segunda-feira, 6 de maio de 2019

Todos os lugares


«Nos anos 1990, Castells (1996) e outros autores defenderam que estava então a ocorrer a emergência de uma geografia de fluxos em detrimento da velha geografia dos lugares, no quadro de uma sociedade organizada em rede, potenciada pelas novas tecnologias de informação e comunicação, mas, também, pela crescente mobilidade de ideias, bens, capitais e pessoas no contexto da globalização das economias e das sociedades. (...) O anúncio, ilustrado com múltiplos exemplos factuais, não constituiu uma verdadeira surpresa. Afinal, a chamada livre circulação dos fatores de produção sempre foi um princípio fundamental das teorias económicas liberais e alcançou uma centralidade particularmente decisiva com o neoliberalismo e a financeirização da economia.
(...) A leitura linear da emergência da geografia dos fluxos em detrimento da geografia dos lugares foi de imediato criticada por diversos autores (p. ex., Smith, 1996; Graham, 1998). Mas a resposta mais clara chegou 20 anos mais tarde e proveio, como sempre, da própria sociedade, ainda que de uma forma para muitos inesperada: a emergência dos movimentos de direita populistas, nacionalistas e xenófobos na Europa e nos EUA, primeiro num número reduzido de países, como a Itália, a França e a Áustria, mas de forma mais generalizada a partir de 2016.
(...) Quem são, então, os "descontentes" que apoiam soluções populistas de natureza conservadora, protecionista e xenófoba? São sobretudo os residentes em áreas em declínio estrutural e persistente, vítimas dos efeitos da globalização económica, do cosmopolitismo universalista, do triunfalismo metropolitano e, mais recentemente, da recessão económica e das políticas de austeridade.
(...) Sabemos há muito que os territórios não são meros palcos, onde "algo" sucede, ou meros espelhos, onde "algo" se reflete. A geografia dos "lugares que não contam" contribuiu para a politização das desigualdades territoriais, para usar uma expressão de Rodriguez-Pose. Mas a análise dessa politização permite-nos compreender que não estamos perante uma guerra entre territórios. Enfrentamos, sim, graves problemas de injustiça espacial e de falta de coesão territorial decorrentes dos processos de globalização, do poder das redes cosmopolitas desterritorializadas e do ideário do triunfalismo urbano. O regresso da geografia dos lugares ao debate científico e político não deve, por isso, ter como objetivo único ou mesmo primordial o combate ao fator que nos relembrou a importância dos lugares, de todos os lugares – o voto da direita populista, nacionalista e xenófoba – mas antes o modelo socioeconómico, cultural e político que o explica e promove.»

João Ferrão, Para uma geografia de todos os lugares

4 comentários:

Jose disse...

"os residentes em áreas em declínio estrutural e persistente,...» donde Portugal ser excepção!

the revolution of not-yet disse...

e a direita dita extrema é medida em quê?

Anónimo disse...

Comentário de excepcional relevo.

Rio e Cristas são peritos tb nestas intervenções. À altura

Anónimo disse...

"Quem são, então, os "descontentes" que apoiam soluções populistas de natureza conservadora, protecionista e xenófoba? São sobretudo os residentes em áreas em declínio estrutural e persistente, vítimas dos efeitos da globalização económica, do cosmopolitismo universalista, do triunfalismo metropolitano e, mais recentemente, da recessão económica e das políticas de austeridade"

Lapidar.

Por cá os viúvos de Salazar acoitaram-se onde podiam