assuntos, desde os impactos de uma guerra comercial que parece colocar em causa o modelo alemão aos riscos da instabilidade política em França. Sobre o caso português, o economista aborda os problemas do modelo de crescimento adotado nos últimos anos, com argumentos que vão ao encontro do que aqui se tem discutido. A sua leitura ajuda a compreender melhor as tensões e limitações do modelo português que, apesar da aparência de prosperidade, também cria distorções na economia e acentua desigualdades na sociedade.
O turismo é um motor de que economia?
Na última década, o crescimento da economia portuguesa foi impulsionado pelo desempenho do setor do turismo, cujo peso cresceu de 6,9% do Valor Acrescentado Bruto total em 2016 para 9,1% em 2023 e atingiu máximos históricos. Os serviços associados ao turismo - hotelaria, alojamento local, restauração, entre outros - têm sido responsáveis por boa parte da criação de emprego desde que o país saiu do programa de austeridade após a última crise financeira. Mas há um reverso da medalha, como explica Baccaro:
“O crescimento assente no turismo tem características de um modelo baseado em exportações, mas também de um modelo baseado no consumo. Do lado exportador, porque essencialmente está a vender serviços a não-residentes, ou seja, é uma forma de exportar. Mas no modelo exportador clássico, há contenção de preços internos para estimular as exportações. No caso do turismo, acontece o contrário: há um impacto sobre os preços dos ativos, especialmente da habitação, que aumentam. E, com a subida dos preços das casas, sobem também outros preços.”
As dinâmicas descritas por Baccaro são evidentes no caso português. Entre 2014 e 2024, o preço das casas em Portugal subiu mais de 135%, enquanto o salário médio dos residentes cresceu apenas 36%. Portugal foi o país em que o fosso entre os salários e os preços da habitação mais se alargou na última década, o que explica porque é que a habitação passou a representar uma fatia cada vez mais importante das despesas das pessoas e porque é que cidades como Lisboa passaram a surgir no topo dos rankings que medem a dificuldade de acesso à habitação.
A valorização imobiliária é parte integrante do modelo de crescimento da economia portuguesa. A expansão do turismo levou a uma recomposição da oferta de casas para satisfazer a procura externa, nomeadamente através do crescimento do alojamento local, em especial em Lisboa, Porto e Algarve. Além disso, os diversos mecanismos destinados a atrair o investimento estrangeiro para o mercado imobiliário, desde os vistos gold aos incentivos fiscais para fundos imobiliários e residentes não-habituais, contribuiram para alimentar a subida dos preços.
Fonte: desALojamento
O relatório Housing in the European Union, publicado este mês pela Comissão Europeia, aponta neste sentido: as casas em Portugal estão sobrevalorizadas face aos rendimentos médios e a valorização não se explica apenas pelo crescimento económico ou pela procura interna. Na verdade, há uma componente especulativa associada ao investimento estrangeiro e à natureza da habitação, que se tornou um ativo financeiro seguro e apetecível para os investidores. Portugal é, de resto, apontado como o país da UE onde a acessibilidade mais se deteriorou.
O relatório da Comissão destaca o papel do turismo nesta tendência: “Há cada vez mais evidência empírica que sugere que a expansão do turismo em geral, e das plataformas de alojamento local em particular, contribuiu para o aumento das rendas e dos preços das casas em algumas zonas, como os centros históricos das cidades”. E o relatório sugere que “Portugal é o país da UE onde o turismo teve maior impacto sobre os preços das casas”.
Cidades como Lisboa e Porto tornaram-se destinos muito procurados por turistas, mas também cidades onde morar se tornou um luxo. As plataformas de alojamento local e o investimento em propriedades para arrendamento de curta duração reduziram substancialmente a oferta de habitação permanente. Além disso, nas áreas metropolitanas, pelo menos 1 em cada 10 casas encontra-se vazia, sendo que boa parte destas não está à venda nem disponível para arrendar no mercado, o que agrava os problemas de falta de acesso.
Ao mesmo tempo, a pressão sobre os preços tem consequências para as outras atividades económicas. Na área metropolitana de Lisboa, a especialização em atividades turísticas ao longo da última década ocorreu em detrimento de setores mais inovadores: a indústria e os serviços de informação e comunicação perderam importância relativa, ao contrário do que aconteceu no resto do país, e houve uma queda da produtividade por trabalhador, como conclui um estudo publicado pela Causa Pública.
A maré que sobe eleva todos os barcos?
As dinâmicas descritas implicam a existência de vencedores e perdedores dentro do modelo de crescimento. Como explica Baccaro, nos países onde o turismo assume o papel de motor da economia, estabelece-se uma clivagem vincada entre aqueles que arrecadam os ganhos do crescimento e aqueles que ficam à margem:
“Quem ganha são os proprietários de imóveis, que podem rentabilizá-los, por exemplo através do alojamento local. Os perdedores são aqueles que não têm casa própria — geralmente os mais jovens —, que não só não beneficiam, como enfrentam preços mais altos e mais dificuldades no acesso à habitação. E também os trabalhadores do setor, que têm empregos pouco qualificados, mal pagos, precários e, muitas vezes, sujeitos a exploração. E, claro, paga-se um preço em termos de desindustrialização, já que esse nível de preços torna difícil a sobrevivência da indústria transformadora, sobretudo a de baixo e médio nível tecnológico”.
O próprio setor fornece o exemplo mais claro dos impactos desiguais deste processo: embora os serviços associados ao turismo sejam responsáveis por boa parte da criação de emprego na última década, o setor do alojamento e restauração tem o 2º salário médio mais baixo do país, de acordo com os dados do INE. Mais de 40% dos trabalhadores do setor recebem o salário mínimo. Apesar das receitas recorde, o turismo representa emprego essencialmente precário e mal pago.
Para além das desigualdades internas do setor, há uma tendência mais abrangente de redistribuição do rendimento na economia. A valorização da habitação implica, na prática, uma transferência de rendimento de quem vive do salário para os proprietários de imóveis. Uma fatia crescente do rendimento disponível das famílias acaba por ser canalizada para o pagamento de rendas, prestações ou serviços encarecidos pela pressão imobiliária.
Fonte: OCDE
Este fenómeno tem criado problemas que não são captados pelas estatísticas. O caso da inflação é o mais evidente. Embora a renda paga ao senhorio ou a prestação paga ao banco sejam normalmente a principal despesa das pessoas e o seu peso tenha aumentado de forma significativa, o indicador que usamos para medir a inflação e o custo de vida das pessoas não capta esta subida, uma vez que não inclui a despesa com prestações e atribui um peso muito pequeno à das rendas.
Entre 2021 e 2024, as rendas de novos contratos aumentaram 32%, mais do dobro do valor da inflação registada, e a prestação média dos empréstimos para aquisição de habitação em Portugal aumentou 80%. O que isto significa é que o indicador da inflação subestima o aumento do custo de vida de muitos grupos. Tendo em conta que este é o é o referencial usado nas negociações salariais e na atualização das pensões e de outros apoios sociais, traduz-se em aumentos que são mais baixos do que os que seriam necessários para travar a perda de poder de compra.
A subida dos preços, que para uns se traduz em perda de poder de compra, representa também um ganho de riqueza para outros. Num país como Portugal, em que mais de 75% das pessoas são proprietárias de casa, poder-se-ia pensar que a maioria da população beneficia deste modelo de crescimento em que o valor das propriedades sobe a um ritmo assinalável e a habitação se torna, cada vez mais, o principal ativo das famílias. À primeira vista, a subida dos preços das casas parece traduzir-se num aumento generalizado da riqueza e num sinal de prosperidade económica.
Quando olhamos para as estatísticas sobre a riqueza líquida das famílias - isto é, o valor total dos ativos menos o valor das dívidas - aumentou de forma assinalável desde a pandemia. Essa evolução deve-se, em grande medida, à valorização da habitação (a vermelho, no gráfico abaixo), que passou a representar uma fatia ainda maior do património das famílias portuguesas e se tornou o principal motor do aumento da riqueza nacional.
No entanto, é importante ter em conta que a distribuição da riqueza acumulada é profundamente desigual. Os 10% mais ricos concentraram, nos últimos quatro anos, tanta riqueza como os 40% seguintes. Já entre os 50% mais pobres, o aumento da riqueza líquida resultou sobretudo da redução do valor real das dívidas (uma consequência pouco discutida da inflação). De resto, a desigualdade continua a ser acentuada: os 10% do topo detêm cerca de 60% da riqueza total, enquanto a metade de baixo da população fica com apenas 3,6%. A desigualdade na distribuição de riqueza ainda é maior do que a que se verifica na distribuição do rendimento. E isso é relevante, porque a riqueza - e, sobretudo, a capacidade de a mobilizar - não é igual para todos, especialmente no caso da habitação.
Embora, para quem detém uma casa, a subida dos preços implique um aumento da riqueza, isso nem sempre se traduz numa melhoria efetiva das condições de vida. Uma pessoa que detenha uma casa vê a sua “riqueza” aumentar, mas é discutível que retire ganhos dessa subida (já que podia vender a casa e obter mais-valias, mas precisaria de encontrar outra para viver aos preços atuais). A subida dos preços das casas é sobretudo vantajosa para quem detém mais do que uma habitação. Nesse caso, é possível aproveitar a valorização para vender, converter em alojamento turístico ou aproveitar a inflação das rendas.
Ou seja, a subida do preço das casas beneficia essencialmente quem tem património acumulado. Mesmo quando não se tratam de grandes fortunas, quem possui ativos como uma segunda habitação ou uma propriedade herdada, que lhe permite transformar a valorização imobiliária em ganhos reais, fica automaticamente numa posição muito diferente da de quem apenas possui uma casa própria, e mais distante ainda da de quem depende exclusivamente do salário.
Embora seja verdade que o aumento da riqueza não se concentra apenas no topo da distribuição, o facto de existir uma maioria de proprietários não garante automaticamente que estes se encontrem alinhados com o atual modelo de valorização imobiliária. Isso é ainda mais evidente quando se consideram os impactos indiretos da turistificação sobre o custo de vida e sobre os hábitos de sociabilização no país.
As cidades-montra são para quem?
A transformação da economia por via da expansão turística tem impactos que não se resumem à acessibilidade da habitação. O modelo de crescimento assente no turismo leva não apenas a uma recomposição da oferta de casas disponíveis para arrendamento ou compra pelos residentes, mas também a uma reconfiguração das atividades económicas nas zonas de maior pressão turística.
Em Lisboa e no Porto, as freguesias com maior densidade de Alojamento Local atraíram novos serviços orientados para os turistas, como restaurantes e bares, em detrimento do comércio local tradicional, como concluiu um estudo publicado no ano passado sobre o impacto do AL. A subida das rendas impulsionada pela expansão do alojamento local também afeta o comércio local e tem sido responsável pelo encerramento de vários espaços tradicionais nas principais cidades. Embora o pequeno comércio que sobrevive até registe um aumento das vendas, o estudo conclui que a dinâmica favorece principalmente as empresas orientadas para o turismo e que o setor da restauração é o que mais se tem destacado.
Estas mudanças têm impacto nos hábitos de socialização. O Inquérito sobre as Práticas Alimentares em Portugal, realizado por investigadores do ICS, dá-nos algumas pistas sobre esse impacto. Nos últimos anos, quase 30% das pessoas em Portugal diz ter diminuído o número de vezes que comeu em restaurantes e 20% cortaram nas celebrações de dias festivos fora de casa, sendo que esta mudança se verifica sobretudo entre quem ganha menos. “Comer fora em ocasiões celebrativas está agora muito mais associado a classes sociais do que antes”, explica um dos autores do estudo.
É provável que o aumento do custo dos alimentos e da energia nos últimos anos seja responsável pelo encarecimento das refeições, mas os preços dos restaurantes e cafés já vinham a crescer acima da média há mais tempo. O relatório refere que “os dados aludem a uma reconfiguração das práticas de lazer e sociabilidade”, identificando um “eventual movimento de ‘domestização’ ou reprivatização das ocasiões de consumo coletivo”. Os autores concluem que “resta saber se estamos diante de uma situação conjuntural, em resposta ao recente contexto inflacionário, ou de mudanças mais duradouras nas dinâmicas de sociabilidade e consumo”. Nas zonas de maior pressão turística, é possível que a subida dos preços seja mais do que conjuntural e reflita o fenómeno de gentrificação das cidades.
Fonte: INE
Os problemas alastram-se a outras dimensões da forma como as pessoas aproveitam o tempo livre. Exemplo disso tem sido a proliferação de praias de luxo no Algarve ou no litoral do Alentejo, onde se anunciam serviços exclusivos e ofertas especiais a preços dificilmente comportáveis para a maioria. Nestas regiões normalmente procuradas para férias, a subida dos preços do alojamento torna o acesso cada vez mais difícil para os residentes. O presidente da Associação de Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve reconhece que que “é notório que as dificuldades económicas têm afastado os clientes nacionais”, embora sublinhe que ainda “somos acessíveis para mercados com outra disponibilidade” financeira.
Portugal continua a ser um dos países onde maior percentagem das pessoas é incapaz de comportar uma semana de férias por ano. Mais de um terço das pessoas (35,2%) tem rendimentos que não lhes permitem pagar uma semana de férias, bem acima da média europeia (27%) e apenas superado pela Grécia e pelos países mais pobres do Leste europeu. Com a subida dos preços no litoral do país, muitos dos residentes são excluídos do acesso às zonas de praia.
A proliferação de serviços de luxo associados ao turismo constitui uma tentativa do setor extrair mais valor dos turistas que procuram o país. Numa atividade pouco propícia a incorporação de tecnologia e ganhos de produtividade, a via que resta é a de aumentar os valores cobrados pelos serviços e comprimir os custos salariais. No entanto, esta estratégia também mostra os limites do setor como motor do crescimento. Voltando à entrevista, Baccaro alerta que “se não houver capacidade de “subir de patamar” e atrair turistas cada vez mais ricos, chega um momento em que o país perde competitividade, porque os preços internos crescem mais depressa do que noutros mercados.”
Com uma economia dependente de setores de baixos salários e baixa produtividade, começam também a tornar-se visíveis os limites deste modelo de crescimento, onde há pouca margem para progressos sustentados. Estes constrangimentos ajudam a perceber o debate que se reabriu sobre o futuro do trabalho em Portugal e o tipo de economia que se quer construir.
Que trabalho pela frente?
Além dos problemas associados à dependência do turismo, a entrevista a Baccaro também se debruça sobre o mercado de trabalho português e, em particular, sobre a proposta do governo para alterar a legislação laboral e introduzir maior flexibilidade. O economista mostra-se pouco convicto sobre os benefícios da flexibilização:
“Nunca vi provas convincentes de que as reformas laborais aumentem a produtividade. Pelo contrário, vi muitas provas de que a reduzem. Depois das reformas [flexibilizadoras], as empresas têm menos incentivos para inovar e para investir em capital humano. Há estudos que mostram que o impacto na produtividade é negativo: quando o trabalho fica demasiado barato e as rigidezes institucionais são enfraquecidas, investe-se em setores que não têm potencial de progresso tecnológico. […] A liberalização pode, no melhor dos casos, criar muitos empregos de baixa produtividade, altamente precários.”
Apesar de ter ganho tração no debate público, a ideia de que a flexibilização do mercado de trabalho conduz a um melhor desempenho da economia tem sido contrariada por alguns estudos recentes. Uma revisão de literatura que analisou 75 estudos assentes em diversos indicadores de proteção laboral concluiu que não é possível estabelecer uma relação robusta entre a flexibilização e variações na taxa de desemprego. Outros estudos (como este ou este) sugerem que a flexibilidade teve impactos negativos sobre a produtividade e a inovação, particularmente nos setores mais inovadores e dependentes de conhecimento acumulado.
Existem boas razões para explicar esta tendência. Trabalhadores com vínculos mais estáveis dispõem de mais tempo e melhores condições para adquirir e acumular conhecimento específico sobre a atividade das empresas, o que favorece a melhoria dos processos produtivos. Ao mesmo tempo, uma maior integração no trabalho fortalece o compromisso e a cooperação entre colegas. Além disso, a proteção laboral incentiva as empresas a investir na formação dos seus trabalhadores, promovendo tanto a melhoria das qualificações como o crescimento da produtividade.
A proposta do governo para flexibilizar a legislação laboral não pode ser dissociada do modelo de crescimento em que o governo tem apostado as suas fichas. O modelo de crescimento da economia portuguesa baseou-se na expansão de setores de baixo valor acrescentado, intensivos em trabalho e assentes em baixos salários. A dependência destes setores implica uma dependência de mão-de-obra barata para satisfazer as necessidades das empresas.
A reforma laboral apresentada não ajuda a combater os problemas do modelo de crescimento português e, pelo contrário, contribui para os acentuar: a flexibilização que tem como principal objetivo reduzir os custos laborais beneficia sobretudo as empresas em setores intensivos em trabalho, em que esses custos são mais expressivos. O que isso significa é que favorece os setores mais desqualificados e as empresas cuja estratégia assenta em salários baixos e contratos precários, em detrimento do investimento em tecnologia e formação.
Portugal parece ter trocado uma dependência por outra. Depois de um modelo de crescimento baseado no acesso ao crédito barato do exterior, a economia passou a apoiar-se no turismo e na valorização imobiliária, ambos fortemente dependentes da procura externa e geradores de impactos desiguais. Sem uma estratégia pública para aproveitar as condições favoráveis no país - incluindo os baixos custos da energia renovável - e combater fragilidades estruturais - como o atraso da ferrovia ou a dimensão irrisória do parque habitacional público -, construindo as bases para uma economia mais justa, arriscamo-nos a perpetuar o ciclo de dependência e vulnerabilidade.
Portugal continua a ser um dos países onde maior percentagem das pessoas é incapaz de comportar uma semana de férias por ano. Mais de um terço das pessoas (35,2%) tem rendimentos que não lhes permitem pagar uma semana de férias, bem acima da média europeia (27%) e apenas superado pela Grécia e pelos países mais pobres do Leste europeu. Com a subida dos preços no litoral do país, muitos dos residentes são excluídos do acesso às zonas de praia.
A proliferação de serviços de luxo associados ao turismo constitui uma tentativa do setor extrair mais valor dos turistas que procuram o país. Numa atividade pouco propícia a incorporação de tecnologia e ganhos de produtividade, a via que resta é a de aumentar os valores cobrados pelos serviços e comprimir os custos salariais. No entanto, esta estratégia também mostra os limites do setor como motor do crescimento. Voltando à entrevista, Baccaro alerta que “se não houver capacidade de “subir de patamar” e atrair turistas cada vez mais ricos, chega um momento em que o país perde competitividade, porque os preços internos crescem mais depressa do que noutros mercados.”
Com uma economia dependente de setores de baixos salários e baixa produtividade, começam também a tornar-se visíveis os limites deste modelo de crescimento, onde há pouca margem para progressos sustentados. Estes constrangimentos ajudam a perceber o debate que se reabriu sobre o futuro do trabalho em Portugal e o tipo de economia que se quer construir.
Que trabalho pela frente?
Além dos problemas associados à dependência do turismo, a entrevista a Baccaro também se debruça sobre o mercado de trabalho português e, em particular, sobre a proposta do governo para alterar a legislação laboral e introduzir maior flexibilidade. O economista mostra-se pouco convicto sobre os benefícios da flexibilização:
“Nunca vi provas convincentes de que as reformas laborais aumentem a produtividade. Pelo contrário, vi muitas provas de que a reduzem. Depois das reformas [flexibilizadoras], as empresas têm menos incentivos para inovar e para investir em capital humano. Há estudos que mostram que o impacto na produtividade é negativo: quando o trabalho fica demasiado barato e as rigidezes institucionais são enfraquecidas, investe-se em setores que não têm potencial de progresso tecnológico. […] A liberalização pode, no melhor dos casos, criar muitos empregos de baixa produtividade, altamente precários.”
Apesar de ter ganho tração no debate público, a ideia de que a flexibilização do mercado de trabalho conduz a um melhor desempenho da economia tem sido contrariada por alguns estudos recentes. Uma revisão de literatura que analisou 75 estudos assentes em diversos indicadores de proteção laboral concluiu que não é possível estabelecer uma relação robusta entre a flexibilização e variações na taxa de desemprego. Outros estudos (como este ou este) sugerem que a flexibilidade teve impactos negativos sobre a produtividade e a inovação, particularmente nos setores mais inovadores e dependentes de conhecimento acumulado.
Existem boas razões para explicar esta tendência. Trabalhadores com vínculos mais estáveis dispõem de mais tempo e melhores condições para adquirir e acumular conhecimento específico sobre a atividade das empresas, o que favorece a melhoria dos processos produtivos. Ao mesmo tempo, uma maior integração no trabalho fortalece o compromisso e a cooperação entre colegas. Além disso, a proteção laboral incentiva as empresas a investir na formação dos seus trabalhadores, promovendo tanto a melhoria das qualificações como o crescimento da produtividade.
A proposta do governo para flexibilizar a legislação laboral não pode ser dissociada do modelo de crescimento em que o governo tem apostado as suas fichas. O modelo de crescimento da economia portuguesa baseou-se na expansão de setores de baixo valor acrescentado, intensivos em trabalho e assentes em baixos salários. A dependência destes setores implica uma dependência de mão-de-obra barata para satisfazer as necessidades das empresas.
A reforma laboral apresentada não ajuda a combater os problemas do modelo de crescimento português e, pelo contrário, contribui para os acentuar: a flexibilização que tem como principal objetivo reduzir os custos laborais beneficia sobretudo as empresas em setores intensivos em trabalho, em que esses custos são mais expressivos. O que isso significa é que favorece os setores mais desqualificados e as empresas cuja estratégia assenta em salários baixos e contratos precários, em detrimento do investimento em tecnologia e formação.
Portugal parece ter trocado uma dependência por outra. Depois de um modelo de crescimento baseado no acesso ao crédito barato do exterior, a economia passou a apoiar-se no turismo e na valorização imobiliária, ambos fortemente dependentes da procura externa e geradores de impactos desiguais. Sem uma estratégia pública para aproveitar as condições favoráveis no país - incluindo os baixos custos da energia renovável - e combater fragilidades estruturais - como o atraso da ferrovia ou a dimensão irrisória do parque habitacional público -, construindo as bases para uma economia mais justa, arriscamo-nos a perpetuar o ciclo de dependência e vulnerabilidade.
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