quinta-feira, 26 de março de 2020
Para lá dos gritinhos
É muito giro ver gente de esquerda por aí aos gritinhos de entusiasmo: “Ah, agora até os liberais reconhecem a importância do Estado!” São gritinhos profundamente idiotas. Não há nenhum liberal que defenda que o mundo se organiza sem Estado e sem governo. Isso é, quando muito, um anarquista, não um liberal. Um liberal defende um Estado limitado e com funções específicas, e uma delas é certamente o dever de enfrentar com firmeza o combate a uma crise como esta.
Não sei quem à esquerda andou por aí aos gritinhos de entusiasmo. Quem lê o Público já ouviu certamente os gritinhos profundamente idiotas de João Miguel Tavares: gritinhos de apoio à austeridade, que degradou os serviços públicos universais de que todos agora reconhecidamente dependem; gritinhos de apoio ao Estado, certamente, mas a um Estado que desregulamenta, liberaliza e privatiza, a um Estado que transfere “com firmeza” recursos de baixo para cima da pirâmide social e de dentro para fora do país; gritinhos de apoio a uma entidade que, na realidade, já não é bem um Estado, dados os constrangimentos supranacionais, de resto tão bem teorizados pelo neoliberais ao longo da sua globalista história.
É claro, quase trivialmente claro, que para lá da ideologia da mão invisível ou da ordem espontânea, a economia política liberal e neoliberal nunca prescindiu de um Estado selectivamente forte na teoria e na prática, de Adam Smith a Milton Friedman, passando por Friedrich Hayek.
A minha fórmula preferida nesta tradição é mesmo a de Hayek, que dá para muito: “é o carácter e não o volume da actividade estatal que é importante”, visto que “uma economia de mercado funcional pressupõe certas actividades por parte do Estado”, havendo mesmo muitas outras que pode tolerar, informa-nos-nos de forma detalha em A Constituição da Liberdade. No fundo, é aceitável tudo o que reforce os direitos capitalistas. Smith pelo menos reconhecia os perigos da especulação ou da subordinação laboral e imperial.
Já agora, Milton Friedman discutia, em 1951, “o neoliberalismo e as suas perspectivas”, num texto que encabeça uma colectânea coordenada pelo seu mais importante e apologético biógrafo. Numa intervenção típica deste movimento, Friedman valoriza aí a luta das ideias e rejeita associações ao laissez-faire no combate ao “colectivismo”, reconhecendo que uma ordem concorrencial de mercado requer múltiplas instituições públicas de suporte que a garantam e que corrijam as suas eventuais falhas, mas através de políticas conformes ao seu desenvolvimento de novos mercados. Em suma, reconhece que “o neoliberal está disposto a dar ao Estado grandes poderes e responsabilidades”. Foram realmente grandes os poderes no Chile de Pinochet, por exemplo.
A questão na história do capitalismo realmente existente nunca é intervir ou não intervir, mas sim em nome de que interesses e de que valores é que se intervém. Na periferia, um liberal ameaçado pode facilmente transformar-se num fascista, enquanto que no centro pode até transformar-se num social-democrata. Tudo o resto são mesmo gritinhos idiotas.
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7 comentários:
Temos uma corte de reis, servos e bobos, em movimento perpétuo da feira da ladra para a feira da lata.
"Não sei quem à esquerda andou por aí aos gritinhos de entusiasmo."
O João não lê o seu próprio blog.
"Mas a coerência está lá toda, claro, o mercado resolve tudo, somos contra a intervenção pública em todas as circunstâncias, exceto quando o aperto nos bate à porta, ou melhor, à carteira. É preciso ter topete."
http://ladroesdebicicletas.blogspot.com/2020/03/nao-ha-alternativa-quando-coisa-aperta.html
Enquanto a austeridade for vista por alguns poetas, não como uma necessidade ou uma condicionante inevitável, mas como algo que se apoia ou recusa 'a gosto', vão-se escrever páginas e páginas de inutilidades.
"A questão na história do capitalismo realmente existente nunca é intervir ou não intervir, mas sim em nome de que interesses e de que valores é que se intervém."
Sempre!
É por isso que eu sempre estranhei um certo discurso de pessoas à esquerda "a direita quer acabar com o Estado".
Não é isso o que eu vejo, o que eu vejo é uma direita que adora o Estado forte sempre presente para acudir a classe dominante sempre que esta o exige...
João Miguel Tavares, um lacaio da classe dominante histérico sempre aos gritinhos contra um Estado que sirva todos. Está bem acompanhado pelo camarada neoliberal Manuel Carvalho, outro lacaio...
Olha outro treteiro com banca permanente instalada nas colunas de opiniao dos merdia nacionais. Diz que e comendador tambem.
Outro que consegue a proeza de nunca fazer uma previsao correcta.
Outro idiota util cuja continuada atencao que se da a sua "opiniao" permanece um misterio rodeado por um enigma.
«...Não há nenhum liberal...»
O sr. Tavares ou é ignorante ou mal-intencionado, pois o Liberalismo extinguiu-se na Década de 1930 do Século XX, tendo sido criado nessa mesma época o neoliberalismo.
Esta corja não é nem nunca foi liberal, são neoliberais e as suas más políticas estão a dar cabo da Humanidade, do Estado de Direito, da economia, do trabalho, e da Liberdade Individual dos cidadãos.
Concordo em absoluto, é necessário perguntar ao serviço de que elites o Estado é colocado. Porque é disso que se trata, sempre.
Olhe-se para os Estados capitalistas e verificamos que as suas instituições servem sobretudo os interesses de quem tem dinheiro.
Olhe-se para os Estados Socialistas e verificamos que as suas instituições são normalmente capturadas por funcionários medíocres. Como aqueles que na China não agiram e sufocaram as vozes críticas, provavelmente causando a crise presente.
Quanto ao suposto carácter camaleónico dos Liberais, o que há é imensa gente a reclamar-se da tradição liberal, alguns não particularmente recomendáveis e outros de boa memória. Roosevelt era um Liberal, assim como Keynes e Beveridge.
De facto, noutras latitudes políticas as coisas são diferentes. Um comunista não precisa de se travestir se social-democrata, por exemplo. Basta-lhe alcachofrá-los...
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