A presidente do BCE começa por reconhecer que a subida da taxa de inflação não se deveu a um excesso de procura mas sim a um choque de oferta, devido aos constrangimentos nas cadeias de distribuição internacionais após a pandemia e a invasão russa da Ucrânia. Ainda assim, o BCE atuou no sentido de restringir a procura. Lagarde argumenta que isso era inevitável para evitar que os trabalhadores passassem a exigir aumentos mais elevados por esperarem níveis de inflação mais altos no futuro, gerando uma espiral inflacionista. Embora admita que a subida dos juros "criou dificuldades para algumas pessoas e empresas", ao fazer aumentar o custo dos empréstimos ou do crédito à habitação, Lagarde defende que a atuação do banco central assegurou a descida da taxa de inflação. É aqui que os problemas começam.
Por um lado, os dados sugerem que a descida da taxa de inflação se deveu essencialmente à redução dos preços da energia e à mitigação dos constrangimentos da oferta. É difícil perceber o papel que o BCE teve nestes desenvolvimentos, tendo em conta que até a própria presidente do banco central reconheceu várias vezes que "aumentar as taxas de juro não baixa os preços da energia", sobretudo quando esta é importada.
Por outro lado, a política monetária não parece ter tido o impacto desejado na compressão da atividade económica e do emprego. Apesar de se ter argumentado q o desemprego teria de aumentar para reduzir as pressões inflacionistas, a taxa de inflação diminuiu ao longo de 2023 e no início de 2024 sem que isso ocorresse na Zona Euro, como se vê no gráfico abaixo.
Existe o argumento de que a subida dos juros serviu para evitar expectativas de inflação mais elevada no futuro, contribuindo para evitar que os trabalhadores passassem a exigir maiores aumentos salariais e que as empresas aumentassem os seus preços em resposta. No entanto, os resultados de um inquérito recente realizado nos EUA mostram que a maioria das pessoas acredita que uma subida dos juros... agrava a inflação. Ou seja, a maioria das pessoas pensa exatamente o contrário do que os bancos centrais assumem, pelo que a sua tentativa de gerir expectativas poderia ter o resultado contrário. A verdade é que existem bons motivos para crer que as expectativas desempenham um papel muito menos relevante do que a teoria económica convencional assume.
Existe ainda o argumento de que não sabemos o que teria acontecido na Zona Euro sem a subida das taxas de juro. Só que, no Japão, a taxa de inflação teve uma evolução semelhante à das economias ocidentais (subida em 2022 e descida desde 2023) sem que o banco central tivesse aumentado as taxas de juro, o que indica que os motivos para a redução das pressões inflacionistas foram outros.
O que a inflação dos últimos três anos nos mostra é que todas as decisões que os bancos centrais tomam são discutíveis, desde os pressupostos em que assentam aos objetivos que prosseguem e à melhor forma de os alcançar são alvo de debate. A política monetária é política. Mas quando os bancos centrais são independentes do poder político, como é o caso do BCE, o debate democrático é afastado. A quem serve essa independência?
4 comentários:
Uma farsa monetaria, resumindo.
Se o BCE nunca tivesse mexido nas taxas de juro desde o início do aumento de inflação, iríamos ver uma desvalorizaçao do euro e alguma inflação, importada, correto?
@ Anonimo,
Incorrecto. O valor de uma moeda depende tambem muito das perspectivas de crescimento.
Com taxas de juro mais baixas, a desvalorizacao da moeda por via de fuga de capital nao produtivo para jurisdicoes onde juros mais altos sao remunerados seria contrabalancada por melhores perspectivas de consumo por parte dos trabalhadores europeus e portanto melhor retorno no investimento de capital produtivo. Para alem de que um Estado soberano pode impor restricoes nessa fuga de capitais mitigando ainda mais a desvalorizacao.
A inflacao resulta da competicao entre classes sociais pelos recursos realmente disponiveis: proletariado, capitalistas e pode-se acrescentar o Estado na equacao, quando os reais recursos disponiveis sao insuficientes para satisfazer as reais necessidades presentes.
Mesmo numa situacao hipotetica de excesso de oferta (da qual estamos muitissimo longe nas nossas economias onde entre 1/4 a 1/3 da mao de obra se encontra ou desempregada ou sub-empregada), mas mesmo numa situacao dessas, as taxas de juro sao um meio profundamente ineficiente de moderacao da procura.
Na pratica constituem um imposto indirecto sobre o proletariado e um subsidio indirecto ao capital onde se espera que o efeito liquido sera de reducao de procura porque o efeito imposto no proletariado supere o efeito subsidio sobre o capital... Seguranca Social para o Capital portanto...
Muitissimo mais eficiente nesse hipotetico contexto, seria um aumento de impostos directos sobre a(s) classe(s) que onde o Estado julgue ser necessario moderar o poder de compra reduzindo-lhes directamente o poder compra.
Olhe para o que se passou no Japao neste ultimo ano. Um exemplo raro na historia economica mundial de uma experiencia natural realizada a escala global sobre os mecanismos realmente existentes de gestao da inflacao.
O Japao provou cristalinamente que o controlo da inflacao via taxa de juro e uma farsa.
"O valor de uma moeda depende tambem muito das perspectivas de crescimento.
Com taxas de juro mais baixas, a desvalorizacao da moeda por via de fuga de capital nao produtivo para jurisdicoes onde juros mais altos sao remunerados seria contrabalancada por melhores perspectivas de consumo por parte dos trabalhadores europeus e portanto melhor retorno no investimento de capital produtivo."
Então depreendo que na verdade seria uma incógnita o resultado sobre o valor do cambio eur/usd... Porque não sabemos se esse fator iria mais do que compensar ou não, o outro fator inicial de desvalorização do euro. Eu assumiria que o fator da fuga de capital não produtivo seria mais forte mas se calhar estou errado...
O que é que aconteceu exatamente no Japão este ano? Tem alguma referência?
Cumprimentos,
SFF
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